José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

Superávit primário, vaca sagrada da política econômica brasileira

Quando o grande capital estabelece um determinado objetivo, passa a contar com o apoio maciço da grande mídia e não adianta tentar desmistificar a tese em questão

Há décadas a política econômica do governo está ajustada às necessidades de pagamento dos banqueiros, a política econômica do Brasil está em boa parte subordinada aos interesses financeiros, nacionais e internacionais, ligados ao sistema da dívida pública. A condução da política econômica nacional coloca em primeiro lugar a garantia dos compromissos financeiros com os grandes credores, em detrimento do investimento social e do desenvolvimento produtivo.

Essa postura ocorre, inclusive, independentemente do grupo político que esteja no comando do governo. Os governos de esquerda se limitam, quando muito, a se queixar das taxas de juros, dado que revela, por si só, o poder político que detêm o setor financeiro. A queixa, sem ação concreta, caracteriza que a correlação de forças é desfavorável.

A elevação do superávit primário à condição de “vaca sagrada” da política econômica do governo, mostra que o compromisso com o pagamento dos juros aos detentores dos títulos da dívida (na maioria, grandes bancos, fundos de investimento e estrangeiros) é o mais importante e um objetivo em si mesmo. Tudo pode ser feito em nome do superávit primário: restringir política de aumento do salário-mínimo, retirar direitos históricos, promover sucessivas “reformas” da previdência.

Como a mídia comercial no Brasil é controlada pelos grandes grupos econômicos, o esforço de opinião dos economistas que se opõem a essa política, mesmo baseados em dados muito consistentes, quase não tem repercussão. Quando o grande capital estabelece um determinado objetivo, passa a contar com o apoio maciço da grande mídia e não adianta tentar desmistificar a tese em questão. Vimos isso durante a farsa do impeachment da presidenta Dilma Roussef. Para justificar aquela ação política criminosa, totalmente baseada em mentiras, batiam na tecla de que o governo Dilma teria “quebrado” a economia do país. Como um dos indicadores que comprovariam isso, apontavam o déficit primário do governo à época. O problema é que, segundo dados das instituições multilaterais, os países com superávit primário em 2016 eram um grupo muito pequeno, e com economias diminutas. A maioria dos membros do G-20 e boa parte da América Latina tiveram déficit primário em 2016. Países como Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Japão, Reino Unido, França, Itália, China, todos apresentaram déficit primário, sendo inclusive, em parte deles, um problema estrutural.

Os EUA, tido como modelo a ser seguido por muitos analistas ortodoxos, nos 21 anos, que vão de 2004 a 2024, apresentaram superávit primário apenas em 2007 e 2008. E assim mesmo, com números irrisórios nesses dois anos, abaixo de 1%. Em compensação, somente em 2024, o déficit nominal das contas públicas dos Estados Unidos, (conta que considera todas as receitas e despesas do governo, incluindo o pagamento dos juros da dívida) foi de cerca de US$ 1,86 trilhão, equivalente a 6,7% do PIB, segundo dados mais recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI). O resultado não foi um ponto fora da curva, tem sido assim há décadas. Uma rápida pesquisa entre os países do G-20 vai mostrar que, com exceção da Austrália, que apresentou pequeno superávit, todos os demais tiveram déficit fiscal em 2024.

Um dos dispositivos mais importantes para sustentar o esquema da dívida pública é a taxa de juros real, muito acima da média mundial, sob o argumento de combate à inflação. Em 2024 a média da taxa Selic real ficou em torno de 5,85%, contra uma taxa real básica de 1,8% nos EUA, 0,8% na Zona do Euro e -2,5% no Japão. É conhecido que países de capitalismo atrasado têm taxas de juros maiores, conforme se pode observar nos rankings de países com as maiores taxas reais de juros. Um dos argumentos para esse quadro é, dentre outros, a necessidade de dar um prêmio maior aos “investidores”, por terem esses países maior instabilidade política, econômica e institucional. Para compensar o risco-país, haveria necessidade de juros mais altos, para atrair os “investidores”. Caberia perguntar, de início, se aos países atrasados interessaria realmente esse tipo de especulador, eufemisticamente chamado de “investidor”.

Um outro aspecto também deveria ser considerado. Será que os EUA, que tem taxa de juros reais no momento de 1,98%, pode ser considerado um país estável politicamente e seguro do ponto de vista institucional? Afinal, como acontece há muitas décadas, os principais focos de guerra ou genocídio hoje no mundo, são sustentados pelos EUA. Ademais, o país vive grande polarização política interna.

