No dia 29 de outubro, o Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Pernambuco (TRE-PE) proibiu a campanha de rua durante as eleições municipais de 2020. A proibição já é, em si, absurda, pois contraria direitos democráticos elementares. Contudo, uma análise profunda da sessão do TRE-PE que levou a essa decisão revela muito mais do que uma aberração jurídica: trata-se de mais um avanço da extrema-direita no regime, bem como uma operação para impedir o PT de chegar ao segundo turno das eleições municipais.
O Rei Sol de Pernambuco
Uma das particularidades do julgamento do TRE-PE foi que o seu presidente se mostrou um aspirante a monarca. O fascista Frederico Neves não era apenas um desembargador conduzindo uma sessão, mas sim o dono do tribunal. Ou, talvez, do estado de Pernambuco. Algo como o Rei Sol, alcunha dada a Luís XIV.
No meio de uma fala sua, o presidente parou e pediu para que ligassem sua câmera, pois ele queria ser visto. Em outra discussão com seu colega, falou que pouco se importava com as decisões nacionais da Justiça Eleitoral, mas sim com o que acontecesse nos limites de seu estado:
“Eu quero que isso repercuta aqui, nos limites do meu estado, nos limites das pessoas de Pernambuco porque o tribunal regional eleitoral é de Pernambuco, eu não estou preocupado com repercussão nacional”.
Em outro momento, ao ser questionado corretamente sobre o Estado Democrático de Direito, utilizou como argumento a sua “honra”:
“Ruy Trezena Patu Júnior: (…) mas para essa medida, precisa consultar os juízes e fazer o exame. Mas eu fico assim, tomar uma medida dessas, é um ato excepcional…
Frederico Neves: é um ato excepcional para uma situação excepcional, desembargador Trezena Patu. Eu sou um homem responsável, e eu não iria propor uma irresponsabilidade ao colegiado. Eu sou um homem de 66 anos de idade, 36 como juiz, tenho responsabilidade e respeito pelas pessoas”.
Como um aspirante a monarca exemplar, o Rei Sol de Pernambuco encerrou a sessão agradecendo a Deus:
“Muitíssimo obrigado. Me sinto, assim, honrado, de poder inteirar e presidir esse órgão colegiado. Honrado e feliz de Deus ter me dado a oportunidade de presidir essa Casa nesse momento”.
Jogada ensaiada
Frederico Neves iniciou a sessão dizendo que não esperava votar o assunto naquele dia:
“Evidentemente que essa proposição não precisa ser julgada agora, trata-se de um tema sensível, que cada um de nós precisa, talvez, refletir um pouco mais sobre isso, amadurecer um pouco mais sobre a questão, para que nós possamos, na próxima sessão do Tribunal Regional Eleitoral, deliberar a respeito dessa proposta da presidência do tribunal”.
No entanto, logo no início da discussão, o desembargador Gonçalves de Moraes, puxa-saco oficial do presidente do tribunal, defendeu que a pauta fosse julgada na mesmo dia. Mostrando-se “convencido” pelos “argumentos” de Gonçalves de Moraes, o Rei Sol de Pernambuco não tardou em propor o julgamento da proposta para o dia em questão — “eu vou me animar com o posicionamento do desembargador Carlos Moraes e vou propor agora que esse julgamento seja feito nessa sessão”.
Não bastando se revelar um puxa-saco do presidente, Gonçalves de Moraes, em sua argumentação, mostrou que o único objetivo daquela sessão era impedir a campanha de rua:
“Eu gostaria apenas de dizer que estou de pleno acordo com a proposição de vossa excelência. E que, considerando pelo calendário que já foi divulgado das sessões de novembro, a nossa próxima sessão depois dessa será realizada e está marcada para o dia 4 de novembro. (…) Então, penso que, já adiantando, estou de pleno acordo, acho que a Corte deveria, neste momento, em face do tempo que urge, porque quando chegar no dia 4, (…) aí teremos mais praticamente uma semana para cessar o período de propaganda. (…) A gente já poderia tirar um resultado para nós ganharmos tempo. Essa é uma reflexão que eu trago”.
