Em sua participação no vexaminoso evento dos “Direitos já”, ocorrido no dia 26 de junho, Guilherme Boulos, dirigente do Psol e do MTST, declarou:
“Da mesma forma que impeachment sem crime é golpe, crime sem impeachment é omissão”.
Por trás dessa declaração, há, na verdade, uma concepção completamente equivocada sobre o movimento do “Fora Bolsonaro”. Uma concepção que, inevitavelmente, levará a uma política desastrosa para a esquerda e para os trabalhadores.
A frase de Boulos está situada, como é óbvio, entre dois processos políticos bastante distintos. O primeiro, que seria o impeachment sem crime, se refere ao golpe de Estado contra Dilma Rousseff em 2016. O segundo, que seria o crime sem impeachment, se refere ao fato de que o governo Bolsonaro, imerso em supostos crimes, continua sendo apoiado pela maioria dos setores que controlam o parlamento. Não discordamos, naturalmente, que a derrubada de Dilma Rousseff foi um golpe, nem que não se posicionar em favor da derrubada de Bolsonaro seja uma grave omissão. Contudo, chamamos a atenção para o papel que o termo “crime” exerce em ambas as situações.
A derrubada de Dilma Rousseff foi escandalosa porque nenhum “crime” contra ela foi de fato comprovado. Diariamente, a imprensa golpista procurava vincular a presidenta com os mais estapafúrdios escândalos de corrupção, mas não teve êxito em momento algum. No entanto, é preciso questionar: e se, de fato, a presidenta tivesse cometido algum “crime”, deveria mesmo assim ser derrubada pelo parlamento? E, o que é ainda mais importante: quem seria o responsável por investigar esses supostos “crimes”?
Ora, admitir que uma presidenta eleita por mais de 50 milhões de votos e apoiada pelas principais organizações de massas do País pudesse ser derrubada por ter cometido um “crime” é uma barbaridade. Afinal, os responsáveis por julgar seus “crimes” são notórios bandidos políticos. O Congresso Nacional já ocupa um espaço no folclore como um lugar repleto de bandidos da pior espécie. E não é para menos: a forma como o regime político é organizado impede que seus representantes não sejam criminosos. As eleições são, todas elas, financiadas pelos capitalistas. E para os capitalistas, o filtro que importa não é a moral dos parlamentares, mas sua disposição em se corromper até a medula para apoiar a destruição do próprio País. Nesse sentido, se Dilma Rousseff tivesse de ser derrubada pelo parlamento por ser uma criminosa, era o próprio parlamento que deveria vir abaixo antes. Entre notórios bandidos e alguém que teria sido acusada de ter cometido algum “crime”, mas que é apoiada pelo povo, não há dúvidas de que optar pela derrubada de Dilma Rousseff não teria nada de democrático.
Como vimos, o “crime” não é um fator decisivo para decidir se um presidente permanecer no poder, pelo menos de um ponto de vista democrático. Esse é apenas um pretexto para que verdadeiros criminosos descartem algum governante que se choque com seus interesses.
Vejamos, agora, o caso do governo Bolsonaro. Há, de fato, inúmeras suspeitas de que Bolsonaro estaria vinculado a atividades ilícitas. Contudo, como vimos, esse não deveria ser um critério democrático para clamar pela sua derrubada.
O que difere um caso de outro é que, se Dilma Rousseff era largamente apoiada pela população, Bolsonaro é odiado pelo povo. Sua popularidade é inferior a 30% do povo e as manifestações contra o seu governo tem sido cada vez mais radicais. Nem mesmo a pandemia de coronavírus deteve vários setores da população a saírem às ruas para protestar contra o governo e até mesmo enfrentar a polícia. O critério democrático, de que o governo Bolsonaro é alvo de uma revolta popular, existe.
E essa revolta, por sua vez, não é despropositada. Ela existe justamente porque Bolsonaro é um verdadeiro inimigo do povo. O presidente ilegítimo chegou ao poder porque a burguesia precisava de alguém que estivesse disposto a aplicar a indigesta política neoliberal: destruição da CLT, fim da aposentadoria, privatização das empresas públicas, privatização da água etc. Esses são os verdadeiros e incontestáveis “crimes” de Bolsonaro. Crimes para os quais não é necessário usar uma toga para julgar, mas que são facilmente percebidos pelo povo, maior vítima dos ataques do presidente ilegítimo. O movimento pelo “Fora Bolsonaro” não surge, portanto, da luta contra a corrupção. Não é uma saga da luta épica contra os infratores da lei, mas sim um movimento de massas que surge da luta do povo pela sua própria sobrevivência.
Essa concepção apresenta a Boulos é extremamente danosa para a esquerda porque, se os trabalhadores apenas se mobilizarem pelo fim do governo quando houver “crimes” comprovados”, eles estarão sempre a reboque da burguesia. Afinal, cabe a ela apontar os criminosos e abafar os casos mais escandalosos. O mais perverso dos crimes, sem a cobertura da imprensa capitalista, sem a investigação da bilionária Polícia Federal e sem o aval dos parlamentares permanece inofensivo para seus atores. Tanto isso é verdade que o próprio Guilherme Boulos decidiu entrar no movimento pelo “Fora Bolsonaro” apenas quando a burguesia decidiu lançar uma limitada ofensiva contra o governo.
A concepção de que os “crimes” seriam os motivos pelos quais um governo deve cair não só imobiliza os trabalhadores, que ficam a reboque da burguesia, como também fortalece a própria classe dominante contra a esquerda. Se hoje, mesmo depois da experiência do golpe de 2016 e da prisão de Lula, Boulos continua afirmando que é preciso caçar os “criminosos”, estará colaborando para que toda a oposição passe para a ilegalidade por meio dos julgamentos comandados pelos inimigos do povo.