O cantor cubano Silvio Rodríguez foi um dos maiores nomes do movimento que ficou conhecido como a Nova Trova Cubana e também um dos mais talentosos músicos da América Latina, autor de canções de teor engajado e que representavam os ideais da Revolução Cubana. É autor de uma obra de mais de 500 canções e mais de 1000 poemas.
A infância
Silvio Rodríguez Domínguez nasceu em San Antonio de los Baños, na província de La Habana, Cuba em 29 de novembro de 1946. A região em que nasceu era um vale fértil, famosa pelo cultivo de tabaco. Os pais de Silvio eram agricultores pobres. Seu pai, Victor Dagoberto Rodríguez Ortega era também um poeta amador, engajado na luta pelo socialismo e sua mãe, Argelia Dominguez Léon, era dona de casa e também cantora amadora, com um repertório de canções cubanas e espanholas, especialmente de boleros. Ela foi a maior influência musical de Silvio e no futuro viria a cantar em alguns discos do cantor.
Aos sete anos Silvio foi estudar piano, solfejo e teoria musical no Conservatório La Milagrosa em Havana, onde foi elogiado pelos professores. Mas a situação financeira precária da família o obrigou a interromper estes estudos e voltar para casa. Lá aprendeu também a apreciar a música clássica, de Bach e Beethoven, dos cubanos Sindo Garay e César Vallejo e a poesia do revolucionário José Marti.
Silvio Rodríguez tinha 13 anos de idade quando o movimento 26 de Julho, liderado por Fidel Castro, destituiu o ditador Fulgencio Batista e tomou o poder em Cuba. Silvio se entusiasmou com a Revolução e alguns anos depois se juntou à Brigada Conrado Benitez de Alfabetização, programa criado pelo governo revolucionário em 1961 para ensinar os camponeses pobres a ler e a escrever.
O jovem Silvio passou um ano na zona montanhosa de Escambray, a cerca de 300 quilômetros de Havana, contribuindo para fazer com que Cuba fosse o primeiro país da América Latina a erradicar o analfabetismo. Segundo Rodríguez: “alfabetizei o batalhão 339 de Cienfuegos, formado por operários e camponeses”, se referindo aos soldados, então mobilizados para combater os diversos focos contrarrevolucionários presentes na ilha, especialmente após a invasão frustrada de Playa Girón pelos Estados Unidos. Neste período Rodríguez morou com uma família de camponeses e conheceu o que era a verdadeira pobreza da Cuba do passado.
A história de Rodríguez trabalhando na alfabetização do povo gerou um filme longa-metragem, “Silvio Rodríguez: Mi Primera Tarea”, dirigido pela norte-americana Catherine Murphy, que foi lançado no Festival de Buenos Aires em setembro de 2020.
Após esta experiência Rodríguez começou a trabalhar como desenhista de quadrinhos na revista Mella, órgão da União dos Jovens Comunistas, ao mesmo tempo em que um amigo, Lázaro Fundora, o ensina a tocar o violão. Aos 16 anos é chamado a fazer o Serviço Militar.
Silvio foi cumprir sua obrigação levando o violão, que se tornaria seu companheiro inseparável. No exército começa a compor suas primeiras canções como “Saudade” e “La Cascada” e a se apresentar para os outros soldados. Ele chegou até a se apresentar em festivais musicais do exército. Dentre as canções com mensagens políticas que ele criou na época estavam “Por Qué”, sobre a discriminação racial nos Estados Unidos e “La Leyenda del Águilla”, sobre a Guerra do Vietnã. Após concluir seu tempo no exército continuou a lapidar seus talentos de composição com outros jovens poetas em Havana, participando de apresentação coletivas. Logo torna-se um compositor conhecido.
Em 13 de junho de 1967, dia seguinte de sua saída do exército, apareceu na televisão cubana, no programa “Música y Estrellas”, onde apresentou duas de suas composições, “Quédate” e “Sueño del Colgado y la Tierra” e no ano seguinte torna-se apresentador do programa “Mientras Tanto”.
Segundo relatos um produtor abordou Rodríguez dizendo: “rapaz, você poderia se tornar uma estrela em alguns meses se não cantasse canções tão estranhas”. Ao que Rodríguez retrucou que não tinha nenhum interesse em se tornar uma estrela. Segundo ele “a canção tem que ser colocada em contato direto com a realidade, deve comunicar-se com os interesses básicos do homem. Só isso nos permite estabelecer uma ajuda recíproca entre o homem e a canção. Nisto reside, para mim, a eficácia fundamental de uma música. Compor por compor, cantar por cantar, são coisas que nunca compreendi”.
O stalinismo na burocracia cubana
Em 1968 Rodríguez começou a ter problemas com algumas das autoridades do setor cultural. Naquela época Cuba adotou o sistema de nacionalização de todas as atividades econômicas, um modelo inspirado pela União Soviética. O país se tornou economicamente dependente dos soviéticos e esse sistema veio acompanhado de uma atmosfera ideológica que era intolerante com os dissidentes. Os burocratas da cultura ligados à União Soviética exigiam a completa eliminação da influência dos americanos na cultura cubana. Desse modo, de 1968 até o início dos anos 70, intelectuais e artistas poderiam ser mandados para campos de trabalho ou serem colocados em listas negras. Foi o que aconteceu com Rodríguez que não era mais chamado para se apresentar no rádio e na TV e nem para participar de eventos musicais.
