A jornalista, poetisa e escritora Nour Elassy, residente na Faixa de Gaza, publicou um relato contundente sobre os últimos três meses na região, desde o fim do cessar-fogo em março. Em artigo divulgado na última terça-feira (8) pela rede catarense Al Jazeera, ela descreve a escalada de violência promovida pelo país artificial “Israel” como um “horror sem fim”.
Elassy, que já escreveu diversos textos sobre a Resistência Palestina, usa suas palavras para documentar massacres e clamar por atenção global diante da crise humanitária que assola o enclave. Abaixo, reproduzimos uma tradução de seu artigo, originalmente intitulado Fear is not a word that can describe what we feel in Gaza (“Medo não é uma palavra que descreve o que sentimos em Gaza”, em português):
“As últimas três semanas desde o fim do cessar-fogo foram uma história de horror sem fim. Na semana passada, durante outra noite violenta, minha sobrinha de quase quatro anos me fez uma pergunta que nunca esquecerei. ‘Se morrermos enquanto dormimos… ainda vai doer?’ Eu não sabia o que dizer. Como você explica a uma criança — que viu mais morte do que luz do dia — que morrer dormindo é uma misericórdia? Então eu disse: ‘não. Acho que não. Por isso devemos dormir agora.’ Ela assentiu em silêncio e virou o rosto para a parede. Ela acreditou em mim. Fechou os olhos. Eu fiquei no escuro, ouvindo as bombas, imaginando quantas crianças estavam sendo enterradas vivas a poucos quarteirões dali.
Tenho 12 sobrinhos e sobrinhas. Todos com menos de nove anos. Eles têm sido meu consolo e alegria nesses tempos sombrios. Mas eu, como os pais deles, luto para ajudá-los a entender o que está acontecendo ao nosso redor. Tivemos que mentir tantas vezes. Eles frequentemente acreditavam em nós, mas às vezes sentiam em nossas vozes ou olhares que algo aterrorizante estava acontecendo. Sentiam o horror no ar. Nenhuma criança deveria suportar tamanha brutalidade. Nenhum pai deveria se encolher em desespero, sabendo que não pode proteger seus filhos.
No último mês, o cessar-fogo acabou, e com ele, a ilusão de uma pausa. O que veio depois não foi apenas a retomada da guerra — foi uma mudança para algo mais brutal e implacável. Em três semanas, Gaza virou um campo de fogo, onde ninguém está seguro. Mais de 1.400 homens, mulheres e crianças foram massacrados. Massacres diários destruíram o que restava de nossa capacidade de ter esperança.
Alguns deles nos atingiram em casa. Não só emocionalmente. Fisicamente. Ontem, o ar estava cheio de poeira e cheiro de sangue a poucas ruas daqui. O exército israelense atacou a rua al-Nakheel, na Cidade de Gaza, matando 11 pessoas, incluindo cinco crianças. Dias antes, na escola Dar al-Arqam, um lugar que abrigava famílias deslocadas, um ataque aéreo israelense transformou salas de aula em cinzas. Pelo menos 30 pessoas morreram em segundos — a maioria mulheres e crianças. Elas buscaram segurança ali, acreditando que a bandeira azul das Nações Unidas as protegeria. Não protegeu. A escola fica a menos de 10 minutos da minha casa.
No mesmo dia, a escola Fahd, nas proximidades, também foi bombardeada; três pessoas morreram. Um dia antes, houve notícias de uma cena de horror em Jabalia. Um ataque israelense atingiu uma clínica da UNRWA, onde civis se abrigavam. Testemunhas descreveram partes de corpos espalhadas pela clínica. Crianças queimadas vivas. Um bebê decapitado. O cheiro de carne queimada sufocando os sobreviventes. Foi um massacre em um lugar destinado à cura.
Em meio a tudo isso, partes da Cidade de Gaza receberam ordens de evacuação. ‘Evacuem. Agora.’ Mas para onde? Gaza não tem zonas seguras. O norte está arrasado. O sul é bombardeado. O mar é uma prisão. As estradas são armadilhas mortais. Ficamos. Não porque somos corajosos. Porque não temos para onde ir.
Medo não é a palavra certa para descrever o que sentimos em Gaza. Medo é administrável. Medo pode ser nomeado. O que sentimos é um terror sufocante e silencioso que se instala no peito e nunca sai. É o momento entre o assobio de um míssil e o impacto, quando você se pergunta se seu coração parou. É o som de crianças chorando sob os escombros. O cheiro de sangue se espalhando com o vento. É a pergunta que minha sobrinha fez.
Governos e políticos estrangeiros chamam isso de ‘conflito’. Uma ‘situação complexa’. Uma ‘tragédia’. Mas o que estamos vivendo não é complexo. É um massacre claro. O que estamos vivendo não é uma tragédia. É um crime de guerra.
Sou escritora. Jornalista. Passei meses escrevendo, documentando, clamando ao mundo com minhas palavras. Enviei relatos. Contei histórias que ninguém mais poderia. E ainda assim — tantas vezes — sinto que estou gritando no vazio. Mesmo assim, continuo escrevendo. Porque mesmo que o mundo desvie o olhar, não deixarei nossa verdade calada. Porque acredito que alguém está ouvindo. Em algum lugar. Escrevo porque acredito na humanidade, mesmo quando os governos lhe deram as costas. Escrevo para que, quando a história for escrita, ninguém possa dizer que não sabia.”



