Por Nivaldo Orlandi
Na Roma antiga, o senador Cícero, destacado tribuno, através das famosas catilinárias, (série de discursos interpelava o senador Lúcio Sérgio Catilina), sobre seus crimes, sua conspiração contra a república Romana. Tentativa de, através de belos discursos, apelos patrióticos, conseguir a desistência de Catilina do golpe pretendido, apelos para de tudo desistir, de até se exilar, não somente ele, mas a todos os demais salteadores, daí, a pena de morte já decretada pelo senado, poderia ser revista.
Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio?. Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem?. À morte, Catilina, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por ordem do cônsul; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há muito tempo, tramas contra todos nós. É Catilina, que anseia por devastar a ferro e fogo a face da terra, haveremos nós, os cônsules, de o suportar toda a vida?. Temos um decreto do Senado contra ti, Catilina, um decreto rigoroso e grave; não é a decisão clara nem a autoridade da Ordem aqui presente que falta à República; nós, digo-o publicamente, nós, os cônsules, é que faltamos.
Gaio Graco, apesar da sua tão nobre ascendência, de pai, de avô e de seus maiores, foi morto por causa de certas suspeitas de revolta; juntamente com os filhos foi executado Marco Fúlvio, um consular. Acaso adiaram eles mais um dia sequer a pena de morte, por crime de lesa-república, a Lúcio Saturnino, um tribuno da plebe, e a Gaio Servílio, um pretor?
Temos um destes decretos do Senado, mas está fechado nos arquivos como espada metida em bainha; e, segundo esse decreto senatorial, tu, Catilina, deverias ter sido imediatamente condenado à morte. E eis que continuas vivo, e vivo, não para abdicares da tua audácia, mas para nela te manteres com inteira firmeza. É meu desejo, venerandos senadores, ser clemente; é meu desejo, no meio de tamanhos perigos da República, não parecer indolente; mas já eu próprio de inacção e moleza me acuso.
Há acampamentos em Itália contra o povo romano. estabelecidos nos desfiladeiros da Etrúria, aumenta em cada dia o número dos inimigos; e, no entanto, o general desses acampamentos e o comandante desses inimigos, eis que o vemos no interior das nossas muralhas e dentro do próprio Senado, urdindo a cada instante algum atentado contra a República. Se, neste momento eu te mandar prender, Catilina, se eu decretar a tua morte, o que sobretudo terei de temer, tenho a certeza, é que todos me censurem por ter atuado tarde, e não que haja alguém a dizer que usei de crueldade excessiva.
Ó Catilina, nem a noite com suas trevas pode manter ocultos os teus criminosos conluios, nem uma casa particular pode conter, com suas paredes, os segredos da tua conspiração. É tempo, acredita-me, de mudares essas disposições; desiste das chacinas e dos incêndios. Estás apanhado por todos os lados. Nada fazes, nada intentas, nada imaginas que eu não só não ouça, mas veja e disso tenha pleno conhecimento.
Em que país do mundo estamos nós, afinal? Que governo é o nosso? Em que cidade vivemos nós?. Encontraste dois cavaleiros e se comprometerem a assassinar-me no meu próprio leito nessa mesma noite, pouco antes da alvorada. Tudo isto eu vim a saber, mal tinha ainda sido dissolvida a vossa reunião.
Exílio
Catilina, sai da cidade de uma vez para sempre; as portas estão abertas; põe-te a caminho. Há muito que te reclamam como general supremo esses teus acampamentos manlianos. Leva também contigo todos os teus; se não todos, pelo menos o maior número possível. É a toda a República que tu diriges abertamente o teu ataque; são as casas da cidade, é a vida de todos os cidadãos, é a Itália inteira, é tudo isto que tu arrastas para a ruína e a devastação.
Caráter de Catilina
Que há, ó Catilina, que ainda te possa causar prazer nesta cidade, em que não há ninguém, fora desta conjuração de homens depravados, que te não tema, ninguém que te não deteste? Que nódoa de escândalos familiares não foi gravada a fogo na tua vida? Que ignomínia de vida particular não anda ligada à tua reputação? Que sensualidade esteve longe de teus olhos? Que ação infamante deixaram de perpetrar as tuas mãos algum dia? Que torpeza esteve ausente de todo o teu corpo? Que jovem haverá a quem não tenhas ilaqueado nas seduções da tua imoralidade, guiado o ferro na rebeldia ou o archote na libertinagem?
Golpes não desiste de tentar
Catilina, te apresentaste armado no local dos comícios do povo; que tinhas um grupo de homens preparado para dar a morte aos cônsules e aos principais da cidade. Quantos golpes. Nada adiantas, nada consegues, e, contudo, não desistes de tentar e de querer.
Que vida é esta que levas, Catiliana? Entraste há pouco neste Senado. Quem, dentre esta tão vasta assembléia, dentre todos os teus amigos e parentes, te saudou? Te encontras esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio? E que dizes ao fato de, à tua chegada, esse lugar ter ficado ao abandono, e ao fato de todos os consulares, que tantas vezes figuraram nos teus planos de assassínio, mal te havias sentado a seu lado, terem deixado deserta e vazia essa zona da bancada?