Isso aconteceu porque Rodríguez havia admitido que sua música tinha influências dos Beatles e outros artistas americanos e britânicos, especialmente do rock.
Foi por este clima de perseguição que a partir de 1969, por quase cinco meses, Rodriguez resolveu sair de Cuba, trabalhando como parte da tripulação do navio pesqueiro Playa Girón. Seu trabalho principal era tocar e entreter os pescadores com sua música. Durante este período escreveu 62 canções, entre elas algumas de suas músicas mais famosas como “Ojalá” e “Playa Girón”.
Para alívio de Rodríguez, Pablo Milanés, Noel Nicola e outros cantores e compositores eles encontraram abrigo na organização Casa de Las Américas, dirigido por Haydée Santamaria, uma revolucionária que participou do movimento 26 de Julho, uma das poucas mulheres diretamente envolvidas nas brigadas revolucionárias. A Casa de Las Américas teve um papel importante na formação da Nova Trova Cubana, dando abrigo e apoio e protegendo os artistas da perseguição da burocracia estatal. O seu papel não se restringiu aos artistas cubanos, estendendo-se a vários outros artistas de esquerda vindos de outros países do continente.
Em 1970 Rodríguez, Noel Nicola, Pablo Milanés e outros músicos se tornaram parte do Grupo de Experimentación Sonora del ICAIC, um coletivo formado por Alfredo Guevara, presidente do Instituto Cubano de Arte e indústria Cinematográfica. O intuito inicial do coletivo era providenciar música para trilhas sonoras dos filmes produzidos pela organização. O coletivo era dirigido pelo grande músico erudito Leo Brouwer. Os trabalhos do Grupo de Experimentación Sonora se caracterizavam pela extrema liberdade criativa, com músicas que exploravam todos estilos, do mais popular à mais vanguardista e experimental. O grupo lançou vários discos, incluindo alguns em parceria com a cantora chilena Isabel Parra e o uruguaio Daniel Viglietti.
Este período no Grupo de Experimentación Sonora foi bastante útil para todos os membros da futura Nova Trova Cubana. Milanés, Rodríguez e Noel Nicola não tinham uma formação musical sólida e não sabiam ler partituras. Durante um período de um ano e meio tiveram um curso intensivo de música, algo como seis anos de aprendizado concentrado. Dentre os músicos que deram aulas ao grupo estavam Federico Smith (que arranjou várias músicas de Rodríguez para orquestra), Leo Brouwer (aulas de forma, orquestração, estética e contraponto) e Jerónimo Labrada (que deu aulas de eletroacústica).
Nos anos 70 os artistas da Nova Trova começaram a ser melhor aceitos. Muito disso se deveu ao desejo do governo cubano de encontrar um campo cultural em comum com outros países latino americanos, especialmente com o Chile. Desde os anos 60 surgiu o movimento da Nova Canção Latino-Americana, artistas que traziam conteúdo político em suas canções de raiz popular e folclórica. No Chile Victor Jara, Rolando Alarcón e outros artistas popularizaram o movimento da Nueva Canción Chilena. Na Argentina houve o Nuevo Cancionero Argentino, liderado por Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui e César Isella. No Uruguai alguns dos representantes desse movimento foram Daniel Viglietti e Alfredo Zitarrossa.
Victor Jara, Isabel Parra e o grupo Inti Illimani se apresentaram na Casa de Las Américas em 1971 e contribuíram para tornar o movimento da Nova Trova Cubana mais aceitável. Em 1973 o movimento foi institucionalizado como Movimiento de la Nueva Trova, completo, com o registro dos membros, um corpo de diretores, locais para apresentações e eventos organizados. Apenas a partir deste momento é que os artistas da Nova Trova puderam começar a registrar seus discos solo, com apoio oficial do governo.
O primeiro LP solo de Silvio Rodríguez foi lançado em 1975, “Días y Flores”, na qual é acompanhado por músicos do Grupo de Experimentación Sonora. O disco contém clássicos como “Playa Girón” e “Santiago de Chile”. O disco foi proibido em países como a Espanha (então sob a ditadura de Franco) e Chile (sob a ditadura de Pinochet). Seus discos seguintes são “Al Final de Este Viaje” (1978), “Mujeres” (1979) e “Rabo de Nube” (1979).
Em 1976 Rodríguez se alistou como membro da Brigada Artística para lutar junto das brigadas internacionalistas cubanas na guerra de Angola. Lá compõe canções como “Pioneros”, “La Gaviota” e “Canción Para Mi Soldado”.
Seu álbum “Unicornio” (1982) foi o disco que trouxe a fama internacional ao cantor, uma mistura de estilos como a chacarera, a música folk americana e o pop latino, consolidando a reputação da Nova Trova Cubana. O disco traz canções como “Canción Urgente Para Nicaragua”, homenagem à Revolução Sandinista de 1979.
Ao todo Silvio Rodríguez lançou mais de vinte álbuns, sendo que o seu mais recente saiu em 2020, “Para La Espera”, um trabalho digno de seu aniversário de 74 anos de muita música de qualidade, militância política e luta pela liberdade de todos os povos do mundo.