Nas últimas décadas, em especial depois da derrocada do bloco soviético e a dominância unilateral imperialista, intensificou-se um tipo de narrativa que valoriza o empenho pessoal do sujeito que, para alcançar o sucesso, precisa basicamente de um combustível de ânimo pessoal, desejo, garra e determinação. “O céu é o limite” bradam os entusiastas da promessa capitalista de transformar cidadãos comuns em megaempresários, usando para isso apenas a chama de dedicação e o empenho para subir indefinidamente. Os sonhos de construção de uma sociedade mais justa, que eram nossos devaneios coletivos na virada dos anos 60-70 do século passado, foram aniquilados pela realidade da queda do muro e por uma ideologia de crescimento através de projetos individuais de riqueza e poder. Não havia mais espaço para projetos coletivos: o mundo havia se tornado um gigantesco “cada um por si”.
Com isso proliferaram histórias de pessoas que, partindo de quase nada e munidos apenas de sonhos, alcançaram fortuna e poder. Entramos na era do “empreendedorismo”, dos coaches, dos gurus, dos influencers de mercado, onde ter seu próprio negócio e investir na bolsa é sinônimo de uma vida aventureira e cheia de ação. Por outro lado, ter um trabalho formal, ser um médico, lojista, radialista, advogado, ter carteira assinada e – pior ainda – ser funcionário público é sinal de fracasso. No nosso imaginário coletivo surgiram exemplos maravilhosos de brasileiros que foram trabalhar na construção civil nos Estados Unidos e depois se tornaram empreiteiros de sucesso, mas estrategicamente nos escondem que esse resultado não passa de 0.001% dos patrícios que se aventuram nas terras gringas, sendo a maioria empregados que se permitem explorar, sem qualquer seguro de saúde e sem previdência. O capitalismo é um bilhete de loteria, ou um dízimo doado ao pastor: apenas àqueles munidos de fé será possível alcançar a graça.
No meio destes “empreendedores” aparecem aqueles que, sem qualquer habilidade especial, ou impedidos de usarem as que têm por falta de lugar ou condições de exercer seu ofício, se jogam à venda de comida na rua, de porta em porta, na praia ou nas esquinas das grandes cidades. Também a eles se oferece a ideia de que, com persistência e obstinação, um dia chegarão ao sucesso. O sujeito que vende bolo de pote na saída da faculdade para os estudantes esfomeados que saem das aulas é visto como um empreendedor moderno atrás do seu sonho dourado de ascensão social.

Não é difícil perceber que não existe nenhum “sonho” em vender estas guloseimas. Não haveria nem se – ao invés de bolo de pote – fossem “sonhos” de padaria. O que há nessas pessoas é apenas necessidade, muitas vezes desespero, produzidos por uma sociedade onde seu trabalho não é valorizado ou é mal utilizado. Entretanto, esta sociedade agora os trata como sonhadores, gente movida por um projeto dourado de futuro, o qual, através do trabalho árduo e persistente, um dia poderá ser alcançado. Não é justo romantizar a pobreza e a escassez.; não há beleza, nobreza ou um futuro brilhante para um homem velho vendendo bolinhos na rua. O que o move é apenas o rugir do aluguel atrasado e o trovão das contas a pagar; é isso que o faz acordar todas as manhãs para vender seus produtos.
Sim, comprem os bolos de pote, ajudem o próximo, distribuam riqueza, valorizem o trabalho alheio e reconheçam o esforço destes nobres sujeitos que vendem sua força de trabalho para dar o devido sustento às suas famílias, mas não caiam na fantasia neoliberal de chamar estes sujeitos de “empreendedores” e seu negócio um “sonho”. Não sejam dessas pessoas que acreditam na fábula de que a escravidão do neo feudalismo capitalista é uma “oportunidade”, e a exploração a que são submetidos é, em verdade, uma “chance de crescer”. Glamorizar a pobreza e o sacrifício não é a missão de quem projeta um futuro de paz social. Não temos mais o direito de cair nesse engano.