João foi um gigante. Foi cantor, foi cineasta, foi ator e pintor. João construiu ao longo dos anos uma obra enorme e rica, variada e popular. Uma obra que expressava a voz de seu povo, o povo mais sofrido, aquele povo que não era ouvido. E João protestou e João foi censurado pela ditadura, mas continuou dando seu recado a quem quisesse ouvir. Mesmo que tivesse que quebrar o seu violão.
João Lufti, que ficaria mais conhecido pelo seu nome artístico de Sérgio Ricardo, nasceu em Marília, interior de São Paulo, no dia 18 de junho de 1932. Sua família era de origem libanesa. Cresceu em um ambiente musical, ouvindo seu pai tocar o alaúde e sua mãe cantar. João começou a estudar o piano aos oito anos de idade em um conservatório de Marília. Em 1946 a família se mudou para São Paulo. Nessa época o menino ouvia muita rádio e tentava tirar suas músicas favoritas de ouvido.
Em 1950 se mudou para o Rio de Janeiro onde trabalhou na Rádio Vera Cruz. Nesse ano tambem começou sua carreira profissional de pianista, tocando em casas noturnas. Foi estudar música na Escola Nacional de Música. Fez aulas de harmonia, contraponto e orquestração com o famoso Maestro Guerra Peixe e com o Maestro Ruffo Herrera. Nesse ano conheceu Tom Jobim, vindo a substitui-lo como pianista na Boate Posto 5 quando este foi convidado para trabalhar como arranjador na gravadora Continental. Neste trabalho de pianista no Posto 5 conheceu vários outros nomes importantes como João Gilberto e Johnny Alf.
Em 1952 começou a compor e a cantar ainda se apresentando como João Mansur (tirado do nome da mãe). Tocou por muitos anos na casa noturna Chez Colbert. Em meados dos anos 1950 foi convidado para fazer um teste para ator na TV Tupi. Foi aprovado e mudou de nome para Sérgio Ricardo. Daí em diante começaria a se dividir entre a música, a televisão e o cinema.
O período da bossa nova
Em 1958 saiu o seu primeiro registro fonográfico, o LP “Dançante Nº1”, creditado a Sérgio Ricardo e seu Conjunto, uma coleção variada de sambas, boleros e foxtrots, incluindo quatro de suas composições. Nessa época foi apresentado ao pessoal da bossa nova por Miele.
Em 1960 sai seu segundo LP, “Não Gosto Mais de Mim: A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo”, um dos primeiros discos da bossa nova, inteiramente composto por suas próprias composições. Desse disco o maior sucesso é a música “Zelão”, que levantou uma polêmica por discutir a falta de engajamento social da maior parte das composições da bossa nova. Por este motivo Sérgio acaba abandonando o movimento. Sérgio mostrava que não poderia ficar limitado à temática “o amor, o sorriso e a flor”, característico da bossa nova.
“Todo morro entendeu quando o Zelão chorou
Ninguém riu, ninguém brincou, e era Carnaval
No fogo de um barracão
Só se cozinha ilusão
Restos que a feira deixou
E ainda é pouco só
Mas assim mesmo o Zelão
Dizia sempre a sorrir
Que um pobre ajuda outro pobre até melhorar”
No cinema
No ano seguinte lança seu terceiro disco, “Depois do Amor” e parte para rodar seu primeiro curta metragem, “Menina da Calça Branca”, que o colocou dentro do movimento conhecido como Cinema Novo. O filme ganhou vários premios e Sérgio ganhou um convite para representar o Brasil em festivais de cinema em São Francisco e na Checoslováquia.
Em 1963 lança o LP “Um Senhor Talento”, mais uma vez com 12 composições suas incluindo clássicos como “Barravento”, “Fábrica” e “Folha de Papel”. No mesmo ano compôs a trilha sonora do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha, um dos grandes filmes brasileiros. As letras das músicas foram escritas por Glauber.
Ainda nesse ano ele começa a participar do CPC-UNE, o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, uma organização que visava criar e divulgar uma arte popular revolucionária. Nesta época Sérgio se apresenta em portas de fábricas, nas periferias e em universidades. Foi quando se consolidou o artista político. Daí em diante Sérgio compôs canções engajadas como “Calabouço”, “Tocaia” (homenagem a Carlos Lamarca, assassinado no sertão da Bahia), “Semente”, “Sina de Lampião”, “Vou Renovar” e “Canto Americano”.
