Teoria marxista

Trótski nunca foi frenteamplista

O intelectual Valerio Arcary dedicou texto a falsificar posições do Trótski e defender que o dirigente russo deveria defender frente com a burguesia contra o fascismo

Na esquerda brasileira, há grupos e figuras que se consideram como trotskistas, mesmo quando defendem políticas que são totalmente opostas ao que defendeu Leon Trótski, um dos revolucionários mais importantes da história, dirigente do Partido Bolchevique na Revolução Russa e líder do Exército Vermelho.

Valério Arcary, colunista do Esquerda Online, é um desses sujeitos que presta um serviço contrário ao legado de Trótski. Arcary, atualmente no grupo Resistência, ligado ao PSOL, já foi também membro do PSTU, o que já nos indica um histórico de trotskismo às avessas.

Em seu texto Trótski não era infalível, Arcary defende que o líder bolchevique teria cometido erros ao longo de sua história militante, como quando defendeu não se aliar aos setores da “democracia liberal” contra o fascismo, no período da Segunda Guerra Mundial. Para sua argumentação, Arcary invoca um texto do historiador inglês Perry Anderson, em seu livro Considerações sobre o marxismo ocidental:

“Depois, no começo  da Segunda Guerra Mundial,  Trotsky condenou o conflito internacional como sendo uma mera repetição inter-imperia­lista da Primeira Guerra Mundial, na qual a classe operária não deveria optar por qualquer dos lados – apesar do carácter fascista de um e do carácter democrático-burguês do outro. (…) Os próprios primeiros escritos de Trotsky sobre a Alemanha constituem a melhor refutação dos seus escritos posteriores sobre a Guerra. Obviamente, uma vez que a URSS foi atacada pela Alemanha, Trotsky teria alterado a sua posição sobre o conflito mundial”

Concordando com Anderson, Arcary falsifica a posição de Trótski ao mencionar que ele teria mudado sua posição após a vitória de Hitler na Alemanha. No Programa de Transição, texto histórico de Trótski, que elaborava o programa da IV Internacional, o bolchevique foi incisivo ao afirmar que a classe operária não deveria formar nenhuma Frente Popular para derrotar o fascismo:

“É sobre esse ponto que inicia a irredutível divergência entre a IV Internacional e os velhos partidos que sobrevivem fisicamente à sua falência. A Frente Popular na emigração é uma das variedades mais nefastas e mais traidoras de todas as frentes populares possíveis. Significa, no fundo, a nostalgia impotente de uma coalizão com uma burguesia liberal inexistente. Se ela tivesse algum sucesso, apenas prepararia uma série de novas derrotas do proletariado à maneira espanhola. É por isso que a impiedosa crítica da teoria e da prática da Frente Popular é a primeira condição de uma luta revolucionária contra o fascismo.”

E Trótski continua a explicação em outro capítulo, ainda no Programa de Transição:

“O fascismo lançou esses países no campo da barbárie política, mas não modificou seu caráter social. O fascismo é um instrumento do capital financeiro e não da propriedade latifundiária feudal. O programa revolucionário deve se apoiar na dialética da luta de classes, impreterível também nos países fascistas, e não na psicologia dos falidos amedrontados. A IV Internacional rejeita com asco os métodos de política mascarada aos quais recorrem os stalinistas, antigos heróis do “terceiro período”, para aparecer ora com máscaras de católicos, de protestantes, ora de judeus, de nacionalistas alemães, de liberais, unicamente com o fim de esconder seu próprio rosto pouco atraente. A IV Internacional aparece sempre e em todos os lugares sob sua própria bandeira. Ela propõe abertamente seu programa ao proletariado dos países fascistas. Desde já, a vanguarda dos operários do mundo inteiro está firmemente convencida de que a derrubada de Mussolini, de Hitler, de seus agentes e imitadores produzir-se-á sob a direção da IV Internacional.”

Aqui, Trótski descreve com clareza o caráter de classe do fascismo, um instrumento da própria burguesia. E defende também a independência de classe necessária para travar uma luta real, e que, somente essa luta independente poderá derrotar o fascismo. E mesmo em seus escritos posteriores à Guerra, Trótski manteve sua posição.

Na sequência do texto, Arcary invoca o revisionista Nahuel Moreno, um dos responsáveis por distorcer completamente as concepções trotskistas da luta política. No texto de Moreno, fica explícita a inspiração de Arcary para defender uma frente com setores da burguesia para derrotar o suposto mal maior, no caso da ditadura militar na Argentina:

“Se é correto muda toda nossa estratégia com respeito aos partidos oportunistas e, em boa medida, a respeito dos partidos burgueses que se oponham ao regime contrarrevolucionário. Como um passo para a revolução socialista, nós estamos a favor de que vença um regime burguês [grifo nosso] totalmente distinto ao regime contrarrevolucionário. Assim como estávamos a favor da revolução democrático-burguesa, e dizíamos que era distinta da outra, a revolução socialista, que havia que fazê-la, que havia que derrubar na Rússia o Czar, que era uma tarefa democrático-burguesa específica, há que discutir se não temos agora também uma tarefa democrático-burguesa específica, que é derrubar o regime contrarrevolucionário para que venha, ainda que seja um regime burguês [grifo nosso]

Aqui, Moreno faz um malabarismo para defender o indefensável: uma aliança com o diabo, se for preciso, para derrotar o fascismo da ditadura militar. E podemos atribuir ao intelectual argentino toda essa falsa concepção trotskista que permeia a esquerda nos dias de hoje. Valerio Arcary é um dos seguidores dessas teses absurdas de Nahuel Moreno.

