No último domingo (29), aconteceu o segundo turno das antidemocráticas eleições municipais de 2020. O resultado já era esperado: o PT não ganhou uma única capital, e o PSOL, o partido de esquerda que a burguesia resolveu chamar de seu, saiu vitorioso nas eleições de Belém. No fim das contas, todo o teatro eleitoral, montado em meio a uma das piores pandemias que a humanidade já viu, serviu apenas para que a direita aprofundasse ainda mais a sua ditadura e desmoralizasse a esquerda.
O caso que mais chamou a atenção, sem sombra de dúvidas, foi o das eleições no Recife, disputada, em segundo turno, por Marília Arraes (PT) e João Campos (PSB). Na capital pernambucana, onde o PT tinha a candidatura mais competitiva do País, a fraude se mostrou ainda mais escancarada, dando vitória ao impopular e golpista do PSB.
A fraude, contudo, não se deu apenas no dia da eleição, quando cabos eleitorais pagos pelo PSB foram flagrados praticando todo tipo de ilegalidade. A fraude é uma marca nacional dessa eleição, de modo que o caso de Recife, em seu conjunto, revela apenas a superfície de toda a imundície eleitoral promovida pela burguesia para garantir um resultado favorável.
As eleições mais antidemocráticas desde a ditadura militar
As eleições de 2020 foram a terceira desde o golpe de Estado de 2016. E, progressivamente, a mais antidemocrática. Em 2016, a campanha eleitoral foi reduzida para 45 dias — isto é, cortada pela metade —, o que beneficiou unicamente a burguesia, que já faz propaganda de seus candidatos e de sua política o ano inteiro por meio de sua imprensa. Em 2018, os golpistas cassaram a mais importante candidatura do País — a do ex-presidente Lula —, eliminando da eleição o candidato da maioria do povo brasileiro. Ao mesmo tempo, cassaram outras milhares de candidaturas, aprofundaram as proibições em relação à campanha de rua e colocaram a extrema-direita para intimidar os militantes da esquerda.
Neste ano, a direita simplesmente impediu que a maioria dos partidos de esquerda tivesse acesso aos meios de comunicação de massa — a rádio e a televisão. PCO, PSTU, UP e PCB não tiveram direito a transmitir seu guia eleitoral por causa da fascista clausura de barreira. Neste aspecto, as eleições se mostraram mais antidemocráticas que durante a ditadura militar, quando os dois partidos legalizados tinham direito igual ao guia eleitoral. E, mesmo no caso dos partidos que tiveram acesso à televisão e ao rádio, o tempo foi reduzido bruscamente em comparação com eleições anteriores.
A “frente ampla”
O caráter cada vez mais antidemocrático com o qual a burguesia vem tratando as eleições no Brasil e na América Latina como um todo não é um sinal de força, mas sim de fraqueza. Por um lado, a classe dominante percebe que a crise econômica irá se tornar mais aguda e que será necessário atacar ainda mais duramente as condições de vida do povo. Por outro, vê uma resistência muito grande à aplicação dessa política, como no caso das grandes mobilizações no Chile contra o governo Piñera, as centenas de protestos dos bolivianos para que as eleições presidenciais fossem realizadas, o enfrentamento do povo do Amapá com a polícia e os confrontos entre os torcedores brasileiros e a extrema-direita fascista. Diante desses fatores, a única política que a burguesia tem para seguir adiante com sua política é através do uso da força e do fechamento do regime, pois quanto mais democrático o regime, maior o espaço para que os trabalhadores se manifestem contra a ditadura dos golpistas.
O problema de fechar o regime é que a ditadura também acaba por aumentar a insatisfação popular. Uma ditadura aberta contra a população desnuda completamente a luta de classes e opõe a esmagadora maioria do povo contra a burguesia. Essa situação é extremamente perigosa, pois quanto maior a polarização política, melhores as condições para os trabalhadores se tornarem conscientes de quem são seus inimigos e se organizarem para colocar o regime abaixo. Por isso, a burguesia procura, ao mesmo tempo em que aprofunda sua ditadura, tentar diminuir a polarização política. E, para que isso aconteça, seu principal expediente é a política de “frente ampla”. Isto é, a política de infiltrar seus cavalos de Tróia nas organizações de esquerda para impedir que elas se desenvolvam em um sentido revolucionário.
