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Radicalismo e espiritualidade

Albert Ayler, o Espírito Santo do free jazz

São 50 anos da morte do grande saxofonista americano. Foi um dos grandes nomes do free jazz, ao lado de John Coltrane, Ornette Coleman e Sun Ra

Albert Ayler foi um dos músicos mais radicais de sua época. Sua obra foi classificada como free jazz, mas mesmo este rótulo parece pequeno e insuficiente para uma música tão original e tão pouco ortodoxa. Sua gravadora tentou, por várias vezes, forçá-lo a gravar material mais comercial, o que ele sempre resistiu, mantendo-se fiel apenas às suas próprias convicções, o que fez com que ele tivesse dificuldades financeiras por toda a vida. Ayler teve uma carreira curta – morreu com apenas 34 anos – mas suas inovações inspiraram inúmeros músicos, não apenas do jazz, mas em estilos como o rock, o hardcore e o rock experimental.

Ayler foi um prodígio no saxofone tenor. Ainda adolescente dominava como poucos a técnica de seu instrumento, além de compreender como poucos o bebop, o que o levou a ser conhecido como “Little Bird”, uma referência a Charlie “Bird” Parker. A música de Ayler tinha um forte componente espiritual, do mesmo modo que seu mentor e ídolo, John Coltrane, fato que se reflete nos títulos de seus discos como “Spiritual Unity”, “Spirits Rejoice” e “Music Is The Healing Force Of The Universe”.

Neste dia 25 de novembro completam-se 50 anos da morte do grande artista.

Sua infância na igreja

Albert Ayler nasceu em Cleveland, estado de Ohio em 13 de julho de 1936. Seu pai, Edward, sempre o encorajou a aprender e a se dedicar à música. Edward era um saxofonista semiprofissional e violinista. Edward e Albert costumavam fazer duetos de saxofone na igreja e costumavam ouvir juntos a discos de jazz, especialmente da era do swing e os mais recentes, de bebop. Estudou na John Adams High School e se formou em 1954 aos 18 anos. Em seguida foi estudar na Academy of Music em Cleveland com o saxofonista de jazz Benny Miller.

Em 1951, aos 15 anos de idade se juntou à sua primeira banda, o Lloyd Pearson and his Counts Of Rhythm, o que levou em seguida a conhecer o cantor e gaitista de blues e R&B Little Walter, com quem passou a tocar em bares e teatros. Aos 18 anos de idade, por causa da falta de dinheiro, acabou se alistando no Exército, onde passou a tocar o saxofone alto e a montar grupos com outros soldados que também viriam a ser tornar famosos como o saxofonista tenor Stanley Turrentine. Lá Ayler também participou da banda do regimento tocando marchas militares ao lado do também futuro compositor Harold Budd.

Em 1959 foi deslocado para Orleans, na França, onde tocava com a banda militar, além de continuar a desenvolver seu estilo próprio, estilo este que foi altamente influenciado pelas audições da música gospel, spirituals, música de bandas militares, rhythm and blues, jazz e blues. Todos estes elementos estavam presentes num momento em que o jazz começava um novo movimento em direção ao chamado free jazz, trazido por nomes como Ornette Coleman, Cecil Taylor e John Coltrane.

Albert saiu do exército no final de 1961. Ele voltou à sua casa em Cleveland, mas permaneceu por pouco tempo. Tentou arrumar trabalho em Cleveland e em Los Angeles, mas o seu estilo cada vez mais radical e iconoclasta, que cada vez mais se afastava da harmonia tradicional do jazz, não era bem recebido por outros músicos. Desse modo ele se muda em 1962 para a Suécia onde inicia sua carreira profissional.

Início de carreira

Lá ele realiza várias gravações com grupos de suecos e dinamarqueses em sessões para rádios, além de tocar na banda do pianista Cecil Taylor no inverno de 1962/1963. O primeiro LP de Ayler foi “Something Different!!!!!!”, lançado em outubro de 1963 por uma pequena gravadora sueca, a Bird Notes. Foi logo seguido pelo disco “My Name Is Albert Ayler” no início de 1964.

Estes discos foram ouvidos por poucas pessoas e o próprio Albert estava relutante em gravá-los. Como ele declarou uma vez, a música que ele ouvia em sua cabeça ainda não havia tomado forma e que era ainda muito cedo para ele registrar a sua música. Esta impressão fica clara ao ouvir “My Name Is Albert Ayler”, um disco onde parece que Ayler e sua banda estão em planos diferentes.

Neste período Ayler conheceu o trompetista Don Cherry, que estava excursionando como parte da banda do veterano Sonny Rollins e viria a se tornar parte importante de seu futuro. Em fevereiro de 1963 Ayler volta a Cleveland e em seguida se muda para Nova York, então o epicentro do jazz. Naquela época gigantes do bebop como Dizzy Gillespie e Thelonious Monk ainda estavam na ativa e lançando discos importantes. Miles Davis estava em um período de transição, mas logo faria alguns de seus discos mais importantes e Charles Mingus estava no seu auge.