Além de falsificaram as ideias de Trótski, o objetivo é fazer uma defesa da democracia, ou seja, da burguesia e do imperialismo. Arcary se acha um intelectual tão incrível que se coloca em condições de dizer o que Trótski deveria ter feito à época do fascismo na Europa:

“Ser herdeiro do melhor da tradição marxista revolucionário não deve ser repetir aquilo que os gigantes que vieram antes de nós, escreveram. Os argumentos de autoridade não podem substituir a análise concreta da situação em que estamos imersos. Precisaremos de muito rigor, mas também, imaginação revolucionária”, disse Arcary em sua conclusão.

Para o grande intelectual, Trótski não deveria se opor ao fascismo e à democracia liberal (representada pelos Estados Unidos, Inglaterra e França, principalmente). A chamada democracia liberal é, na realidade, o bloco imperialista, que domina o mundo há séculos e mantém esse domínio até hoje. Trótski, que dirigiu a revolução na Rússia, que lutou contra o fascismo, ao mesmo tempo que era perseguido pela burocracia estalinista, tinha muita clareza dos interesses de classe que estavam em jogo na época da Segunda Guerra.

Trótski, assim como todo o restante do movimento operário, não tinham dúvidas de que o fascismo era um instrumento da burguesia e que não havia como se aliar à burguesia para derrotar a própria burguesia. É algo que não tem pé nem cabeça. Era notório que foi a burguesia, com os grandes empresários, os banqueiros, com apoio dos partidos burgueses que dominavam os parlamentos, que Hitler e Mussolini não só chegaram ao poder, mas que puderam comandar os países. Sem o apoio das instituições burguesas, o fascismo seria somente uma seita, não um governo institucionalizado.

Isso não significa não lutar contra o fascismo. Significa travar uma luta independente, da classe trabalhadora, das organizações da classe trabalhadora, contra o fascismo e a burguesia.

Não é porque a democracia liberal se apresenta como uma coisa mais amigável que os operários devem se aliar a ela. A essência política da democracia liberal e do fascismo é a mesma. Após a Segunda Guerra, ficou evidente como a democracia liberal é tão ruim quanto o fascismo, pois são esses mesmos países que bombardeiam os povos oprimidos, que dão golpes de Estado por onde passam. Foi a democracia liberal que tacou duas bombas e matou cerca de 300 mil pessoas no Japão, no período final da Guerra. Isso não deveria ser considerado uma política fascista?

O colonialismo imperialista é uma política fascista. O financiamento norte-americano do genocídio na Faixa de Gaza, uma verdadeira limpeza étnica, é fascista. A criação do Estado de “Israel”, após a Segunda Guerra, foi realizada com apoio de todos esses países imperialistas, ou seja, com apoio da “democracia liberal”.

A confusão que permanece no interior de toda a esquerda se apresenta como se fosse uma questão estratégica. Trótski não lutou contra o fascismo por considerar que o fascismo é pior que a democracia liberal. Ele lutou contra o fascismo porque essa era a política da burguesia para esmagar o movimento operário. Não é meramente um problema de estratégia. O fascismo e a democracia liberal são inimigos dos trabalhadores.

Quando a burguesia muda sua política de “democracia” para fascismo, ela não tá deixando sua essência reacionária de lado. E quando muda de fascismo para “democracia”, a mesma coisa.

Trótski apontava que as frentes populares, por um lado, e o fascismo, por outro lado, são os dois últimos recursos da burguesia para enfrentar a revolução proletária. Por isso, a aliança para derrotar o fascismo deve ser feita com os elementos da classe operária, com as organizações do movimento operário, como era a social-democracia, na época. A social democracia alemã tinha sindicatos, tinha uma base operária.

Para Trótski, os revolucionários deveriam chamar os operários e suas direções à luta, independente da adesão dessas lideranças ou não. O chamado dos operários é uma oportunidade de se travar uma luta contra o fascismo e a burguesia sob a bandeira dos comunistas, sob uma política revolucionária. Em momento algum foi defendido uma aliança com setores da burguesia.

Arcary faz tudo isso para justificar uma aliança com Alexandre de Moraes, o STF, a Rede Globo, a Folha de São Paulo e toda a imprensa golpista, para derrotar Bolsonaro. Trótski jamais defenderia esse tipo de barbaridade. O articulista, assim como um setor expressivo da esquerda brasileira, analisa a situação política sob uma perspectiva meramente tática, sem considerar a luta de classes. A frente única para lutar contra o “neofascismo” como chamam esses intelectuais, deveria ser uma frente para lutar contra a burguesia e o imperialismo também. E é impossível fazer uma frente contra o imperialismo com os principais elementos pró-imperialistas do Brasil, como o PSDB, o MDB, União Brasil, PP e toda essa corja da direita que deu o golpe em 2016. A frente deve ser feita entre as organizações de trabalhadores.

Com isso tudo, fica evidente uma total desorientação da esquerda. E no caso de Valerio Arcary, que se reivindica trotskista, é um atestado total de abandono do trotskismo, do marxismo e da política revolucionária.

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