O caso mais simbólico e mais importante da “frente ampla” nas eleições de 2020 é o de Guilherme Boulos, candidato do PSOL na cidade de São Paulo. Boulos, que nunca fez parte de qualquer luta importante dos trabalhadores, vem sendo, desde 2013, impulsionado pela burguesia para cumprir o papel de articulador da “frente ampla”. Desde então, atuou no sentido de desgastar o governo do PT com a campanha contra a Copa do Mundo, colaborou com o golpe de 2016 criando a Frente Povo sem Medo e saindo às ruas contra a política do governo petista, levou o verde e amarelo para a fracassada campanha das “Diretas já” em 2017, lançou sua candidatura presidencial em 2018, ao invés de lutar pelos direitos políticos de Lula, e desmontou a mobilização pelo Fora Bolsonaro em São Paulo em 2020. Esse breve histórico é mais do que suficiente para comprovar o objetivo da “frente ampla”: em troca da promessa ou da perspectiva de conquistar algum cargo — seja uma prefeitura, seja um emprego na Folha de S.Paulo —, os setores mais carreiristas e pequeno-burgueses da esquerda nacional traem qualquer perspectiva de luta.
Em São Paulo, assim como em tantos outros lugares, a burguesia organizou uma complexa operação para impulsionar o candidato da “frente ampla” com o claro interesse de afundar a candidatura do PT — o partido mais perseguido pelo golpe de Estado — e promover figuras que serão utilizadas futuramente como “lideranças” da “nova esquerda” para impedir que a polarização política se desenvolva. Como a própria imprensa capitalista está deixando claro, Boulos teria se tornado uma nova liderança nacional da esquerda.
Trata-se, obviamente, de uma grande falsificação, já que Boulos não teve uma grande votação — apenas roubou milhares de votos do PT por meio de uma extorsão política e obteve outros milhares de uma classe média bastante conservadora. Contudo, esse posto dado pela imprensa burguesa mostra claramente quais são os planos da burguesia para os candidatos da “frente ampla”.
O PCO nas eleições
O PCO, em todo o País, foi o único partido a denunciar as eleições como uma enorme fraude montada para aprofundar a ditadura dos golpistas. Rejeitando completamente a política demagógica e cretina da esquerda pequeno-burguesa em sua disputa por cargos, o PCO compareceu às eleições para convocar os trabalhadores a se mobilizarem pelo Fora Bolsonaro e por Lula presidente. Ao mesmo tempo, foi o único a denunciar a política podre da “frente ampla”. Seu programa e sua tática eleitoral foi decidida democraticamente na sua 30ª Conferência Nacional.
Fui candidato do PCO à prefeitura do Recife e fui testemunha da fraude eleitoral. Nossa atuação não apenas serviu para denunciar a fraude, como acabou provocando os golpistas a revelarem de maneira ainda mais explícita os seus interesses e os seus métodos. Em um debate em que participei, um complô de candidatos bolsonarista exigiram que eu tirasse da parede cartazes que pediam o Fora Bolsonaro. A mediação do debate, composta por membros da UFPE, cedeu à chantagem dos direitistas e ainda alegou que eu estava “causando tumulto”. Detalhe: de todos os candidatos, sou o único estudante da UFPE. Em outro episódio, um blogueiro covarde do Jornal do Commercio publicou um artigo alegando que eu seria “o candidato que não é candidato”, simplesmente porque nosso Partido tem um programa nacional de luta, e não um programa de governo municipal mentiroso e demagógico. Em outra ocasião, o mesmo Jornal do Commercio excluiu o vídeo de minha entrevista porque outro candidato teria divulgado uma informação falsa.
O interesse em sabotar, censurar e atacar o PCO era tamanho que o Datafolha chegou a afirmar que o número de pessoas que jamais votariam em mim era maior do que o número de pessoas que me conheciam! E, para completar, a Justiça Eleitoral fascista resolveu indeferir, em primeiro grau, minha candidatura. Afinal, no Brasil, tornou-se comum o Judiciário, e não mais os partidos, decidirem quem deve ser candidato ou não. O PCO, naturalmente, recorreu da decisão, e até hoje não foi julgada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Mesmo minha candidatura estando em recurso, a imprensa burguesa passou a tratar minha candidatura como se não existe. Em todos os momentos, lembravam que eu estava indeferido — uma “fake news” que não levou a punição alguma —, e não que minha candidatura estava regular enquanto os recursos não fossem julgados. O Jornal do Commercio chegou a mencionar que só havia 10 candidatos no Recife, e não 11, ignorando completamente minha candidatura. Não bastasse toda a palhaçada, no dia da eleição, a Justiça Eleitoral não divulgou a quantidade de votos que o PCO teve em Recife.