Ora, mas o objetivo da proposta não seria combater a segunda onda da pandemia? Não. Conforme Gonçalves de Moraes deixa escapar, toda a discussão sobre as mortes e o perigo das aglomerações só faz sentido se for para impedir os atos eleitorais de rua. Depois das eleições, o tribunal não terá mais interesse no tema.
Julgamento de comadres
Não ficou claro de onde partiu, propriamente, a solicitação para que os atos fossem suspensos. Em uma situação normal, o tribunal deveria ser provocado pelo Ministério Público para, a partir de então, julgar um determinado processo. Contudo, durante a sessão, por repetidas vezes, Frederico Neves deu a entender que ele, como o autêntico Rei Sol de Pernambuco, era o criador da proposta:
“Senhores desembargadores, como eu disse, antes da reabertura dos trabalhos, essa é uma minuta que submeto à consideração superior da Casa”.
“Antes de chamar os feitos da pauta de julgamento, eu pediria a especial atenção e compreensão dos eminentes pares, do douto representante do Ministério Público, para proceder a leitura de uma minuta que retrata uma proposição da presidência à superior consideração do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Pernambuco”.
“Até eu mesmo orientei a minha assessoria durante o almoço, mas só tive conhecimento desta redação agora no final da tarde”.
Embora tenha sido, aparentemente, o autor da proposta, o Rei Sol de Pernambuco não deixou de convidar para a sessão o carniceiro Ministério Público, representado pelo procurador regional eleitoral Wellington Saraiva. Obviamente, o convidado estava alinhado com a proposta do presidente da Casa e defendeu a proibição dos atos de rua. Seus argumentos, inclusive, lembram os de Deltan Dallagnol e de toda a extrema-direita durante a perseguição ao ex-presidente Lula e ao PT. Um sermão entediante e abertamente reacionário, atacando “os políticos” — como se os promotores fossem santos — e a cultura do povo brasileiro:
“São verdadeiramente chocantes as imagens que têm circulado de verdadeiras ‘festas de carnaval’ que não percebem a gravidade do momento histórico que o Brasil e o mundo está [sic] vivendo. (…) Infelizmente, alguns homens e mulheres que se dispõem a disputar cargos eletivos em prol do interesse público, estão colocando apenas o seu interesse eleitoral, imediatista, à frente dessa preocupação”.
Ao mesmo tempo em que o TRE-PE decidiu convocar o Ministério Público para a sessão, também resolveu ignorar completamente os partidos políticos. Fato que, em si, demonstra a má-fé de Frederico Neves e como o julgamento foi uma completa fraude. Se o objetivo era debater seriamente o problema da pandemia, o tribunal deveria se preocupar, em primeiro lugar, em convocar os partidos para que esses defendessem sua proposta diante do problema.
Vemos aqui, portanto, a mesma ideologia reacionária da Operação Lava Jato. Os partidos e políticos deveriam ficar à margem das decisões fundamentais da sociedade porque seriam todos eles corruptos, irresponsáveis e interessados. Mas, por algum motivo divino, os juízes, promotores e policiais seriam todos retos, responsáveis e abnegados. O único objetivo por trás dessa concepção é o de colocar o Poder Judiciário, que é o único que não tem controle popular algum, uma vez que não é eleito, como um poder supremo. Em outras palavras, instaurar uma ditadura.
Pelas próprias palavras do representante do promotor, que vê no carnaval algo demoníaco, os “santos” do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia odeiam tudo que vem do povo. E é assim que o TRE-PE, como todo órgão do Judiciário, se comportou na sessão: como uma ditadura completamente alheia aos interesses da população.
Como não poderia deixar de ser, o julgamento farsesco acabou aprovando a proposta do Rei Sol de Pernambuco, tendo como resultado a deliberação da Resolução 372/2020. Veremos, a partir de agora, alguns detalhes sobre a resolução votada pelos desembargadores, de modo a comprovar a mediocridade da Corte e seu caráter viciado.
OMS
A Organização Mundial da Saúde aparece logo na primeira consideração apresentada na resolução:
“CONSIDERANDO a declaração, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 30 de janeiro de 2020, de que o surto da doença causada pelo novo coronavírus (Covid19) constitui Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII)”.