Free jazz

A novidade na cena de Nova York era o free jazz, iniciado em 1959 e cujo marco zero pode ser considerado o álbum “Free Jazz: A Collective Improvisation” que o quarteto duplo de Ornette Coleman havia lançado em setembro de 1961. Nesse disco seminal Coleman e seus músicos gravaram uma improvisação de 40 minutos, dividida entre os dois lados do LP. O formato da banda era de dois quartetos, cada um com dois instrumentos de sopro, baixo e bateria.

Dentro do free jazz os músicos tentaram mudar ou abolir várias das convenções estabelecidas no jazz como batidas regulares de bateria, timbres, mudanças de acordes. O objetivo final era mesmo acabar com a noção da harmonia, elemento fundamental da música ocidental. Nesta busca pela inovação os músicos de free jazz acabaram sendo influenciados pela música vinda de outros países como os asiáticos e africanos, que não seguem a tradição ocidental. A introdução do free jazz abriu novos horizontes para o jazz, mas também sugeria a possibilidade do caos completo nas mãos de músicos inexperientes.

O free jazz ficou inexoravelmente ligado ao movimento de libertação do povo negro, que atingiu o seu auge durante os anos 60. O free jazz buscou se livrar das estruturas opressivas das convenções musicais do jazz, uma metáfora para os negros que queriam se livrar da estrutura opressiva da sociedade. O free jazz era uma expressão visceral, apaixonada e que encontrou em Albert Ayler uma de suas vozes mais expressivas.

1964 foi o ano mais documentado da carreira de Ayler, lançando muitos discos, sendo que o primeiro foi “Spirits” em março daquele ano. Foi também o ano em que foi contratado pela gravadora ESP-Disk, que lançou seu “Spiritual Unity”, seu primeiro trabalho a ser reconhecido como um clássico.

Neste álbum Ayler é acompanhado por Gary Peacock (baixo) e Sunny Murray (bateria). Livre de um instrumento harmônico como o piano, Ayler encontra neste trio uma liberdade extrema e músicos que compreendem suas ideias. Ayler fica livre para explorar escalas microtonais com uma absoluta independência de ritmos fixos, algo que requer uma profunda interação entre os músicos. Como disse Ayler: “nós não estávamos tocando, estávamos ouvindo um ao outro”.

Na sequência o trio de Ayler e mais o trompetista Don Cherry, John Tchicai (sax alto) e Roswell Rudd (trombone) colaboram no disco “New York Eye And Ear Control”, uma trilha sonora improvisada para o filme de mesmo nome do diretor canadense Michael Snow.

No final de 1964 o trio de Ayler e mais Don Cherry partem para uma excursão pela Europa, especialmente pelos países escandinavos. Esses shows rendem vários discos que seriam lançados nos anos seguintes como “The Hilversum Session”, “The Copenhagen Tapes” e “Ghosts”. Don Cherry resolveu ficar na Suécia por isso na volta para Nova York Albert resolve convidar o seu irmão, Donald Ayler para assumir o posto de Cherry.

Donald era saxofonista e o trompete era um instrumento novo para ele. A música de Albert necessitava de um trompetista e um que compreendesse o seu estilo. Por isso ele considerou conveniente a entrada de Donald, o que fez com que a música de Albert também acabasse mudando para acomodá-lo. O novo estilo de Ayler, com a entrada de Charles Tyler (sax alto), foi comparado a uma banda de fanfarra de Nova Orleans, ou como queriam alguns, “ao exército da salvação sob efeito de LSD”, o que mais uma vez confundiu os críticos, que não sabiam como encarar esta música, se era sério ou apenas uma paródia. Um dos discos dessa época foi “Bells”, que saiu em um disco de vinil transparente com música em apenas um lado, registro de uma apresentação furiosa do grupo no Town Hall em Nova York em 1965.

Donald Ayler tocou na banda de Albert até 1967 quando, após um histórico de problemas com álcool, sofreu um debilitante ataque de nervos.

John Coltrane

No dia 28 de março de 1965 o grupo de Ayler se apresentou no Village Gate em Nova York. Naquela ocasião o grupo foi acrescido do violoncelista Joel Freedman e Albert sentiu que o novo som que ele buscava estava chegando perto daquilo que ele tinha em mente. O concerto foi gravado pela nova gravadora de Ayler, a Impulse! Records. Ayler foi contratado por um pedido especial de John Coltrane, então o maior astro da gravadora. Coltrane também se apresentou naquele show, além de Sun Ra, Betty Carter e outros, um evento beneficente para o Black Arts Repertory Theater, uma associação que impulsionava a arte feita pelos negros e que foi fundada pelo poeta LeRoi Jones (mais tarde conhecido pelo nome de Amiri Baraka).

