No último período pôde-se ver a ofensiva do imperialismo e da direita contra os direitos democráticos da população, a começar pela liberdade de expressão dos indivíduos. Um caso importante foi a censura do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, nas redes sociais. Mais recentemente, vimos a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira, ordenada pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, por conta de uma crítica feita pelo deputado contra o Supremo Tribunal golpista.
A ação ditatorial do STF foi apoiada pelo presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que se manifesta em um tweet encerrado pela frase “Chega de tolerância com os intolerantes!”. Essa frase tem aparecido frequentemente em diversos lugares nos últimos tempos. Outro indivíduo que a utilizou em um argumento para defender a censura e a cassação dos direitos da população foi o dirigente do PSOL, ex-PSTU, Valério Arcary.
É preciso, primeiramente, chamar a atenção que esse argumento não se sustenta na lógica. Se você está sendo intolerante com alguém – mesmo que essa pessoa seja, segundo suas concepções, um “intolerante” – você não é tolerante e já se coloca na categoria dos intolerantes. Ou seja, você é tolerante apenas com as pessoas que pensam como você.
A discussão sobre a tolerância política aparece no interior da burguesia democrática principalmente no século XVIII, no período do Iluminismo. A finalidade da discussão seria acabar com todo tipo de perseguição política. Ela segue a ideia de que se deve defender o direito dos indivíduos se expressarem, mesmo que você não concorde com as opiniões expressas.
Se não há concordância com essa ideia geral, que foi expressada dessa forma pela própria burguesia da época, então você não é tolerante, mas sim um intolerante. Naturalmente, os intolerantes não são intolerantes com todo mundo, mas o são apenas com determinada posição política, que não é a deles.
Então, quando se levanta a ideia de que não se deve ser tolerante com os intolerantes, o que se tem são dois lados intolerantes, um lado não tolera o outro. Do ponto de vista lógico, não se sustenta. Do ponto de vista jurídico, são duas propostas de ditadura. O argumento é, obviamente, ilógico, o que é típico da política pequeno-burguesa brasileira e também de parte da burguesia, que chafurdam na mais completa baixeza política, sem princípios políticos e diretrizes ideológicas.
No entanto, é preciso chamar atenção para outro fator, que vai além da falta de lógica desse argumento. Esse pensamento foi elaborado por elementos da burguesia, mais ou menos na época da Guerra Fria, após a Segunda Guerra Mundial, para atacar formalmente a esquerda internacional, principalmente os partidos comunistas, que eram alinhados com a URSS.
Essa colocação era uma maneira de pessoas com mentalidades fascistas se apresentarem como se fossem uma versão “atualizada” do liberalismo político, mas já um liberalismo bastante limitado. Trata-se da ideologia da ditadura militar de 1964 no Brasil, por exemplo. Quem levanta essa palavra de ordem não se dá conta, mas nunca foi dito pela ditadura que sua intenção era estabelecer um governo anti-democrático. A ditadura sempre procurava se apresentar como uma defesa democracia, uma defesa que não poderia permitir que os elementos anti-democráticos, intolerantes, ou seja, os comunistas, tomassem o poder.
Todas as ditaduras estabelecidas após a Segunda Guerra Mundial, que, inclusive, derramaram muito sangue da população, se baseavam nessa ideia. Como elas foram impulsionadas pelos países dito democráticos, elas procuravam se apresentar como democráticas. O regime dos EUA seria, em tese, democrático, então quando eles defendiam uma ditadura, eles procuravam apresentá-la como sendo também uma democracia, mas que se encontra num estado de emergência, para se defender dos inimigos da democracia – intolerantes – que seriam, segundo suas ideologias, os comunistas.
Essas ditaduras não foram estabelecidas necessariamente contra nenhum governo comunista, mas sim contra governos nacionalistas democraticamente eleitos, como por exemplo o de João Goulart. No entanto, isso não tinha nenhuma importância para esses ideólogos, o que é característico da ideologia reacionária, ela não faz questão de guardar nenhum tipo de lógica. Então, essa ideologia que defende a não tolerância contra os intolerantes, pode até soar bonita para alguns semi-analfabetos políticos que circulam por aí, mas ela é, na verdade, um slogan da Guerra Fria, apoiada sobre um anti-comunismo e sobre um macartismo, que procura disfarçar a atitude fascistóide do imperialismo norte-americano com uma capa de democracia.
Surgem, então, ideólogos reacionários para procurar justificar esse argumento. O caso em questão é o do “filósofo” profundamente anticomunista, Karl Popper, que pertencia à conhecida Escola Austríaca, muito conhecida por suas ideias muito direitistas relativas à economia. As teorias de Karl Popper são a versão filosófica dessa corrente de pensamento. Popper estabeleceu um embuste intelectual, que é apresentado por esses elementos direitistas, chamado de “paradoxo da intolerância”.
Este paradoxo consiste no seguinte: quando se tolera os intolerantes, estes acabam destruindo os tolerantes, o que acaba por destruir a tolerância. Então, não se deve tolerar os intolerantes, mas se você não os tolera, você também se torna intolerante e por aí vai. Trata-se de algo digno da filosofia de internet dos dias de hoje.
Chama a atenção, então, que esse tipo de argumento ultra-direitista esteja sendo usado por setores da esquerda, porque mostra a absorção ideológica desses setores pela ideologia reacionária no momento atual. Essas pessoas não possuem nenhuma independência intelectual, nenhum lastro ideológico. A ideologia dita “democrática” da esquerda pequeno-burguesa é algo completamente “gasoso”. Isso sem falar em partidos como o PSDB ou o DEM, que são de fato direitistas. Estes defendem exatamente essa ideologia: disfarçar uma ditadura com enfeites democráticos.
O regime democrático, supõe-se, deveria ser o regime da maioria. Se a maioria da população apoia, então essa é a vontade do povo, representa a soberania popular. Ele não tem nada a ver com a supressão dos inimigos políticos, como vem sendo defendido pela burguesia e pela esquerda pequeno-burguesa que fica totalmente a reboque dela. Essa supressão é algo totalmente anti-democrático, fascista. A ideologia “liberal” dessas pessoas é uma ideologia disfarçadamente fascista. Para eles, a democracia é boa, contanto que ela seja, na verdade, uma ditadura. É preciso ter claro que é disso que se trata toda essa discussão em torno da tolerância contra os intolerantes.