Contudo, isso não quer dizer absolutamente nada: suas diretrizes são apenas orientações, e não lei no Brasil. Para fins de fundamentação jurídica, de nada serve evocar a OMS. Seria o mesmo, por exemplo, que citar uma bula papal como argumento para uma lei contra o direito ao aborto.
Calamidade Pública
O estado de calamidade pública, que realmente foi decretado pelo governo do estado, não tem relevância alguma, do ponto de vista do embasamento, para a proposta do Rei Sol de Pernambuco. Mesmo assim, isso consta em sua fundamentação:
“CONSIDERANDO o Decreto Estadual nº 48.833, de 21 de março de 2020, que decreta “Estado de Calamidade Pública”, no âmbito do Estado de Pernambuco, em virtude da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus”.
Uma interpretação vulgar poderia levar em conta que a calamidade pública seria um estado especial em que qualquer coisa estaria permitida. Mas isso está muito longe de ser verdade. Segundo o decreto federal nº 7.257/2010, a calamidade pública é uma “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido”. O mesmo decreto, por sua vez, não prevê, em momento algum, que, nessa situação, os direitos democráticos podem ser rasgados. Na verdade, prevê apenas que o estado que decretar calamidade pública pode solicitar recursos humanos, materiais, institucionais e financeiros para o governo federal. O decreto estadual nº 48.833/2020, que estabelece o atual estado de calamidade em Pernambuco, também não apresenta qualquer restrição aos direitos democráticos.
O Rei Sol de Pernambuco, pelo que se vê, acabou confundindo “estado de calamidade” com “estado de sítio”.
Emergência em saúde pública
Não bastasse a vergonha de falar em “calamidade pública” em um assunto que nada tem a ver com isso, a resolução do TRE também faz uso inadequado de uma lei federal sobre a “emergência em saúde pública”:
CONSIDERANDO a Lei Federal nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que reconhece “emergência em saúde pública de importância internacional”, em decorrência da infecção pelo novo coronavírus.
Mesmo a lei tendo sido aprovada pelo governo Bolsonaro, ela é muito menos antidemocrática que a resolução do Rei Sol de Pernambuco. A lei trata apenas do “isolamento” e da “quarentena”, sem fazer qualquer referência à prisão daqueles que organizarem manifestações políticas:
“Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I – isolamento: separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus; e
II – quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”.
E ainda estabelece que:
“§ 2º Ficam assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo:
(…)
III – o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020”.
No fim das contas, citar a lei apenas torna a sustentação de Frederico Neves ainda mais débil, uma vez que sua resolução não assegura as “liberdades fundamentais das pessoas”.
Vídeos na imprensa e redes sociais
Um dos argumentos da resolução do TRE-PE contra os atos de rua é o de que existem “vídeos” que comprovariam o mau comportamento de candidatos e apoiadores:
“CONSIDERANDO que, a despeito da orientação deste Tribunal Regional, os inúmeros vídeos divulgados pela imprensa e nas redes sociais, desde o início da campanha eleitoral, estão a revelar a realização de incontáveis e repetidos atos de campanha eleitoral (tais como passeatas, carreatas, motocatas e comícios) nos quais são notórias as aglomerações de pessoas e o negligenciamento quanto ao uso de máscaras e aos demais cuidados”
É possível, de fato, que haja os vídeos. No entanto, esse tipo de declaração não tem valor jurídico algum. Seria necessário que o material fosse devidamente apresentado e discriminado no processo julgado. Como a proposta foi apresentada de surpresa e como o julgamento durou apenas 51 minutos, o presidente do TRE-PE também não poderia alegar que o material já havia sido passado anteriormente para apreciação dos colegas.
A menção aos vídeos, nesse sentido, não pode ser aceita como prova. Caso contrário, bastaria futuramente que qualquer juiz falasse genericamente que “há vídeos” de uma pessoa cometendo um assassinato que isso seria suficiente para incriminá-la.
Aglomerações proibidas
Outra fundamentação completamente falsa apresentada pelo Rei Sol de Pernambuco é a de que as aglomerações estariam proibidas em Pernambuco:
“CONSIDERANDO que, estando as aglomerações expressamente proibidas no Estado de Pernambuco, não há razão para permiti-las em atos de campanha”.