John Coltrane e LeRoi Jones eram importantes admiradores da música de Albert Ayler. Coltrane adorou a música do jovem Ayler e logo os grandes músicos se tornaram amigos próximos. Ambos eram músicos de extrema dedicação a seus instrumentos e de grande conhecimento da teoria musical. A música de Coltrane teve grande influência de Ayler, uma prova disso está em obras como “Selflessness” e nos temas altamente melódicos do álbum “Meditations” (1966).

No final de 1965 Ayler participou das gravações do disco “Sonny’s Time Now”, creditado a seu baterista Sonny Murray. Neste disco estão presentes Albert Ayler (sax tenor), Don Cherry (corneta), Henry Grimes e Lewis Worrell (baixos) e Sunny Murray (bateria), além de LeRoi Jones recitando um poema em “Black Art”. Este poema de Jones é um de seus mais controversos, um poema que se tornou peça central do seu movimento pelas artes negras. É outro álbum clássico do free jazz.

Os primeiros álbuns de Ayler pela gravadora Impulse! foram todos gravados ao vivo, também uma recomendação feita por Coltrane. Por esta época o grupo de Ayler já havia se expandido para um sexteto que incluía dois baixistas (Bill Folwell e Alan Silva), bateria (Beaver Harris), Joel Friedman (cello) e Donald Ayler (trompete). Esta nova formação com dois baixos consolidou ainda mais a radicalidade das ideias de Ayler.

Albert Ayler gravou o tema “For John Coltrane” em seu álbum “Albert Ayler In Greenwich Village”. Para esta gravação Ayler voltou a tocar o saxofone alto, como uma homenagem a Coltrane.

Em 1966 Ayler começou a cantar em seus shows e discos. Seu estilo vocal foi comparado a seu estilo no saxofone, incorporando ruídos, grunhidos e distorções, com um quase desprezo pela afinação. Ele continuou experimentando com sua voz pelo resto de sua carreira, o que foi mais um motivo de discussão entre críticos.

No ano seguinte John Coltrane acabaria morrendo de câncer com apenas 40 anos de idade e Ayler foi convidado a tocar em seu funeral. Era desejo de Coltrane que Ayler e Ornette Coleman tocassem nessa eventualidade. No funeral tocaram Ayler e Donald e mais Richard Davis (baixo) e Milford Graves (bateria). Tocaram três músicas com extrema intensidade e em certo momento Ayler começa a gritar desesperadamente. Era um grito de dor e também de júbilo pelo encontro de John com seu criador.

Segundo Ayler John Coltrane “era o pai, Pharoah Sanders era o filho e eu o Espírito Santo. Eram coisas que apenas ele costumava dizer”.

A partir de 1967 a música de Albert Ayler começou a ter novas mudanças, saindo da música puramente improvisada para composições mais tradicionalmente estruturadas, resultado das pressões que a gravadora Impulse! exercia em busca de discos mais acessíveis para o público. Nos anos seguintes Ayler lançou três discos com letras e vocais feitos por sua namorada, Mary Maria Parks e com mudanças de acordes regulares, batidas funk e instrumentos eletrônicos. Para Ayler tais mudanças foram apenas um retorno às suas origens no blues e R&B. Suas inclinações espirituais continuavam presentes e os discos continuaram não vendendo.

Seu último álbum foi “Music Is The Healing Force Of The Universe” que tinha a participação do guitarrista Henry Vestine da banda Canned Heat. Foi seu retorno ao blues, mas continuava repletos das variações de timbre características de Ayler e solos energéticos como sempre.

Muitos dos eventos finais de Ayler são um mistério. É certo que a Impulse! cancelou seu contrato por causa das baixas vendas e que Ayler vinha se comportando de maneira estranha. Ele também se culpava pelo estado que seu irmão Donald havia ficado e também pela sua penúria financeira.

Em 5 de novembro de 1970 Albert Ayler teve uma discussão com sua namorada Mary e foi dado como desaparecido. O seu corpo foi encontrado no dia 25 de novembro boiando no East River em Nova York e a polícia presumiu que ele se suicidou.

Albert Ayler será sempre lembrado como um dos gigantes do free jazz, ao lado de seu amigo John Coltrane, o visionário Sun Ra, Cecil Taylor e Ornette Coleman. Sua influência sobre os músicos de jazz é imensa, como se pode ver na sua lista de admiradores que inclui Charles Gayle, Peter Brötzmann, Frank Lowe e Marion Brown. Fora do jazz estão fãs como o grupo Sonic Youth, o cantor inglês Roy Harper e o guitarrista Marc Ribot.

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