O dia 15 de janeiro entrará para a história como o dia em que Israel foi oficialmente derrotado na guerra contra a população de Gaza que se iniciou no dia 7 de outubro de 2023. De lá para cá, os números oficiais de mortos causados pelo sionismo somente na Faixa de Gaza chegam perto dos 50 mil, enquanto os números reais podem chegar a mais de 300 mil pessoas. No entanto, a vitória da resistência palestina, em especial o Hamas, se dá pelo fato de que, apesar de toda a matança de pessoas desarmadas, em especial de mulheres e crianças, “Israel” nada pôde fazer contra os que pegaram em armas contra a entidade sionista.
A esquerda pequeno-burguesa, porém, não consegue comemorar a vitória, justamente por não conseguir enxergá-la. É o caso que se expressa no texto “Um acordo fadado ao fracasso”, de André Gattaz, publicado no dia seguinte ao anúncio oficial do acordo de cessar-fogo entre “Israel” e Hamas, celebrados no Catar e com a participação dos Estados Unidos.
O texto se inicia com o seguinte parágrafo:
“Com a notícia de que finalmente o Hamas e Israel chegaram a um acordo de cessar-fogo, os órgãos de imprensa correram a publicar fotos de palestinos e israelenses comemorando nas ruas, comentando o sucesso da improvável dupla Biden-Trump na efetivação do acordo. Quem acompanha o conflito historicamente, porém, não é otimista com as perspectivas para a região. Ademais, faltou algum senso crítico para reconhecer que o acordo ainda não foi ratificado pelo parlamento israelense, o que na prática o mantém ainda sem efeito. (Também faltou senso crítico à mídia para perceber que os “prisioneiros” palestinos não são prisioneiros, mas reféns, pois foram sequestrados pelo exército israelense na Palestina e levados a Israel, sendo mantidos presos sem julgamento e em condições desumanas. Porém, enquanto foram cerca de 250 os reféns feitos pelo Hamas em outubro de 2023, passam de 10 mil os palestinos atualmente mantidos em cativeiro por Israel).”
O fato de que o acordo ainda não foi ratificado por “Israel” não diminui a vitória dos palestinos. Aqui, é importante entender que “Israel” está sendo obrigado a se retirar de Gaza, não por conta de um acordo feito no Catar, mas sim porque foi derrotado pela Resistência e, em especial, pelo Hamas.
Poucos dias atrás, o Hamas, que foi descrito inúmeras vezes como uma organização derrotada por “Israel”, havia iniciado uma nova ofensiva no norte de Gaza, não só mostrando que ainda estava vivo, como também mostrando que “Israel” não tinha a menor capacidade de vencer a Resistência. Antes disso, o Hamas e as demais organizações já haviam imposto outras várias derrotas e baixas aos israelenses.
Durante todo o período do genocídio, uma quantidade gigantesca de vídeos da resistência realizando emboscadas, eliminando sionistas e explodindo ruínas em que se encontravam as tropas israelenses se espalharam nas redes sociais. Há muitas fotos de lugares em Gaza que se transformaram em verdadeiros cemitérios de tanques de guerra israelenses, destruídos pelos militantes da Resistência.
Notícias já mostravam que, desde o começo do conflito, havia fogo amigo dentro da IDF, além de ataques de pânico e crises dentro das tropas israelenses, coisas que geralmente começam a acontecer em momentos mais avançados das guerras, quando as tropas percebem que não têm possibilidade de vitória. Mais recentemente, a própria imprensa burguesa e meios de comunicação de dentro de “Israel” passaram a relatar esses casos, já que não era mais possível escondê-los.
Um desses casos que começaram a ser relatados pela imprensa israelense é o de que cerca de 80% dos comandantes da Brigada Givati, uma das cinco da infantaria das IDF, haviam sido mortos em Gaza. Além disso, essa mesma imprensa noticiava há muito a necessidade de mais pessoas no fronte, fazendo apelo para que os judeus Haredi, ultraortodoxos e que são contra o alistamento em guerras, deveriam ser obrigados a combater em Gaza.
Trata-se, portanto, de um completo debacle das forças israelenses em Gaza. O acordo é somente a declaração oficial de que o Hamas e o restante da Resistência venceram “Israel”. No entanto, também é verdade que “Israel”, por não ter assinado o acordo, tende a continuar a atacar Gaza. Inclusive, mesmo após assinado o acordo, “Israel” atacará Gaza enquanto continuar existindo, como fazia anteriormente ao 7 de outubro. “Israel” nunca precisou de uma guerra para bombardear Gaza e, nos tempos que pareciam de paz, havia bombardeios periodicamente contra a população civil.