Não há qualquer lei ou decreto que proíba “aglomerações”. O que há é uma série de normas e restrições para determinados tipos de estabelecimentos e atividades. No início da pandemia, o governo do estado chegou a proibir reuniões com mais de 10 pessoas. Hoje, no entanto, esse decreto não está mais em vigor.
Se as aglomerações fossem proibidas, os ônibus estariam todos apreendidos e lojas e fábricas, fechadas. Nem mesmo no caso dos centros de compras, o governo proíbe as aglomerações, mas sim recomenda que sejam evitadas:
Mais uma mentira do Rei Sol de Pernambuco… Infelizmente (para ele), não basta falar para que as coisas se tornem verdade.
Emenda nº 107
O único argumento jurídico que o Rei Sol de Pernambuco utiliza de fato é o de que sua decisão estaria fundamentada na Emenda nº 107, que diz, no §3º, do seu art. 1º:
“os atos de propaganda eleitoral não poderão ser limitados pela legislação municipal ou pela Justiça Eleitoral, salvo se a decisão estiver fundamentada em prévio parecer técnico emitido por autoridade sanitária estadual ou nacional”.
O que a lei diz, muito claramente, é que, se houver um parecer técnico, a Justiça Eleitoral poderia limitar o ato de propaganda. A interpretação do presidente do TRE, entretanto, foge bastante da realidade.
Em primeiro lugar, não é porque há uma emenda constitucional que um tribunal poderá destruir direitos constitucionais fundamentais. O direito à manifestação é clausura pétrea e, portanto, não pode estar em contradição com uma decisão tomada nos marcos da legalidade. Se a Justiça Eleitoral acha que deveria limitar de alguma maneira os atos de propaganda, deveria discutir com os interessados e encontrar meios que não sejam contrários ao direito à manifestação. Cabe lembrar ao Rei Sol de Pernambuco, inclusive, que limitar e proibir são coisas bastante distintas.
Outra consideração importante é que o parecer técnico já foi dado no dia 29 de setembro e o próprio TRE autorizou a campanha eleitoral com base nesse parecer. Como a própria resolução deixa claro, a nova decisão é baseada na imprensa e nas notícias que os desembargadores disseram ter conhecimento, e não em um novo parecer técnico:
“(…) nos últimos dias, a imprensa tem noticiado a reacelaração do contágio pelo novo coronavírus (Covid-19) e o retorno da situação de crescente ocupação de leitos de enfermaria e de UTI para a Covid-19 na rede pública e privada de Pernambuco”
“CONSIDERANDO a notícia corrente no sentido de que uma segunda onda de Covid-19 pode chegar ao Brasil e ao Estado de Pernambuco, à semelhança do que vem ocorrendo em países da Europa e da América do Norte”.
Por fim, o interesse do TRE em impedir a campanha eleitoral é tão grande que as restrições vão além do parecer técnico julgado anteriormente pelo tribunal. A proibição de campanha no formato drive-in nunca esteve no parecer e é uma invenção da assessoria de Frederico Neves. Falsificar dados e criar leis próprias, afinal, é uma herança incontestável de seu guru, o Rei Sol.
A “vantagem” de perder direitos
Um dos argumentos mais absurdos utilizados pelo Rei Sol de Pernambuco foi o de que a campanha de rua permitia que alguns candidatos tivessem “vantagem” sobre os outros: “CONSIDERANDO que os candidatos que causam aglomeração, ignorando as orientações sanitárias, acabam por obter vantagens sobre aqueles que seguem as normas, com evidente desequilíbrio na disputa eleitoral (…)”.
É evidente que há desvantagens. Afinal, a única maneira de acabar com as desvantagens seria acabando com o capitalismo. No entanto, retirar direitos não é uma forma de diminuir as desvantagens, mas sim de aprofundá-las cada vez mais. Seguindo o mesmo raciocínio da resolução do TRE, como o fundo eleitoral é dividido de maneira desigual, então ele deveria ser extinto. Como o tempo de televisão também é desigual, também deveria ser extinto. No fim das contas, chegaremos à conclusão de que, por serem desiguais, as eleições não devem ocorrer.
