O artigo intitulado Dosimetria, um conto do vigário, de autoria de Dora Kramer, publicado na Folha de S.Paulo, é um exemplo do cinismo liberal que domina a imprensa burguesa. O te,a do artigo é a recente decisão do Congresso Nacional de reduzir as penas abusivas aplicadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito do chamado Projeto de Lei (PL) da Dosimetria. Ao classificar a medida como um “atropelo” e um “toma lá dá cá”, Kramer não busca defender a legalidade, mas sim blindar a ditadura de toga contra qualquer tentativa de freio democrático. Para ela, o Parlamento é um balcão de negócios espúrios, enquanto o Judiciário — que atropela a Constituição diariamente — seria o último bastião da “institucionalidade”.
Dora Kramer acerta em um ponto, mas pelas razões erradas: há, de fato, um profundo oportunismo na conduta dos parlamentares. A aprovação do PL da dosimetria não nasceu de uma preocupação genuína com o sofrimento dos milhares de encarcerados pobres que apodrecem nas masmorras brasileiras sob penas injustas, mas sim de uma “deslavada troca de interesses”. No entanto, o moralismo de Kramer é hipócrita. Ela aponta o dedo para a “maracutaia” parlamentar, mas silencia sobre a safadeza muito maior que ocorre nos tribunais, onde ministros participam de convescotes com empresários e decidem sobre a liberdade de adversários políticos por puro arbítrio. O oportunismo do Congresso não anula o conteúdo da lei em si: a redução das penas é um imperativo de justiça contra sentenças bárbaras de 27 anos que rasgam o princípio da proporcionalidade.
A articulista inverte a realidade ao sugerir que o Legislativo agiu com “cinismo” ao “modificar decisões do Supremo Tribunal Federal”. O que ela se recusa a admitir é que o Congresso está apenas reagindo a uma situação de exceção criada pelo próprio STF. Quando um tribunal decide legislar por meio de sentenças, criando tipos penais e penas medievais para manipular as eleições, o Parlamento tem o dever de intervir. A colunista trata a soberania legislativa como um “conto do vigário”, revelando uma mentalidade que flerta abertamente com o espírito do AI-5: a ideia de que a política é “suja” e precisa ser tutelada por uma casta de técnicos e magistrados que não prestam contas ao povo.
O tom inquisitorial de Dora Kramer atinge o ápice quando ela reclama que “não houve sinal de arrependimento da parte dos agressores”. Ao exigir “arrependimento” para que o Direito seja aplicado, ela abandona a esfera jurídica e entra na esfera teocrática. No Direito Penal que não seja o da barbárie, a pena deve ser proporcional ao fato, e não um instrumento para dobrar a vontade ou a “hegemonia cultural” do inimigo. Kramer não quer justiça; ela quer a humilhação pública e a rendição incondicional de quem ousa desafiar a ordem que ela defende. Ao afirmar que “não existe paridade de condições entre agressor e agredido”, ela justifica qualquer atrocidade judicial em nome da “defesa da institucionalidade”. No fim, o “conto do vigário” é o dela: tenta vender como “zelo republicano” o que é, na verdade, a torcida sádica por uma ditadura judicial que amordaça o país.