Também o acordo não foi feito pelo imperialismo. O fato é que o imperialismo, que controla “Israel”, mas não os palestinos, teve de aceitar os termos impostos pelo Hamas. Se o acordo não havia sido aceito antes, isso se dava pois o imperialismo ainda acreditava, de alguma forma, que poderia vencer os palestinos pelo terror do genocídio.
A mudança de governo nos EUA também se deve muito ao desgaste de Joe Biden durante o genocídio. Não era possível para o novo governo continuar com a mesma política sem enfrentar uma grande mobilização contrária, lembrando que as amarras que impediam parte da população de se levantar contra o governo democrata, como o identitarismo e a suposta luta contra o fascismo, não existiriam no governo de Donald Trump.
“O acordo de cessar-fogo é o mesmo que foi proposto em maio de 2024 por Joe Biden e à época foi recusado pelo governo de Israel. Neste período o governo sionista não conseguiu nada que pudesse se assemelhar a uma vitória, uma vez que ainda há quase 100 reféns israelenses capturados pelo Hamas mantidos em cativeiro na Faixa de Gaza e o Hamas não foi ‘completamente derrotado’ – o que são os motivos declarados dos ataques genocidas contra Gaza. Internamente, o primeiro-ministro já vinha sendo acusado e julgado por corrupção antes mesmo do início do conflito, e nesse sentido foi-lhe bastante útil o ataque de 7 de outubro de 2023, fornecendo a justificativa para o início de uma nova ofensiva. Conforme afirmei em artigo anterior, com o ataque do Hamas, Israel obteve ‘um 11 de setembro para chamar de seu’.”.
Neste segundo parágrafo, o que é verdadeiro é o fato de que “Israel” realmente não conseguiu nenhuma vitória contra a resistência. O acordo de cessar-fogo proposto por Biden, no entanto, é uma bravata. Joe Biden estava em período eleitoral, precisava diminuir o tom das críticas pelo genocídio que ele mesmo levava adiante, já que Israel não tem escolha própria sobre nada e necessita do imperialismo para sobreviver. Biden, inclusive, continuou doando muito dinheiro para que Israel comprasse armas para utilizar contra mulheres e crianças. O acordo foi proposto, mas o governo norte-americano não se decidiu por ele, ou teríamos terminado o genocídio com uma derrota catastrófica para Israel alguns meses atrás e não em janeiro.
O acordo, mesmo que em sua forma, se pareça ao que foi falsamente proposto pelo governo Biden, é, em seu conteúdo, completamente diferente. Isso porque, desta vez, ele foi imposto a “Israel”, não foi uma mera peça de propaganda.
A prova de que Biden nada fez pelo acordo é justamente o fato de que seu anúncio se deu no dia 15 de janeiro, cinco dias antes da posse de Donald Trump, que, por características próprias de sua política e por não querer ter sua imagem associada à derrota israelense e ao genocídio que destruiu o governo anterior, obrigou “Israel” a aceitar os termos que lhe eram impostos pelo Hamas.
O que não possui um pingo de verdade no parágrafo de Gattaz é a ideia de que Netaniahu teria se beneficiado do Dilúvio de Al-Aqsa e o teria facilitado para ganhar uma sobrevida na política israelense.
É verdade que “Israel” já vinha em crise antes da operação no 7 de outubro. Netaniahu havia chegado a deixar o cargo de primeiro-ministro por um curto período de tempo e que, após a ação do Hamas seu governo conseguiu um apoio momentâneo de outros setores da política israelense em uma espécie de governo ,de união nacional durante o genocídio.
O problema é que a ação do Hamas no Dilúvio de Al-Aqsa acelerou um processo que poderia levar anos caso os palestinos não reagissem. Até antes do 7 de outubro, os diferentes setores da política israelense estavam divididos não por opiniões pessoais de cada um, mas sim, pela crise que já se apresentava na sociedade israelense. As picuinhas e as brigas palacianas no parlamento já demonstravam como a união entre esses diversos setores era falsa e caminhava para sua dissolução. O que levaria anos para que percebessem, ou seja, que a união em torno do governo Netaniahu não daria mais certo, foi acelerado por conta da guerra. A derrota fez com que as ilusões que parte dos setores israelenses tinham no governo fossem destruídas na prática.
A “sobrevida” de Netaniahu, portanto, era completamente falsa e tinha data marcada para terminar. É provável, no entanto, que Netaniahu soubesse algo sobre a operação no 7 de outubro, mas, caso nada tenha sido feito, foi muito mais por falta de possibilidade em se fazer qualquer coisa do que em uma atitude programada.