O complemento dessa política, de que, por algum motivo em abstrato, a campanha de rua tornaria a disputa desvantajosa, é o cinismo do TRE em considerar a internet como um meio livre. Diz a resolução:
“CONSIDERANDO que os recursos tecnológicos disponíveis permitem que os candidatos apresentem suas propostas e dialoguem com o eleitorado, por meio virtual, de forma ampla e irrestrita, de modo que a proibição das aglomerações não causará nenhum prejuízo à democracia”.
Um verdadeiro deboche com a cara da população. Na televisão, a maioria dos partidos de esquerda sequer tem direito a participar. Na internet, há cada vez mais restrições absurdas. A lei das “fake news” ajudou a tornar esse ambiente ainda mais antidemocrático.
Para os trabalhadores e explorados, quanto mais meios disponíveis para fazer a sua propaganda, melhor. Quando os meios são cada vez mais restritos, a classe dominante encontra mais facilidade para controlar esses meios. Por exemplo: se a campanha eleitoral só pudesse ser feita pela televisão, apenas os partidos da Rede Globo seriam eleitos.
Além de defender irrestritamente todos os meios de propaganda possíveis — que é a única reivindicação democrática possível em relação aos métodos de campanha eleitoral —, é fundamental que a esquerda defenda o direito de usar as ruas, pois é esse o meio mais democrático existente. Apesar de toda a legislação repressiva vigente, os métodos de luta da esquerda para atrair os trabalhadores para o seu programa estão diretamente relacionados com as ruas: panfletagens, colagem de cartazes, carro de som, campanha de porta em porta etc.
Uma campanha nazista
Todos os erros apontados até aqui mostram que há um interesse muito claro em impedir a participação popular nas eleições. Isso, em si, já comprova o caráter reacionário da resolução aprovada pelo tribunal. No entanto, alguns aspectos relevantes ajudam a demonstrar o caráter ideológico por trás dos argumentos de Frederico Neves.
Em uma das considerações, aparece a expressão “abuso de direito”:
“CONSIDERANDO que tais atos de campanha eleitoral, realizados com completo desrespeito às regras de direito sanitário, constituem verdadeiro abuso de direito [grifo nosso], na medida em que estão a disseminar o novo coronavírus, pondo em risco a saúde e a vida das pessoas”.
Isto é, para os desembargadores do TRE, os direitos só podem ser concedidos na medida em que não afetam os interesses da classe dominante. Deveriam ser, portanto, limitados. Uma concepção bastante utilizada pelo nazismo e copiada por Jair Bolsonaro. Afinal, foi ele quem disse que os trabalhadores teriam de escolher entre trabalhar ou terem direitos.
O mesmo tipo de concepção aparece em outra fundamentação: “CONSIDERANDO que, para a preservação da vida, que deve estar acima de tudo, é fundamental a contribuição de todos; sem valor jurídico algum”. Por causa de uma questão completamente abstrata — preservação da vida —, o Estado deveria, segundo Frederico Neves, suprir os direitos democráticos de seu povo. Em outras palavras, pelo “bem maior”, o Estado deveria reprimir a população. Outra concepção bastante vigente durante o nazismo. Mais recentemente, essa noção foi utilizada em larga escala para destruir o País: sob a bandeira da “luta contra a corrupção”, colocaram um fascista na Presidência da República.
O próprio Rei Sol de Pernambuco chegou a falar em “bem maior” durante a sessão: “acho que diante do principio da proporcionalidade, há que prevalecer o bem maior, que é a saúde e a vida das pessoas”.
Por fim, a resolução ainda apresenta a tese de que a liberdade de expressão não seria absoluta:
“CONSIDERANDO que a liberdade de expressão não é uma garantia constitucional de natureza absoluta, admitindo, inclusive, restrições no âmbito do direito eleitoral, como a instituída no § 4º do art. 58 da Lei nº 9.504/1997, que permite ao juiz da propaganda que analise o direito de resposta antes de sua exibição, nas hipóteses ali fixadas”.
Essa é, sem dúvida, a consideração mais grotesca da resolução. Em primeiro lugar, porque a liberdade de expressão é sim uma garantia constitucional absoluta; afinal, não há como haver meia liberdade. Além disso, não há termo algum na Constituição que faça alguma delimitação à liberdade de expressão.
