O mesmo ministro idolatrado pelos procuradores da Operação Lava Jato — “Aha uhu o Fachin é nosso” — acabou sendo o responsável por anular, em decisão monocrática e, portanto, revogável, os processos contra o ex-presidente Lula. A contradição entre os dois Edsons Fachins — ora amado por Deltan Dallagnol, ora xingado pelos bolsonaristas — é o resultado de uma forte contradição do bloco golpista. Por um lado, a burguesia precisa manter as condenações de Lula, por outro, se viu confrontada com uma crise gigantesca de suas instituições, que poderia levar a uma revolta a qualquer momento.
Essa contradição, no entanto, muito mal compreendida pela esquerda pequeno-burguesa, está dando margem para uma confusão: a de que a candidatura de Lula estaria sendo fomentada pela burguesia. A tese dos que acham que Lula estaria recebendo o apoio da burguesia tem sido reforçada com alguns acontecimentos isolados, que, embora apontem alguma relação entre Lula e a burguesia, são, na verdade, o tipo de exceção que comprova a regra.
Um dos “indícios” de um “namoro” entre Lula e a burguesia seria o seu discurso no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, pouco depois da decisão de Fachin. O ex-presidente teceu vários elogios a José de Alencar, capitalista ligado à ditadura militar que foi o vice-presidente de seu governo, e se mostrou disposto a conversar com os empresários. Os acenos de Lula à burguesia são um fato; contudo, devem ser analisados sobre a base da atual situação política.
Lula é um líder de massas, oriundo de um movimento gigantesco, que foi a luta contra a ditadura militar. Embora esse movimento tenha características revolucionárias, Lula não é um revolucionário. Ele expressa, sob muitos aspectos, a evolução da consciência da classe operária brasileira, mas sua política se desenvolve através de um certo empirismo, e não de um programa consciente. Lula ainda não chegou à conclusão de que é preciso romper com a burguesia: por isso, apresenta, ainda hoje, ecos de uma experiência passada: a de seu governo de frente popular, quando formou uma coalizão com partidos burgueses.
O que importa, contudo, é: a experiência que o PT teve em 2002 pode ser repetida nos dias de hoje? Não, pois Lula é outro, a classe operária é outra e a burguesia é outra. O que a burguesia busca, a partir de sua própria necessidade, é um governo que seja capaz de aplicar uma política neoliberal “puro sangue”, que destrua todo e qualquer direito dos trabalhadores e que empurre milhões de pessoas para a miséria em favor dos interesses dos banqueiros. Esse programa não pode ser formado em um governo com Lula, pois o movimento que lhe apoia está em busca de outro programa, que garanta a sua sobrevivência.
De um modo geral, a classe operária está contra toda a política neoliberal; no entanto, a diferença de um governo em que Lula esteja integrado e um governo sem Lula é que, como Lula é o líder de um movimento poderoso, a classe operária se sente muito mais confiante de defender os seus interesses quando compreende que o governo em questão é o seu governo. Um governo entre Lula e a burguesia não seria um governo dos trabalhadores, mas, para os trabalhadores, seria um governo seu — é justamente disso que a burguesia está fugindo, pois quer afastar qualquer possibilidade de o povo, organizado, intervir nos rumos do País.
A conclusão obrigatória do discurso de Lula é que, por mais que Lula possa querer, como produto de sua confusão, um governo junto com a burguesia, a classe dominante não quer tal governo.
Os setores que defendem que a burguesia está apoiando Lula também usam como argumento algumas declarações vindas da classe dominante que demonstrariam uma suposta despreocupação com a candidatura do ex-presidente. É o caso, por exemplo, do vice-presidente ilegítimo, o general Hamilton Mourão, que falou que as Forças Armadas respeitariam uma eventual vitória de Lula. Outros artigos da imprensa burguesa, falando em Lula “paz e amor” também seriam, para tais setores, uma demonstração do interesse da burguesia no ex-presidente.
Isso, contudo, não passa de uma impressão, resultado de uma má compreensão da manobra realizada por Edson Fachin. Como explicamos no início do artigo, a anulação dos processos de Lula foi uma necessidade da burguesia para impedir uma maior desmoralização do STF e das instituições de conjunto. A conspiração da Lava Jato já havia sido desmascarada e, a cada vazamento, uma nova pessoa era incluída no golpe. Até mesmo a ministra Cármen Lúcia, do STF, teve sua participação comprovada. Sabe-se lá, inclusive, quem mais estaria envolvido nos vazamentos que ainda não vieram a público.
Mesmo o efeito colateral da manobra, que é a anulação das condenações de Lula, não é em definitivo. Fachin não absolveu Lula, nem devolveu seus direitos políticos. Apenas tirou seu processo de Curitiba, onde estava sediada a Lava Jato, e os levou para Brasília. A decisão de Fachin poderá ainda ser desfeita pela Segunda Turma e pelo Plenário. E, mesmo que seja confirmada, há várias outras maneiras de impedir que Lula seja candidato. Um deles é condená-lo novamente, desta vez em Brasília. A outra possibilidade, que não está minimamente descartada, é a de um golpe militar.
É por isso que Mourão se mostra “tranquilo” com a anulação dos processos. A burguesia tem suas cartas na manga e sabe que os direitos de Lula não estão garantidos. No que é fundamental, o imperialismo já demonstrou que não quer Lula. Em artigo da Financial Times, os capitalistas colocaram claramente: a decisão de Fachin “desfere um golpe pesado contra a credibilidade da maior e mais bem-sucedida investigação de corrupção lançada na América Latina”.
Lula é a principal expressão da polarização política no país nos últimos anos entre os trabalhadores de um lado e a direita golpista e a burguesia de outro. Isso ficou evidente na prisão dele e nas eleições de 2018. Apoiar Lula, neste sentido, serviria muito mais para aumentar a polarização política, do que propriamente promover um governo que pudesse conciliar os capitalistas e o ódio crescente do povo em relação a eles.
O golpe de 2016, dado em meio a uma onda de golpes após a crise de 2018, foi um divisor de águas da conjuntura política e da correlação de forças. Com ele, ficou claro o rompimento da burguesia com Lula e o PT. E tudo o que veio depois apenas corroborou isso: a burguesia não quer ver o Lula nem pintado de verde e amarelo.
Tudo isso não tem a ver com o que o Lula pensa ou com o que ele já fez na sua trajetória política institucional. Tem a ver com o que ele representa para os trabalhadores. Lula é a expressão do desenvolvimento atual da consciência política dos trabalhadores. Os trabalhadores veem nele um representante e acham que vale a pena lutar por Lula e com ele. É isso o que a burguesia mais teme. Por isso o Lula é um fator de desestabilização, não de estabilidade para o regime golpista.