O autor se esquece que o 7 de outubro levou à derrota de vários governos imperialistas, com a queda na Alemanha, no Canadá, na Inglaterra (que pode cair de novo) e nos EUA até agora, além da imposição de uma ditadura na França para que Macron não caísse.
Também se esquece que o 7 de outubro acendeu a chama da luta em todos os países do Oriente Próximo. Iêmen, Hesbolá no Líbano e Irã entraram nas vias de fato com “Israel”, mas, neste momento, a população de todos os demais países da região está completamente radicalizada e, em algum momento, vai se mobilizar para colocar seus governos abaixo e para não só derrotar “Israel” de uma vez por todas, como expulsar as bases norte-americanas da região.
Caso Netaniahu tivesse planejado o 7 de outubro ou pensado em deixar que acontecesse para ganhar uma sobrevida, seria o mesmo de pensar em dar um tiro em uma parte do corpo que padece de câncer, na expectativa de que o tiro retirasse o tumor e que isso desse algum tempo de vida a mais ao paciente. Ou seja, uma completa loucura.
O caso, no entanto, é bom para vermos como pensa a esquerda pequeno-burguesa no Brasil. Ela pensa que nada pode ser feito sem a anuência do imperialismo. Acreditam que o Hamas somente conseguiria realizar o Dilúvio de Al-Aqsa com a permissão de Netaniahu. É por isso que não acreditam que nada, a não ser se curvar diante do imperialismo, pode ser feito em nosso país.
O autor ainda faz um pequeno balanço da guerra que contrariam o argumento inicial de que não podemos nos animar com o acordo:
“Passados 15 meses de conflito, pode-se dizer que Israel tenha conseguido três resultados principais: 1) a destruição completa da Faixa de Gaza, com o assassinato de mais de 47 mil pessoas e a obliteração da infraestrutura da região; 2) o reconhecimento internacional do regime israelense como genocida, transformando-o num pária internacional odiado em grande parte do mundo (sobretudo no Sul global), com o consequente aumento do antissemitismo; 3) o aumento do apoio internacional à criação do Estado Palestino.”
Tirando o fato da destruição de Gaza, os demais pontos são favoráveis aos palestinos no fim da guerra. Além desses pontos, no entanto, outros pontos se colocam, como o fim dos mitos de Israel como vítima do holocausto (o mito não é o holocausto contra os judeus, mas sim, o de que Israel teria alguma coisa a ver com a história). Também cai por terra a ideia de dois estados na Palestina.
O autor segue com mais pontos que o contradizem:
“O Estado sionista, porém, mesmo fortemente armado e apoiado incondicionalmente pela maior potência militar do planeta, não apenas não conseguiu recuperar a totalidade dos reféns, como ainda acabou por matar algumas dezenas deles nos bombardeios indiscriminados aos centros de população civil em Gaza. E isso tem sido a principal causa de oposição ao governo de Netanyahu, por um crescente movimento popular que vem promovendo manifestações de rua contra o governo e pedindo o retorno dos reféns. Nesse sentido explica-se o súbito desejo do governo israelense em aceitar agora um plano que já havia sido proposto há oito meses.”
E “Não há motivo para otimismo, porém, pois de fato o plano ainda não foi efetivamente aceito por Israel, faltando sua aprovação pelo Knesset, o parlamento do Estado sionista. E com a oposição da ala mais radical da coalizão governista, a aprovação parlamentar pode colocar em risco a própria sobrevivência do governo.”. Ora, como dissemos acima, não é Israel quem decide sobre o acordo, mas sim, os países imperialistas e, em especial, os Estados Unidos, que já anunciaram o acordo. Mesmo que a ala mais à extrema direita do governo, ou o próprio governo, tentem impedir o acordo, nada poderia ser feito, já que se indispor com o imperialismo seria fatal para Israel, o que demonstra que de qualquer forma o acordo é positivo.
A extrema direita israelense – todo Israel é de extrema direita, mas há elementos mais à extrema direita do que outros – caso acredite que poderia levar adiante o genocídio contra o desejo do imperialismo, estaria levando Israel mais rapidamente para o túmulo, já que, com ajuda de todo o imperialismo não conseguiu derrotar a resistência, como, sozinhos, sem armas e dinheiro, poderiam vencer?
Esse é mais um ponto interessante para se entender a mentalidade da esquerda pequeno-burguesa. Anteriormente, o autor disse que Israel havia permitido o 7 de outubro, e dissemos como esses setores da esquerda acreditam que só é possível fazer o que o imperialismo permite. Ao mesmo tempo, acreditam que Israel teria liberdade de escolha. Ou seja, os funcionários do imperialismo teriam toda a liberdade para agir contra as ordens do imperialismo, mas aqueles que lutam contra o imperialismo só conseguiriam agir com sua anuência.
