Camila Gonzaga

Camila Gonzaga, ativista dos Direitos Humanos, formada em Serviço Social pela FURB – Universidade Regional de Blumenau, atualmente Conselheira Tutelar em exercício no município de Blumenau – SC

Coluna

Sou catarinense e afirmo: quem vem de fora é bem-vindo

“Atendi uma família cujo encaminhamento se dava por conta de infrequência escolar. Até aí, tudo rotineiro”

Às vezes, tem coisas que surgem em conexão na nossa cabeça e não sabemos como elas se agrupam com tanta facilidade, não é mesmo?

Na sexta-feira, foi mais um dia de atendimentos no trabalho que fui escolhida pelo povo para exercer: ser Conselheira Tutelar em Blumenau. E, apesar da formação em Serviço Social, tem dias que nem o conhecimento anterior ajuda ou prepara para o que virá.

Atendi uma família cujo encaminhamento se dava por conta de infrequência escolar. Até aí, tudo rotineiro. Felizmente, existe um programa muito importante em Santa Catarina, em parceria com unidades escolares, Conselho Tutelar e Ministério Público, que visa olhar para a infrequência, evasão e abandono escolar com muita seriedade. Eis que esse caso que atendi demonstrava outras questões além da infrequência escolar e, como sempre costumo dizer, por trás de uma criança ou adolescente que não está indo para a escola, pode haver outras violações de direitos.

O adolescente que estava no atendimento, junto de sua mãe, demonstrava sinais evidentes de tristeza, vergonha e desânimo.
A mãe, ao contar a narrativa dos fatos, disse que ele havia deixado de ir para a escola por conta de bullying. Ela teria vindo do Norte do país para “melhorar as condições da sua família, em Blumenau”. Um ano após estar na cidade, o filho, que ainda estava no Norte com a avó materna, pediu para vir com a mãe — primeiro, pelo óbvio vínculo que os dois tinham e, depois, porque queria ter um futuro profissional que dificilmente teria na cidadezinha do interior onde moravam.

Ao chegar em Blumenau, toda a felicidade contida nessas possibilidades foi sendo abafada por uma colega de sala de aula, que dizia que ele não deveria estar aqui. Recebia bolinhas de papel todas as vezes que passava entre as carteiras dispostas na sala. Ainda assim, o adolescente não queria gerar incômodo à mãe e deixou de ir à escola sem que ela soubesse. Inteligente, bom filho e sem qualquer histórico de reprovação no estado de origem, agora ele corria o risco de ser reprovado devido às faltas que iam se acumulando.

Mas não era só a infrequência — como eu disse, quase nunca é só sobre isso. Por isso, antes de aplicar as medidas protocolares de retorno obrigatório à escola, sabia que precisava ir à raiz do que estava ocorrendo.

E aquele menino, que apesar de ter uma considerável altura, foi se apequenando ao contar tudo isso, o fazia de olhos baixos. Pedi então que me olhasse nos olhos. Disse a ele com firmeza:
— Você é bem-vindo aqui. Desejo que você seja feliz aqui.

O suspiro constrangido de alívio do garoto fez a salinha minúscula de atendimento ficar cheia de sentimentos. E, mesmo sem esforço algum, era possível sentir de muito perto a dor que esse bullying lhe causou.

Saí do atendimento triste, sempre confiante de que é melhor sentir tristeza do que não sentir nada. Afinal, é importante, enquanto seres humanos, que a gente passe pela vida tateando esse tipo de dor — a dor da empatia, de sentir com o outro. E é um pouco disso que fazemos diariamente em nosso trabalho. Além disso, cabe dizer: não é um atendimento incomum. Cotidianamente acompanhamos situações similares à que narrei.

O expediente passou e o “sextou” veio. Já em casa, vendo as redes sociais de amigos, me deparei com um vídeo incômodo de um casal que mora em Pomerode, relatando sobre a vinda de pessoas de outros estados para cá. Em um dos trechos, a moça dizia:
— Sinceramente, tem gente que nunca deveria ter vindo pra cá.
E ainda:
— Faz um favor pra nós e fique onde está.

Enquanto a ouvia falar de forma incisiva e firme, lembrava do rosto daquele adolescente transmitindo, com a voz embargada, tudo o que viveu nos últimos meses. E não, meu trabalho não é investigativo e muito menos punitivo, por isso o atendimento é voltado ao adolescente que sofreu a violação de direitos. Mas, ao ver o vídeo desse casal, imaginava qual discurso, com quem e em que espaço, a adolescente — neste episódio, causadora do bullying — aprendeu que “sou mais que o outro”.

Mas, como esse tal “sou mais, sou melhor” nunca é o que parece… A tal “projeto de influencer”, que no vídeo viralizado dizia que aqui não há espaço para “assistencialismo estatal”, também foi flagrada e teve que se explicar após serem divulgados dados de que teria recebido cerca de R$ 11 mil em auxílio emergencial. Na data de ontem, assumindo o recebimento desse benefício, ela mesma postou em seu Instagram:
— Foi o auxílio emergencial que garantiu comida na mesa e o básico da nossa casa até que eu conseguisse me realocar no mercado de trabalho.

Ainda em resposta, uma seguidora comentou, e ela replicou:
— (Eles agem assim porque…) É que tu tem olhos azuis, um cabelo dourado maravilhoso e uma pele show.

Não quero entrar na esfera do racismo presente nesse episódio, porque às vezes pode ser melhor que mastiguemos pouco a pouco o veneno presente nas injustiças, para que se transforme em dose homeopática de remédio.

E dessa forma, encarando pouco a pouco a realidade, é que, numa sexta-feira, rostos e vozes iam se sobrepondo e encaixando-se num triste “quebra-cabeça”, literalmente.

Primeiro, o rosto do jovem triste, cabisbaixo, voz trêmula.
Depois, o vídeo do casal, com muitos seguidores, expressão agressiva, vozes firmes e incisivas.
E, para fechar com chave de ouro, caro leitor: a lembrança de tantos vídeos, reuniões e espaços em que, não raramente, ouço pessoas públicas, gestores e gestoras falando — sem base nenhuma de dados — em tons pejorativos e preconceituosos sobre quem vem de outro lugar, aliado a um discurso velado sobre a importância de manter as origens europeias e alemãs.

Não sei se tenho esse dever ou direito. E imagino que desconstruir privilégios seja doloroso demais para quem os perde. Mas queria avisar à moça dos cabelos dourados e olhos azuis que, para que seus antepassados viessem “conquistar” essa terra “com tanto trabalho”, como ela menciona nos vídeos, eles tiveram que ter ajuda estatal através da “doação” de terras. E muitos bebês — não alemães, e sim indígenas — foram mortos, inclusive com relatos de que alguns bugreiros os jogavam para o alto apenas para que caíssem em seus facões. Bugreiros esses contratados pelos povoadores e colonizadores de Blumenau.

Teus antepassados, senhora projeto de influencer, eram estrangeiros nesta terra também.
A diferença entre eles e o menino que atendi em minha sala? Muitas. Essas deixo ao encargo da tua própria avaliação.
Mas a semelhança está em algo que tu mesma disseste em um dos vídeos: teus antepassados “vieram em busca de uma vida melhor e de trabalho”. Ora, ora… o mesmo que escutei do adolescente, mas por ora quase impedido pelo bullying e preconceito que tu ajudas a construir.

Se não é tarde — espero que não —, desejo para esta semana, o que rezo desde sexta: que pessoas como você evoluam. Para o bem do nosso vale e de todos que nele vivem, nascidos ou vindos em busca de uma vida melhor!

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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