Em segundo lugar, a liberdade de expressão não tem a ver propriamente com a discussão. Para aprovar essa resolução inconstitucional, o Rei Sol de Pernambuco deveria tentar argumentar, embora estivesse cometendo outro erro, que a liberdade de manifestação não é absoluta.
Como se fosse pouco um desembargador não saber a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de manifestação, o trecho de lei que o presidente do TRE-PE cita não faz sentido algum em relação à própria linha argumentativa da resolução:
“Art. 58. A partir da escolha de candidatos em convenção, é assegurado o direito de resposta a candidato, partido ou coligação atingidos, ainda que de forma indireta, por conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica, difundidos por qualquer veículo de comunicação social.
§ 4º Se a ofensa ocorrer em dia e hora que inviabilizem sua reparação dentro dos prazos estabelecidos nos parágrafos anteriores, a resposta será divulgada nos horários que a Justiça Eleitoral determinar, ainda que nas quarenta e oito horas anteriores ao pleito, em termos e forma previamente aprovados, de modo a não ensejar tréplica”.
Por fim, mas não menos importante, há um último aspecto que demonstra o vínculo das ideias do Rei Sol de Pernambuco com a extrema-direita. O método por excelência para resolver os conflitos sociais apresentado pelo presidente do TRE-PE é a polícia e a punição:
“Os juízes eleitorais, de ofício ou por provocação, no exercício do poder de polícia, deverão coibir todo e qualquer ato de campanha que viole as disposições desta Resolução, podendo fazer uso do auxílio de força policial, se necessário”.
“Poderão, ainda, os Juízes Eleitorais, no âmbito de suas respectivas jurisdições, impor sanção pecuniária para os candidatos, partidos e coligações que violarem as disposições desta norma”.
O objetivo, como fica evidente, não é combater a pandemia, mas sim combater os partidos políticos da esquerda, sobretudo os mais ligados à classe operária. Pelo “bem maior”, que seria supostamente, a saúde das pessoas, estaria justificado que a polícia prendesse, torturasse e assassinasse manifestantes e perseguisse e cassasse partidos políticos. Trata-se, portanto, de uma posição intolerável.
Com isso, fica claro o que é o “bem maior” e a defesa “da vida”. Os desembargadores, que estão “trabalhando” de casa, com todos os seus privilégios, terão poucas chances de contrair o vírus. Sua saúde, portanto, será defendida. O povo, contudo, continuará obrigado a pegar transporte lotado, a trabalhar sob as piores condições e ter seu atendimento negado no hospital. E, de brinde, quando os trabalhadores se organizarem para saírem às ruas para lutar pelos seus direitos, receberão uma bala no meio da testa.
Como votou cada desembargador?
O placar que a imprensa burguesa anunciou após a votação da resolução mostrou uma aparente unanimidade: 6×0. Contudo, isso não expressa propriamente um acordo pleno dos desembargadores, mas sim a ditadura do Rei Sol de Pernambuco.
Um dos votos foi do próprio Rei Sol. Outro foi do seu puxa-saco oficial. Outro foi de um segundo puxa-saco, Carlos Beltrão, que só se pronunciou no fim da sessão. Com grandes elogios ao Rei Sol de Pernambuco, ambos puxas-saco são a prova viva da desmoralização e da mediocridade do tribunal.
Os três demais casos chamam igualmente a atenção. Barros Freitas afirmou que gostaria de fazer algumas alterações no texto, mas que iria votar mesmo assim naquela sessão relâmpago. Carlos Gil Filho afirmou que tinha “severas ressalvas iniciais”, mas que iria votar porque a proposta foi feita pelo presidente da Casa. Edilson Pereira Nobre Júnior, por fim, afirmou que não iria votar por ter dúvidas sobre a competência do tribunal. No entanto, após apelo do Rei Sol de Pernambuco, Pereira Nobre voltou atrás e revisou seu voto para cumprir a “deliberação do colegiado”.