O Brasil pratica uma taxa básica de juros nominais de 15%, taxa real de 9,53%, a segunda no mundo, atrás apenas da Turquia, que tem taxa real de 14,44% ao ano. A Turquia tem uma inflação anual de acima de 35%, contra uma inflação anual do Brasil de 5,35% (IPCA-IBGE). A taxa real de juros praticada no Brasil está acima da Rússia (taxa real de 7,63% ao ano), país que enfrenta, há três anos e quatro meses, uma guerra contra os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

É nesse contexto geral que o FMI tem recomendado ao governo brasileiro que adote um ajuste fiscal “sustentado e mais ambicioso” para garantir sustentabilidade da dívida pública, criar espaço para investimentos prioritários e possibilitar um crescimento econômico sustentável. Segundo o FMI, o esforço realizado até agora é insuficiente diante dos desafios fiscais do país e seriam necessárias medidas adicionais, para que a dívida pública brasileira pare de crescer. O Fundo recomenda enfrentar a “rigidez” de gastos públicos, especialmente em áreas consideradas “insustentáveis”, como previdência social e folha do funcionalismo público. Para o FMI, um ajuste fiscal “robusto”, seria a solução para colocar a dívida pública em trajetória de queda.

Ou seja, o FMI está pedindo um ajuste fiscal ainda mais rigoroso e abrangente do que aquele que o governo brasileiro vem implementando. Para o Fundo, seriam necessárias medidas adicionais mais duras, para assegurar a “estabilidade econômica” no longo prazo. A posição do FMI é uma espécie de ameaça: se não fizer um ajuste fiscal ainda mais rigoroso, o país terá custo de financiamento maior (ou seja, a taxa de juros terá que ser maior), o investimento será menor e o crescimento econômico mais fraco.

O problema é que o FMI, instituição que é 100% comprometida com os interesses econômicos dos países ricos, inverte o argumento. O custo do financiamento é maior, e o investimento é baixo, justamente em função do sistema da dívida pública. Até junho de 2025, em 12 meses, o setor público consolidado do Brasil — que inclui Governo Central, estados, municípios e estatais (excluindo Petrobras e Eletrobras) — registrou um superávit primário acumulado de R$ 24,143 bilhões (0,20% do PIB). No mesmo período, o setor público consolidado do Brasil registrou um déficit nominal acumulado de R$ 922,0 bilhões, o que representa 7,58% do Produto Interno Bruto (PIB).

O resultado nominal considera tanto o resultado primário (saldo entre receitas e despesas, sem contar juros) quanto os juros nominais apropriados sobre a dívida pública. Ou seja, há um déficit gigantesco, um quadro de deterioração fiscal, exclusivamente em razão dos elevados gastos com juros no período. O Tesouro Nacional estima que, com a queda de 1 ponto percentual da taxa Selic, a união pagaria, em 12 meses, R$ 36,97 bilhões a menos de juros.    Em face desses números tão evidentes, a recomendação do FMI não é reduzir a taxa de juros e sim a de que o Brasil opere um ajuste fiscal mais rigoroso do que o que já está praticando.

Segundo o Fundo, o superávit primário necessário para estabilizar a dívida é de 1,7% do PIB. Isso implica em um ajuste muito mais duro do que o Brasil está fazendo. Esse ajuste, passa, por exemplo, pelo fim da indexação dos direitos previdenciários ao salário-mínimo e pela redução real dos gastos em saúde e educação, medidas marteladas diariamente na imprensa comercial.

O sonho de política econômica para o Brasil, dessas instituições como o FMI, que são braços do imperialismo, seria uma política nos moldes que está sendo colocada em prática pelo governo de Javier Milei, na Argentina. Em troca de um empréstimo de US$ 20 bilhões (que deverá ser desembolsado pelo FMI em 48 meses), o governo reduziu as despesas sociais do Estado em cerca de 5% do PIB e assumiu o compromisso de aprofundar as “reformas estruturais” de desregulamentação e abertura da economia para capitais estrangeiros. No momento, cerca de 57% da população vivi em condições precárias e enfrenta algum grau de fome (“alguma privação de alimento”). Além disso, a massa salários dos trabalhadores argentinos já caiu 13% em termos reais, desde o começo do governo. Alguém pode imaginar que esse tipo de política vai dar certo na Argentina e daria certo no Brasil?

* A opinião dos colunistas não expressa, necessariamente, a opinião deste Diário.

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.