Ainda em 1963 lança o seu longa metragem “Esse Mundo é Meu”, filme que mostra a vida de dois homens moradores de uma comunidade carente. É um trabalho aclamado pela crítica. A trilha sonora, escrita por Sérgio e pelo maestro Lindolfo Gaya, é lançada no ano seguinte.
Beto Bom de Bola
Em 1967 lança o album “A Grande Música de Sérgio Ricardo”, que traz uma capa desenhada por Ziraldo. Nesse ano participa do II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, classificando a canção “Beto Bom de Bola”. Nesse episódio foi impedido de cantar sua canção por causa das vaias da platéia. A música foi inspirada por Garrincha e retratava um jogador de futebol fictício que vence a Copa pelo Brasil, mas é logo esquecido e abandonado, uma metáfora da destruição causada pela ditadura. Sérgio Ricardo bem que tentou cantar, mas abafado pelas manifestações do público, desiste e tomado pela frustração se levanta e quebra seu violão, atirando os restos para a platéia.
Sérgio Ricardo seria associado a este episódio pelo resto de sua vida. Ele escreveu o livro “Quem Quebrou meu Violão”, lançado em 1991, onde narra os acontecimentos daquele dia.
Em 1968 lança um compacto com a música “Aleluia”, uma homenagem a Che Guevara que inclui os seguintes versos:
“Che Guevara não morreu
Não, não morreu, Aleluia
Che, eu creio seja eterna
Esta rosa agreste e branca
Brotada no teu sorriso
Que nem mesmo a morte arranca
E que siga em tua estrada
Outro irmão com tua mão
Com teu fuzil retomado”
Não por acaso o compacto “Aleluia” é apreendido e retirado das lojas de São Paulo.
Por esta época faz o seu espetáculo “Sérgio Ricardo na Praça do Povo”. Ganha tambem um programa na TV Globo, o programa “Sérgio Ricardo emTempo de Avanço” que dura pouco porque o autor se recusava terminantemente a baixar o nível do programa.
Anos de perseguição pela censura
1970 é o ano em que Sérgio lança seu segundo longa metragem, “Juliana do Amor Perdido”. No ano seguinte sai o LP “Arrebentação”. Após a decretação do AI 5 em dezembro de 1968 Sérgio se torna um alvo preferencial da censura pela ditadura. O filme “Juliana do Amor Perdido” tem vários cortes e sua composição “Dia da Graça” é proibida de ser lançada, alem de ser chamado frequentemente para prestar esclarecimentos sobre suas canções.
O LP de 1973, “Sérgio Ricardo” deixa bem clara esta situação. Na capa a foto do cantor aparece com uma tarja em cima de sua boca, o que motivou o DOPS a chamá-lo para prestar esclarecimentos. O disco não foi recolhido, mas a execução pública das músicas foi proibida, uma situação que se tornaria recorrente nos anos seguintes. O album trouxe a música “Calabouço”, uma canção inspirada em Edson Luís de Lima Souto, estudante secundarista que foi mortos por militares durante confronto no restaurante Calabouço no centro do Rio de Janeiro em 1968.
Em 1974 lança mais um filme longa metragem, “A Noite do Espantalho”. O enredo do filme, em tom de cordel contemporâneo, é contado pelas canções compostas por Sérgio e cantadas pelos então novatos Alceu Valença e Geraldo Azevedo. O filme se passa no sertão de Pernambuco onde quem manda é o Coronel Fragoso, dono de terras que tambem pensa ser dono das pessoas da região. O longa recebeu vários premios, inclusive sendo convidado a participar do Festival de Cannes. Só por esta razão é que a censura voltou atrás na sua intenção de proibir sua exibição.
Até 2008 lançou mais outros oito albuns, incluindo a trilha do desenho de Ziraldo, “Flicts”. Compôs trilha sonoras para vários espetáculos e programas de televisão como a minisérie “Zumbi dos Palmares” que foi exibida na TV Manchete em 1996. Diversificou ainda mais suas atividades lançando um livro de poesias, “Elas”, e uma exposição, “Transparência”, com suas pinturas.
Em outubro de 2019 Sérgio Ricardo fraturou o fêmur. Desde então vivia com a saúde debilitada. Chegou a contrair o Covid-19, mas se recuperou. Mas acabou falecendo nesta quinta-feira, dia 23 de julho por insuficiência cardíaca.




