Há 227 anos, nascia em Feira de Santana – Bahia –, Maria Quitéria de Jesus, primeira militar brasileira, valente e hábil combatente da Guerra de Independência do Brasil. Fugida de casa, melena cortada, fuzil em punho, alistou-se em Cachoeira como Soldado Medeiros em 1822. Participou da defesa da Ilha da Maré, da Pituba, da Barra do Paraguaçu e de Itapuã, entrando em triunfo com a Primeira Divisão de Direita em Salvador em 2 de julho de 1823, após capitulação dos exércitos leais a Portugal.
Nascida no Sítio do Licurizeiro, freguesia de São José de Itapororocas (Feira de Santana), era filha do português Gonçalo Alves de Almeida e de Quitéria Maria de Jesus. Com a morte de sua mãe, Maria assumiria a administração do lar e a criação dos filhos. Num ambiente rural, embora sem estudo ou alfabetização, foi consequente a familiaridade com a montaria e o manejo de armas de fogo.
Como se sabe, as Cortes de Lisboa não reconheceram de imediato a proclamação da independência do Brasil em setembro de 1822. As províncias maior concentração de tropas portuguesas se tornaram então palco de encarniçadas lutas, e tal foi o caso da Bahia, onde, na verdade, já se travava um conflito contra as tropas portuguesas desde julho daquele ano.
Com Salvador ocupada pelo Exército Português, sob o comando do Governador de Armas Inácio Luís Madeira de Melo, os brasileiros se agruparam no interior, sobretudo em Cachoeira. Para apoiar o exército voluntário local, o Rio de Janeiro despachou por mar tropas comandadas por Rodrigo de Lamare, e pelo oficial francês Pierre Labatut, que desembarcando em Maceió, marchou por terra rumo à Bahia.
Somavam-se às fileiras regulares inúmeros batalhões de Voluntários da Príncipe, dentre os quais a Primeira Divisão de Direita de Cachoeira, comandada por José Antônio da Silva Castro – avô de Castro Alves –, conhecidos por Batalhão dos Periquitos, devido à cor verde de sua farda.
Maria Quitéria desejava unir-se a este grupo e, tendo-lhe sido negada autorização paterna, optou por fugir para a casa de sua meia-irmã, que ajudou-a a cortar os cabelos e a vestir-se com as roupas de seu esposo, alistando-se em Cachoeira em agosto de 1822 como Soldado Medeiros. Teria sido descoberta pelo próprio pai após duas semanas, mas foi mantida alistada e levada a combate.
Em 29 de outubro, os Periquitos seguiriam para guarnecer a Ilha da Maré. Na batalha de Pirajá, em inferioridade, os brasileiros lograram vitória após um toque de corneta falso que comandava ataque e degola por uma cavalaria brasileira independente: os portugueses entraram em pânico e bateram em retirada, tentando surpreender os nativos pela estrada da Pituba, onde seriam rechaçados pelos Periquitos, quando Maria Quitéria atacou uma trincheira inimiga e fez vários prisioneiros.
Em meio à guerra, no início de 1823, Maria Quitéria se casa com o furriel João José Luís, com quem receberia espada e acessórios no posto de cadete. Não se tem mais notícia desse seu marido, que provavelmente faleceu na Guerra. Deram ainda combate com sucesso às tropas durante o cerco à cidade de Salvador em outras batalhas como a da Barra do Paraguaçu – onde avançou contra uma barca portuguesa com meio-corpo imerso – e de Itapuã. Em 2 de julho de 1823, os portugueses batem em retirada de Salvador. Os Periquitos entram na capital aclamados e são designados para acampar no Convento de Santa Tereza.
Maria Quitéria manifesta autorização de conhecer a corte e o príncipe D. Pedro I, embarcando com outros combatentes na nau Leal Português no dia 29 de julho. Chegando ao Rio de Janeiro, são recebidos pelo Imperador, que condecora Quitéria, declarando: “queremos conceder a dona Maria Quitéria de Jesus um distintivo que assinale os serviços militares que, com denodo, raro entre os mais do seu sexo, prestara à causa da Independência deste Império, na porfiosa restauração da capital da Bahia. Hei por bem permitir-lhe o uso da insígnia de Cavalheiro da Ordem Imperial do Cruzeiro”. Concedeu-lhe ainda uma carta de perdão pelo alistamento irregular e a promoção ao posto de Alferes de Linha. Sua breve presença na Corte foi registrada pela inglesa Maria Graham, arguta cronista e autora de Journal of a voyage do Brazil [Diário de uma viágem ao Brasil, (Londres, 1824)], que a assim a descreveria após um encontro a 29 de agosto:
Maria de Jesus é iletrada, mas esperta. Seu entendimento é rápido e sua percepção aguda. Penso que, com educação, ela se tornaria uma pessoa notável. Ela não é particularmente masculina em sua aparência, e seus modos são gentis e agradáveis. Ela não se tornou rude ou vulgar por sua vivência em campo, e acredito não há qualquer coisa que comprometa sua modéstia. Uma coisa é certa: seu gênero não fora descoberto até o pedido de busca de seu pai ao seu comandante.
Não há nada de muito peculiar em seus modos à mesa, exceto por comer ovos no desejum e peixe no jantar acompanhados de farinha, em lugar de pão, fumando um charuto após cada refeição; mas ela é muito comedida.
Retornando a Salvador e a Cachoeira, é recebida e perdoada formalmente por seu pai, atendendo, como heroína, a pedidos de visitas a Coração de Maria, Pedrão, Lustosa, Irará e outros povoados da região. Casa-se então com com o agricultor Gabriel Pereira de Brito, com quem teria uma filha: Luísa Maria da Conceição.
Pouco mais de dez anos depois, entre 1934 e 1935, perde o pai e o esposo, mudando-se com a filha para Salvador. Faleceria esquecida, quase cega e praticamente indigente, em 21 de agosto de 1853, aos 61 anos. Seu novo reconhecimento só viria no século 20.
Em 1953, ano do centenário de sua morte, por determinação do Governo Federal, sua efígie passaria a ser incluída na Galeria de Retratos das Forças Armadas, constante em todos os quartéis, estabelecimentos e repartições militares. Em 1996, seria reconhecida por decreto presidencial como Patrono do Quadro Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro. Em 26 de julho de 2018 foi declarada Heroína da Pátria Brasileira, com inscrição no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria do Panteão da Pátria em Brasília.
Juntamente a Maria Felipa, de Itaparica, ou Joana Angélica, de Salvador, Maria Quitéria é uma das muitas mulheres que se levantaram contra o jugo colonial num importante momento político de afirmação dos povos americanos.