Esse relato não é único, mas é a regra de todas as candidaturas do PCO nas eleições de 2020.
Uma vitória da ala lulista em Recife
A operação da “frente ampla” se tornou bastante complexa de ser realizada em Recife. Isso porque o PT decidiu, corretamente, lançar a candidatura de Marília Arraes à prefeitura do Recife. Como ela é uma candidata apoiada pela base do partido e pelo próprio Lula, tendo, inclusive, se envolvido com a luta contra o golpe e a luta pela liberdade de Lula, sua candidatura tinha muita força. Assim, repetir a chantagem feita em São Paulo, onde a burguesia exigia que os petistas votassem em Boulos, não seria possível no Recife. Afinal, não teria como convencer nenhum petista sincero de que a candidatura do golpista João Campos seria mais esquerdista que a de Marília Arraes.
A decisão do PT foi tomada após uma verdadeira guerra interna. Dentro do PT, a sua ala direita, comandada por Humberto Costa, sempre defendeu a submissão do partido ao PSB. Em 2018, essa ala chegou a rifar a candidatura de Marília Arraes ao governo do estado para apoiar o PSB. Com o aumento da crise do partido, a ala lulista conseguiu se impor e derrotar a ala direita. Foi por isso que a “frente ampla” não pôde ser aplicada tão facilmente.
Mesmo assim, a burguesia organizou a sua “frente ampla”, embora com características diferentes das dos demais estados. O PCdoB, que tinha uma tradição nacional de coligação com o PT, decidiu apoiar o PSB. O PCB e a UP, que decidiram apoiar praticamente todas as candidaturas do PSOL nas capitais, lançaram candidatura própria, em vez de apoiar o PT. O PDT, partido da “esquerda burguesa”, também entrou na chapa comandada pelo PSB. E, o que é mais importante: toda a propaganda de que a esquerda deveria se unir contra a direita, utilizada para impulsionar Boulos em São Paulo, foi esquecida no Recife. Note-se bem: praticamente toda a direita golpista estava na chapa adversária, de João Campos.
A ditadura do TRE-PE
No dia 29 de setembro, o Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Pernambuco (TRE-PE) tomou uma decisão inédita: proibiu os atos de rua durante o restante da campanha eleitoral. O pretexto seria o de conter a pandemia de coronavírus. Uma verdadeira piada, uma vez que o governo do PSB estava, ao mesmo tempo, reabrindo as escolas. O único interesse do TRE-PE era o de impedir a campanha de rua para facilitar que a direita fraudasse as eleições. Em coluna neste diário, expliquei detalhadamente como se deu a sessão horrenda que aprovou o cancelamento dos atos de rua.
O voto da direita, finalmente, não vem da militância, mas sim da compra de votos e de lideranças comunitárias, além da manipulação da opinião pública por meio da imprensa capitalista. Tudo isso podia ser feito mesmo com a proibição do TRE-PE. E mais: sem um clima de mobilização nas ruas, contestar uma eventual fraude que tenha acontecido nas urnas se tornaria ainda mais difícil.
Manipulação das pesquisas
Apesar de a decisão do TRE-PE ter sido francamente contra a candidatura do PT, Marília Arraes decidiu não denunciar a arbitrariedade e acatou a decisão da Justiça Eleitoral. Certamente não por coincidência, as pesquisas de intenção de votos seguintes apresentaram Marília Arraes no segundo turno — uma espécie de “cala-a-boca” para que sua militância não se voltasse contra a decisão do TRE-PE e se contentasse com as condições que foram colocadas.
Até o dia da eleição, não havia qualquer garantia de que Marília Arraes fosse, de fato, para o segundo turno. Embora as pesquisas lhe colocassem em segundo lugar nas intenções de voto, a votação do terceiro e do quarto colocados, se somada, era superior a de Marília Arraes e de João Campos. Isto é: a burguesia poderia, no dia da eleição, diminuir a votação da candidata Patrícia Domingos, do Podemos, para elevar a votação de Mendonça Filho, do Democratas, e tirar Marília Arraes do segundo turno.
