As chamadas “questões de gênero” hoje inundam a pauta do jornalismo da burguesia e frequentam os departamentos de diversidade das empresas. Imprensa e empresariado, num verdadeiro surto de sensibilidade à causa, estão empenhados na consolidação do tema no debate público.
Fica até meio difícil falar desse tema livremente, porque houve uma espécie de sequestro do vocabulário relativo a ele. Usar a expressão “pessoa não binária”, por exemplo, implica reconhecer como parte de um padrão normal a existência de pessoas que, por algum motivo não biológico, não se veem nem como homens nem como mulheres, o que nada tem a ver com sua sexualidade, e que podem se identificar ora com um “gênero” (não sexo), ora com outro. “Gênero” seria uma construção social desvinculada da biologia, e uma “pessoa não binária” é alguém que assim se apresenta socialmente, usando roupas, adereços ou penteados associados ao gênero com que se identifica.
A coisa, aparentemente, é bem complexa. Lê-se aqui e acolá que, numa conta modesta, há cerca de 300 identidades de gênero não binárias catalogadas e que masculinidade e feminilidade têm graus. Quem se aventurar a pesquisar o tema vai encontrar muita informação, às vezes contraditória, mas também muito ativismo e textos que, às vezes bem simplórios, se pretendem didáticos, prontos a ensinar como tratar esse batalhão de novos seres humanos que não são nem homens nem mulheres ou, às vezes, são uma coisa e, às vezes, outra.
Não vamos aqui adentrar os meandros da chamada “teoria de gênero”, cujos opositores chamam de “ideologia de gênero”. A propósito, é teoria ou ideologia? Para os adeptos, o termo correto é “teoria” porque se trataria de “ciência”, uma ciência de base interdisciplinar (antropologia, sociologia, psicologia, medicina etc.). Os que falam em “ideologia de gênero” veem a coisa como movimento político e, geralmente, são considerados “ultraconservadores”, ou “retrógrados”, ou “reacionários”. Se se tratar, de fato, de ciência, os que não a veem desse modo serão também “negacionistas”.
É preciso reconhecer que a população, à exceção de uma elite universitária e da esquerda pequeno-burguesa, não tem clara percepção do que sejam essas coisas, mas isso virou uma das principais pautas identitárias hoje em voga. Como o vocabulário, a cada dia, muda e se torna mais complicado, a discussão tende a animar a classe média, sempre antenada com a modernidade. Para a maior parte da população, porém, parece fora da realidade o “letramento em linguagem neutra”, espécie de adaptação das palavras a uma forma gramatical supostamente neutra quanto ao gênero, que seria o modo “correto” de se referir a pessoas “não binárias”.
O que chama a atenção é a onipresença do tema na imprensa da burguesia, que abraçou a causa e dela faz propaganda diariamente. Podemos esperar em breve ver essa tal “linguagem neutra” nas páginas da Folha de S. Paulo, do Estado de S. Paulo, do Globo etc., os mesmos jornais que, em nome da correção gramatical, repudiaram com veemência a flexão de gênero do termo “presidente” para referir-se à primeira mulher a ocupar o posto mais alto da República. É bom lembrar que “presidenta”, como “infanta” ou “parenta”, são palavras muito antigas no léxico do português, mas, como a presidenta era do PT, o Partido dos Trabalhadores, não valia muito para a luta feminista o fato de ser mulher. Onde estavam as feministas dos jornais, que hoje saem em defesa de Tabata Amaral?
Esse acolhimento da causa pela imprensa e pelas grandes empresas nos deixa com a pulga atrás da orelha, pois as reivindicações dos oprimidos e explorados costumam ser ignoradas pela burguesia. Uma curiosa reportagem da Folha sobre uma “pessoa não binária” parece bastante reveladora. A pessoa (nascida menina de nome Isabela), que pratica o breaking e passou a usar o nome It’sa (proveniente da pergunta feita em inglês, quando ela saiu do país, “It’s a girl or It’s a boy?”), aparece assim descrita:
It’sa já sofreu machismo, lesbofobia, discriminação por aqueles que negligenciam a causa não binária, racismo “para caramba”, abordagens truculentas da polícia, xenofobia —”o Brasil está com o filme queimadaço [no exterior]” diz — e, “no topo”, segundo conta, preconceito de classe.
“Eu canalizei toda a energia que vinha de opressão para o break, tá ligado? Eu consegui de alguma forma, consciente e inconsciente, filtrar isso para as batalhas”, afirma.
Hoje tem como uma de suas conquistas a transformação de uma maquiagem do Cirque de Soleil que considerava sexista (antes só mulheres e It’sa usavam batom).
A própria jovem pessoa admite que “no topo” dos preconceitos que sofreu estava o “de classe” e que ela “canalizou para o breaking a energia da opressão”. A reportagem mostra que, mesmo com os títulos que conseguiu, ela tem de trabalhar no telemarketing e passa necessidades. Do ponto de vista do jornalista, no entanto, o que entusiasma é a transformação da maquiagem sexista do Cirque de Soleil, considerada a “conquista” de It’sa.
Matérias desse teor, cujo foco é a “identidade de gênero”, têm espaço de sobra nas páginas dos jornais. Na condição de atendente de telemarketing, essa mesma pessoa não teria espaço para falar sobre sua condição opressiva, a mesma de seus colegas de profissão. Não fosse a questão do gênero, ela não estaria na capa de jornal da imprensa burguesa.
A reportagem enfatiza a afirmação da identidade de gênero como o espaço onde se dá a “conquista”. Questionar a própria identidade é algo apresentado como uma espécie de postura revolucionária. “A energia que vem da opressão” (palavras de It’sa) é canalizada para uma pauta que encobre a maior opressão, aquela que vem da exploração sistemática dos mais vulneráveis.
A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a posição deste diário.