Observe o leitor o seguinte trecho do texto:
“Além disso, deve-se considerar o ponto fundamental, que é o desejo do governo sionista de conquistar toda a área da Palestina para ocupação e colonização judaica, expulsando a população nativa num processo de limpeza étnica que se iniciou em 1947, passou por 1967 e é renovado no século XXI com o genocídio de Gaza – como vimos no artigo “Um novo Oriente Médio”, em que reproduzimos o mapa de Netanyahu que representa a Palestina como parte de Israel.”
Por que deveríamos nos preocupar com o que Israel quer? Israel sempre quis controlar a Palestina e nunca o conseguiu completamente por conta da resistência. Agora, com o exército destruído pelo Hamas e sem apoio internacional algum, por que é que os desejos do governo israelense deveriam ser levados em conta? Há um grande abismo entre o querer e o poder e o fato é que o acordo de cessar-fogo demonstrou ao mundo que Israel não pode tudo o que quer.
Por fim, o autor publica o seguinte:
“A isso deve-se somar o fato de que o governo de Israel historicamente desrespeitou os acordos firmados com os palestinos, assim como desrespeitou e continua desrespeitando as resoluções das Nações Unidas, o que não abre espaço para otimismo. O mais provável – caso o acordo seja aprovado pelo Knesset – é que após conseguir o retorno dos reféns a Israel, o governo reinicie os ataques a Gaza, sob o pretexto de que o Hamas ainda não foi destruído, e intensifique os ataques à Cisjordânia, também um alvo do colonialismo sionista, sob o pretexto de que ali também há “terroristas” (os palestinos lutando por sua terra e sua sobrevivência). As perspectivas, assim, não são nada otimistas para a Palestina, e ainda teremos muitos anos de guerra até que a comunidade internacional se canse de Israel e resolva aplicar a lei que vale para os demais países.”
Como dissemos anteriormente, Israel nunca precisou de uma guerra para atacar os Palestinos e Gaza. O que aconteceu agora foi a demonstração de que Israel não consegue mais impor sua dominação na região por não ter forças. O que se abre é o caminho da vitória dos palestinos.
Voltando para como a esquerda pequeno burguesa pensa, lembremos de casos de acordos que deram errado para a resistência, como os acordos de Oslo ou os acordos de Minsk no caso do genocídio no Donbass, mas, centremo-nos em um caso particularmente próximo do Brasil tanto em tempo quanto em distância: os acordos de paz do governo colombiano com as FARC.
Em 2016, após anos de guerra civil, as FARC capitularam e fizeram um acordo de desarmamento com o estado colombiano. Na época, uma parte da esquerda pequeno-burguesa comemorou o acordo. O acordo, no entanto, dava garantias de papel para os membros das FARC, enquanto os tirava as armas. O estado da Colômbia, por sua vez, não havia sido derrotado e os acordos haviam sido costurados pelo imperialismo. Claro que deu errado.
Já o acordo do Hamas com Israel é favorável para a resistência, já que, diferente das FARC, o Hamas não irá se desmilitarizar. Também os termos foram impostos pelo Hamas, diferente do acordo colombiano, e, caso seja descumprido, como o acordo colombiano o foi pela própria colômbia, Israel terá de entrar novamente em guerra, contra homens armados, sem munição o suficiente, sem apoio internacional e sem pessoas dispostas a lutar.
No entanto, é aquele acordo e não este o celebrado pela esquerda pequeno-burguesa.
Também fica a dúvida: o que deveria ser feito, além do acordo? Se o acordo não é uma vitória, qual seria a vitória real?
O acordo de cessar-fogo, coloca um fim na morte em larga escala de toda a população, permite uma reorganização da Palestina, com mais força do que antes.
O acordo, assim como o acordo do Hesbolá, são diferentes, por exemplo, dos acordos que levaram Mandela ao governo na África do Sul, porque, na África, o que se colocava era a tomada do poder do país pela população negra. Neste caso, ainda não se colocou a tomada do poder pelos palestinos. Se isso estivesse colocado, assinar um acordo que permitisse a existência de Israel seria um retrocesso, mas não se trata disso.
O caso palestino tem pontos de contato também com outra epopeia da luta dos povos oprimidos contra o imperialismo, a vitória dos vietnamitas. O Dilúvio de Al—Aqsa encontra paralelo na Ofensiva do Tet, golpe que demonstrou que o imperialismo não poderia mais ser vitorioso. Já o acordo de cessar-fogo se assemelha aos acordos de 1973, quando os EUA iniciaram sua retirada do Vietnã. O que nos resta saber é como e quando se dará a Saigon israelense.