Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Coluna

Robôs no Judiciário

Judiciário usa algoritmos de inteligência artificial para negar direitos à população

Recentemente, tomamos conhecimento de que o Judiciário criou uma coisa chamada Núcleo de Justiça 4.0 – Saúde, que é uma espécie de vara eletrônica à qual são direcionados pedidos judiciais de medicamentos de alto custo. Ao que tudo indica, os processos são analisados por robôs de inteligência artificial, muito bem treinados para aplicar os critérios de “custo-efetividade” nas decisões. Por óbvio, esses novos funcionários da Justiça são ágeis e “racionais” e, provavelmente, conseguirão reduzir a “judicialização da saúde” – mesmo que seja à custa da vida de cidadãos.

A novidade não ganhou as manchetes de jornais nem parece ter sido discutida amplamente na sociedade, embora suscite óbvias questões éticas. Ao contrário disso, o sistema foi criado mais ou menos na surdina – e os pacientes ficam sabendo quando são vítimas dele. Vem havendo, de uns anos para cá, um esforço para mudar a abordagem da Justiça no que se refere à saúde. Argumenta-se que o juiz não teria condições de arbitrar um pedido médico por falta de conhecimento técnico.

Isso deu origem à criação de Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-Jus), instituídos pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2016, com o objetivo de reduzir a judicialização. O setor privado, com sua expertise, participou dos debates que vieram a moldar a “lógica racionalizadora” desses núcleos de pareceristas, muito próxima da racionalidade contratual aplicada pelas empresas, ou seja, foco em custo-efetividade, evidência científica e protocolos padronizados.

O discurso da racionalização tem sempre aparência “lógica”, mas, trocando em miúdos, em nome da racionalidade, é possível negar um medicamento a um paciente por causa do preço, e as decisões, por serem padronizadas, ignoram as peculiaridades de cada caso, quando não se perdem em burocracia inútil, enquanto uma pessoa luta minuto a minuto pela vida. A evidência científica é um capítulo à parte, pois seria atestada pelo registro do medicamento na Anvisa, o que pode não existir por não ter havido um pedido, por demora em tramitação burocrática etc. A racionalização acaba sendo uma desculpa para não gastar dinheiro. Com esse sistema, a “lógica” empresarial vai-se irradiando para o SUS.

No Brasil, juízes da mais alta corte, o STF, são frequentemente convidados a participar de congressos de associações de empresas de saúde privada. Essa proximidade é corriqueira e, possivelmente, não fortuita. As operadoras de saúde também enfrentam grande número de processos por variados motivos – e a judicialização tornou-se o grande problema do setor, a ser resolvido no andar de cima, ou seja, fazendo lobby com os ministros do STF.

Ora, esses empresários são muito convincentes e, ao que tudo indica, ganharam os corações e as mentes do Judiciário brasileiro, que, pensando como CEOs de grandes empresas, aprenderam a fazer justiça “sustentável”, ou seja, passaram a tratar as decisões judiciais relativas à saúde como atos de gestão administrativa de empresas, mesmo quando têm de decidir sobre o sistema público.

No Brasil, convivem dois sistemas de saúde, o privado, regido pelo direito contratual, e o público, regido pela Constituição. O primeiro é um serviço adquirido pelo usuário, o segundo é um direito garantido pela lei maior do país. Tanto um como outro são alvo da judicialização e, por óbvio, os processos são todos julgados pelos mesmos juízes. O Núcleo de Justiça 4.0 – Saúde deu um alento aos empresários da saúde, criando o que chamam de “ambiente estável e regulado”, mas a vara robótica especializada em saúde recebe qualquer processo de saúde, tanto das empresas particulares quanto do SUS.

O que nos parece aqui é que os critérios criados pelo STF sob a presidência de Luís Roberto Barroso, para dar uma forcinha às operadoras de saúde, interpondo obstáculos à judicialização, automaticamente se estendem às decisões sobre o sistema público. Ainda que formalmente não seja assim, uma nova mentalidade vem tomando conta do Judiciário. Assim, os juízes, antes de concederem um medicamento para salvar a vida de alguém, são instados a pensar na “sustentabilidade” do sistema.

O próprio Luís Roberto Barroso, quando presidente do STF, defendeu abertamente a necessidade de equilibrar o direito individual à saúde com a sustentabilidade do sistema como um todo. Segundo o entendimento dele, ao conceder o pedido de um indivíduo, o juiz produz um impacto na coletividade que depende do sistema. Em outras palavras, o ministro opôs o indivíduo à coletividade da qual esse mesmo indivíduo é parte. O argumento é falacioso, porque a coletividade é uma abstração, que se materializa nos indivíduos com suas dores, de modo que a justiça só pode ser feita no caso concreto mesmo.

Antes da pandemia, a imprensa da burguesia vinha apresentando um discurso claramente anti-SUS, e o tal ministro Mandeta, do governo Bolsonaro, era favorável à privatização do sistema. Essa ideia não prosperou por causa da pandemia, que só não teve efeitos mais desastrosos porque o país tem um sistema universal de saúde pública. Mas a turma da saúde privada continua de olho nesses recursos.