Apelos da Pátria mãe
É a Pátria, mãe comum de todos nós, que te odeia e teme. Eis que ela a ti se dirige, ó Catilina, e, no seu silêncio, como que fala:
«Há vários anos já que nenhum crime se viu cometido senão por ti; nenhum escândalo, sem ti; só tu cometeste, sem castigo e com toda a liberdade, o assassínio de muitos cidadãos, a opressão e saque dos nossos aliados; só tu te atreveste não só a desprezar, mas até a subverter e a infringir as leis e os tribunais. Esses crimes de outrora, posto que não devessem ter sido suportados, eu os suportei como pude; mas agora, estar eu toda em sobressalto somente por causa de ti, ser Catilina objeto de medo ao mínimo ruído que surja, não se poder descobrir conjura alguma tramada contra mim em que não esteja implicada a tua intenção criminosa, não, isso é que não devo suportar. Por isso, vai-te daqui e afasta de mim este receio para eu não andar oprimida; para eu deixar de uma vez esta vida de medo.»
Digno de detenção
A fim de evitares suspeitas, desejavas ficar em casa de Mânio Lépido? Como este não te recebeu, até a mim tiveste cara de te dirigir e de me pedir que te guardasse em minha casa. E, como também de mim levaste a resposta de que eu não podia de modo nenhum sentir-me seguro contigo dentro das mesmas paredes, porquanto já eu corria grande perigo pelo fato de estarmos metidos dentro das mesmas muralhas, foste a casa de Quinto Metelo. Repudiado por ele, imigraste para casa do teu comparsa Marco Metelo, esse grande homem de quem pensaste, claro está, que havia de ser o mais cuidadoso em te guardar, o mais esperto para te vigiar e o mais enérgico para te defender. Mas em que medida parece justo estar afastado da prisão e das cadeias quem se julgou, por si mesmo, digno de detenção?
Discurso resolve?
De que servem as minhas palavras? A ti, como pode alguma coisa fazer-te dobrar? Tu, como poderás algum dia corrigir-te? Tu, como tentarás planear alguma fuga? Tu, como podes pensar nalgum exílio?
Mas a ti, o que não se deverá exigir é que te afastes dos teus vícios, que alimentes profundo receio dos castigos da lei, que recues perante as conjunturas críticas da República. Nem tu, Catilina, és de molde que a vergonha te afaste da infâmia; ou o medo, do perigo; ou a razão, da loucura.
Senado omisso
Nós, senadores, vivemos desde há muito envolvidos nestes perigos e nas ciladas de uma conspiração. Alguns que, ou não vêem aquilo que nos ameaça, ou fingem ignorar aquilo que vêem; estes, pela moleza das suas decisões, alimentaram a esperança de Catilina e deram força à conjuração nascente, não acreditando nela.
Se for condenado à morte apenas Catilina, aqui presente, este flagelo que afeta o Estado pode reprimir-se por um pouco, não suprimir sem para sempre. Mas, se ele se desterrar a si mesmo e levar os seus partidários consigo, e se recolher, de toda a parte, os demais naufragados da vida e os congregar no mesmo lugar, ficará extinta e debelada não apenas esta já tão adiantada doença do Estado, mas até a raiz e o germe de todos os males.
E se, de tamanho bando de salteadores, se suprimir apenas este, poderá parecer talvez que ficamos, por um pequeno espaço de tempo, aliviados da apreensão e do medo; o perigo, porém, há de permanecer e ficará profundamente inculcado nas veias e nas entranhas da República.
Garanto-vos, senadores egrégios, que a nossa vigilância de cônsules há de ser bastante, e espero que haja em vós tal autoridade, em todos os homens a conformidade de sentimentos necessária para poderdes ver que, com a retirada de Catilina, tudo fica descoberto, esclarecido, subjugado, punido.
Com estes presságios, Catilina, e para suprema salvação do Estado, para tua desgraça e ruína e para perdição daqueles que a ti se ligaram por toda a espécie de crimes e parricídios, parte para essa guerra ímpia e nefanda.
E tu, Júpiter, tu a quem com justiça chamamos o Sustentáculo desta urbe e deste império, hás de relegar este assassino e os seus comparsas para longe das casas de Roma e das suas muralhas, da vida e dos haveres de toda a população; e àqueles que odeiam, aos salteadores da Itália, unidos entre si por um pacto criminoso e uma aliança nefanda, a esses, vivos e mortos, hás de puni-los com suplícios eternos.
Inúteis os apelos patrióticos, Inúteis as orações à Júpiter. Caminho é o enfrentamento real, a mobilização
O conjunto dos discursos de Cícero contra Catilina ficaria celebrizado sob o nome de “Catilinárias” que foram usadas por muito tempo como uma das principais formas de ensino de argumentação em todo o mundo.
Mas, o que resolveu mesmo, foi a mobilização do povo romano, o enfrentamento de Catilina, e não as famosas catilinárias, os famosos discursos do tribuno Cícero, que, se não acompanhados das mobilizações, os discursos nos parlamentos do senado de Roma ou os discursos dos parlamentos atuais, somente isso, nada mais são, e acontecem em todos os parlamentos burgueses, onde só se faz, “tagarelar”, nos ensina Karl Marx.