O primeiro turno
No dia da eleição, a burguesia acabou permitindo que Marília Arraes chegasse ao segundo turno, provavelmente com a consideração de que restringir a disputa entre o DEM e o PSB seria uma fraude muito escancarada e aumentaria a crise política no estado. No entanto, é preciso destacar que a própria votação da direita é uma gigantesca fraude: atribuir 25% dos votos ao DEM e 14% dos votos ao podemos é uma falsificação total da realidade, que só foi possível porque a burguesia tentou ao máximo impedir que a polarização política se desenvolvesse.
No final das contas, a votação do primeiro turno foi de 27,9% para o PT, contra 72% para uma coligação que reúne desde o “centrão” golpista (PP, MDB etc.) e a extrema-direita bolsonarista (Podemos, PRTB, PSL etc.), passando pela “esquerda burguesa” (PDT e PSB). Essa votação é uma grande falsificação, uma vez que, em termos concretos, a disputa se dava entra a candidata que representa a ala lulista contra os inimigos do povo. Se considerarmos as pesquisas de intenção de voto de 2018, vamos constatar que, mesmo diante de todo tipo de calúnia e perseguição, a proporção da população que defende o ex-presidente Lula é uma maioria.
A fraude, neste sentido, consistiu justamente em ocultar que as eleições em Recife seriam uma disputa entre a ala lulista e os golpistas. Isso se deu, por um lado, pelas proibições absurdas do TRE-PE e pelo próprio caráter antidemocrático das eleições. Por outro, porque, apesar de a candidatura de Marília Arraes não ser a candidatura da “frente ampla”, a burguesia encontrou um jeito de infiltrar alguns cavalos de Tróia para impedir que ela alçasse voo. Dentre esses infiltrados podemos citar: o PSOL, como candidato a vice na chapa, partidos de direita como o PMB e o PTC, alianças de ocasião com partidos direitistas como o Podemos no interior do estado para angariar apoio contra o PSB, e a presença de setores da ala direita do PT.
O segundo turno
Após o primeiro turno, as pesquisas da imprensa burguesa sempre mostravam um cenário bastante apertado, dando a ilusão de que Marília Arraes teria chances de vencer. No dia do segundo turno, três institutos de pesquisa previram 50% dos votos para cada lado. No entanto, isso foi muito longe do que ocorreu: João Campos venceu as eleições com 56,27% dos votos. Mais de 21% dos eleitores sequer foram votar, resultado da ausência de um clima de verdadeira guerra política.
Apesar de tudo isso, de toda a manipulação da burguesia, de toda a fraude, de toda a tentativa de amenizar a polarização política, o fato de que a candidatura de Marília Arraes era a mais forte da esquerda nessas eleições forçou a burguesia a intensificar os seus métodos podres. Nesse sentido, para garantir a vitória de seu candidato, a direita usou e abusou, nas vésperas das eleições, de todo tipo de calúnia, aos moldes do que foi feito na campanha contra Dilma Rousseff em 2016. A campanha, visivelmente direitista, chegava a alegar que Marília Arraes seria “contra a Bíblia”. Ao mesmo tempo, figurões da “frente ampla”, como Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede) e Flávio Dino (PCdoB) entraram pessoalmente na campanha em prol de João Campos. Por fim, dezenas de vídeos flagraram a compra de votos e o uso da boca de urna por parte do PSB. Vários funcionários da prefeitura e do Estado denunciaram que foram chantageados para votar no PSB.
Anular as eleições?
Os métodos podres, bolsonaristas e remanescentes da República Velha, que jamais abandonou o Brasil, causaram muita revolta entre os apoiadores de Marília Arraes. A vereadora eleita pelo PT, Liana Cirne Lins, que também é articulista do Brasil 247, chegou a declarar: “se a justiça eleitoral não anular a eleição em Recife, ela pode fechar”. Não guardamos qualquer tipo de ilusão com a Justiça Eleitoral, uma vez que o seu papel é justamente o de referendar a ditadura dos golpistas. No entanto, como igualmente vítimas desse processo eleitoral fraudulento e antidemocrático, não podemos deixar de nos solidarizar aos companheiros que foram roubados em plena luz do dia. Reivindicar a anulação das eleições, diante de toda a sabotagem da direita, é mais do que um ato legítimo. É dever de toda a esquerda denunciar amplamente a farsa do processo eleitoral, utilizado tão somente para aprofundar a ditadura dos golpistas.