Ruy Trezena Patu Júnior, o mais novo desembargador da Corte, empossado em 2019, foi o único que não votou a favor do Rei Sol, tendo denunciado, por várias vezes, que a resolução ia de encontro com o Estado Democrático de Direito:
“Eu concordo que está havendo excessos em algumas cidades do interior. Isso é fato. Todos nós já recebemos vídeos, em algumas cidades está havendo excesso na propaganda, abuso. Mas nós já temos uma regulamentação que proíbe, estabelece normas. O Supremo Tribunal Federal, me parece, em um julgamento, já entendeu, inclusive, que essa é atribuição do Poder Executivo. Então, assim, eu, sinceramente, hoje, não estou preparado para votar. Vossa excelência pode até botar em mesa, mas eu tenho receio porque eu não fiz nenhuma pesquisa jurídica”.
No fim das contas, pressionado pelo colegiado e, sobretudo, pelo Rei Sol de Pernambuco, Trezena Patu se absteve da votação.
A que serve a ditadura?
Embora o espetáculo grotesco seja centrado na figura de Frederico Neves, o fato é que a ditadura do TRE atende aos interesses de uma classe: a burguesia, cada vez mais antidemocrática, que precisa controlar firmemente o regime para impor seu programa impopular. A ditadura serve justamente para que partidos como o DEM, o PSDB e o MDB, bem como a extrema-direita, consigam levar adiante o programa dos capitalistas. Dito de outro modo: o retorno à barbárie, representado pelo julgamento medieval, é um recurso da classe dominante para obter um controle ainda maior sobre o regime e garantir que não haja uma contestação. Quanto mais democráticas forem as instituições, mais elas vão refletir a polarização política, coisa que a burguesia não quer nem de longe.
O aumento cada vez maior do aparato de repressão é uma tendência em todo o Brasil e, no final das contas, em toda a América Latina. Com o aprofundamento da crise capitalista, a burguesia sabe que vai precisar reprimir cada vez mais a revolta dos trabalhadores contra o regime.
No caso específico de Pernambuco, a fraude operada pelo TRE-PE beneficia abertamente a candidatura do DEM, de Mendonça Filho, e do PSB, de João Campos, sobre quem a burguesia montou o guarda-chuva da “frente ampla” para submeter a esquerda aos setores falidos da direita.
A candidatura de Marília Arraes, do PT, vem sendo sabotada há anos. Em 2018, mesmo apoiada pela base de seu partido, Marília Arraes não conseguiu ser candidata ao governo porque a ala direita do PT, comandada por Humberto Costa, puxou seu tapete. Humberto Costa faz parte da chamada ala “queijo do reino”, vermelho por fora e amarelo por dentro. Isto é, a ala do PT de Pernambuco a serviço do PSB.
Com o aumento da polarização política e da crise interna do PT, bem como com a soltura de Lula, Marília Arraes conseguiu lançar sua candidatura. No entanto, segue sendo atacada pelos correligionários, que foram até as últimas instâncias para impedir sua candidatura. Mesmo depois do início da campanha eleitoral, figuras como João da Costa e Oscar Barreto, diretamente ligados a Humberto Costa, saíram atacando a candidata do próprio partido. Além disso, partidos golpistas como o PTC e o PMB foram colocados na candidatura para impedir que ela desenvolvesse seu potencial de ser um eixo de mobilização contra a direita. O mesmo papel, de “cavalo de Tróia” para conter a mobilização, cumpre o PSOL, legenda que vem defendendo a “frente ampla” em todo o País e que também foi colocada na coligação.
Nesse sentido, a fraude do TRE-PE, além de ser um ataque contra a esquerda em geral, é um ataque contra a candidatura de Marília Arraes. O objetivo da burguesia é levar o DEM e o PSB para o segundo turno — o que só poderia acontecer em um cenário de fraude, visto que a direita é muito impopular — e obrigar o PT a apoiar o PSB para consolidar a “frente ampla” no estado. Isto é, consolidar a operação que Humberto Costa não conseguiu viabilizar antes das eleições.
Como fica claro, os trabalhadores e a esquerda não têm nada a ganhar com as arbitrariedades do TRE-PE nas eleições municipais. A única maneira de impedir o desenvolvimento da ditadura dos golpistas é por meio da mobilização popular. É preciso sair às ruas contra a decisão do TRE, pelo Fora Bolsonaro e todos os golpistas e por Lula presidente!