A palavra de ordem hoje no setor privado de saúde é “integração entre os sistemas público e privado”. Na prática, já existe uma espécie de integração, pois, muitas vezes, o SUS atende pacientes que têm convênios de saúde, o que gera uma dívida dessas empresas com o governo. Hoje, as operadoras privadas devem R$ 1,77 bilhão ao SUS (R$ 1,07 bilhão na dívida ativa, ou seja, montante passível de cobrança judicial). Mesmo assim, a possibilidade de tais valores serem ressarcidos ao SUS é remota, pois as empresas judicializam a dívida, e seus departamentos jurídicos postergam indefinidamente o pagamento, o que é facilitado pela ausência de sanções severas.

Pensando nessa situação, o governo Lula criou o programa Agora Tem Especialistas, que seria uma forma de receber parte da dívida na forma de atendimentos à população que sofre nas filas do SUS, o que inaugura uma espécie de parceria formal entre a rede privada e o sistema público. A adesão ao programa tem sido feita a passo de tartaruga. A operadora Hapvida foi a primeira a aderir, talvez estimulada pelo perdão de R$ 866 milhões de uma dívida de R$ 2,2 bilhões com o SUS por meio do programa Desenrola Brasil, criado pelo governo para renegociar dívidas de pessoas físicas inadimplentes. Segundo a revista Piauí, que publicou reportagem sobre o caso, “o governo ainda analisa o pedido, mas a Hap­vida já contabilizou os efeitos do acordo no balanço de 2024 – o que teve repercussão no tamanho do lucro distribuído a acionistas e do bônus pago aos executivos”.

De modo geral, as operadoras de saúde, aparentemente, não estão muito entusiasmadas com o programa do governo: em parte, porque consideram baixos os valores de referência do SUS para cálculo de ressarcimento (relutam mesmo sem botar a mão no bolso); em parte, porque podem postergar o pagamento; em parte, porque não querem apoiar, ainda que indiretamente, o governo Lula.

Hospitais frequentados pelas classes mais abastadas, como o Albert Einstein, o Sírio-Libanês, o Oswaldo Cruz e outros, são registrados como entidades beneficentes, o que lhes permite não pagar impostos, inclusive o imposto de renda da pessoa jurídica (IRPJ). Existe uma lei segundo a qual essas instituições podem oferecer alguns serviços ao SUS em troca dos impostos. Estima-se que, no conjunto, hospitais filantrópicos no Brasil abatam, em média, cerca de R$ 15 bilhões por ano em impostos federais, estaduais e municipais devido à imunidade tributária garantida pela legislação.

Mesmo sem entrarmos em detalhes, não é difícil perceber que o setor privado abocanha com relativa facilidade boa parte dos recursos da saúde, que já são muito inferiores ao necessário porque o país é refém da dívida interna, ou seja, dos bancos. A desculpa do setor privado de saúde é que, sem a sua participação, o SUS, sobrecarregado, não teria condições de atender a população. Cerca de 50 milhões de pessoas no país têm um plano de saúde. Ocorre, porém, que as operadoras, sedentas de lucros, cobram cada vez mais caro pelos serviços e lançam mão de estratagemas para burlar a regulação da ANS, aplicando aumentos proibitivos para a maior parte das pessoas. O resultado é, por um lado, judicialização e, por outro, migração da classe média para o SUS, o que deve preocupar os empresários. Afinal, se a população perceber que se sacrifica para pagar o plano de saúde e, quando mais precisa, não consegue usá-lo, a tendência será buscar o SUS.

Ora, a saúde privada teria de ser melhor que a pública – não ter filas de espera, ter melhores médicos, melhor atendimento, melhores hospitais –, mas a população parece bem insatisfeita ultimamente. Ao mesmo tempo, o SUS tem de ser pior que os planos, caso contrário ninguém vai pagar a uma empresa aquilo que pode receber como um direito. É aí que a porca torce o rabo.

No caso da judicialização, é mais fácil para as operadoras privadas recusar um medicamento de alto de custo, sob alegação de que o contrato não prevê aquele direito. Para o Estado, a coisa é diferente. O Estado oferece saúde como direito natural, garantido na Constituição. Em outras palavras, o “contrato” é a Constituição, portanto o Estado não pode negar o tratamento. Por que, então, o Estado está negando tratamento urgente em situação de vida ou morte?

E mais: como pode o Estado alegar “sustentabilidade” ou falta de dinheiro para custear um medicamento que vai salvar a vida de uma pessoa, se o sistema deixa escoar pelo ralo vultosas quantias, seja em socorro de empresa privada, seja como abatimento de impostos de hospitais da elite econômica, seja em desperdício mesmo, conforme detectou recente auditoria da Controladoria-Geral da União, segundo a qual o SUS pode ter perdido até R$ 7,29 bilhões em vacinas, medicamentos e outros insumos de 2021 a 2023 – cerca de R$ 2,31 bilhões em produtos comprados pelo Ministério da Saúde que venceram ainda no estoque, além de R$ 4,98 bilhões tratados como “perda potencial”, como insumos entregues com menos de 90 dias de validade.

Para piorar um pouco a situação, segundo matéria da Folha de S. Paulo:

Ainda há uma parcela perdida de R$ 24 milhões em medicamentos comprados por decisão da Justiça, como aqueles de alto custo e destinados a doenças raras. O ministério ponderou que cerca de 80% do valor se refere aos casos em que os insumos judicializados foram devolvidos pelos pacientes ou por secretarias de estados e municípios”.

Os medicamentos judicializados devolvidos por pacientes, é bom que fique claro, são remédios que demoraram tanto a chegar, dados os entraves burocráticos, que encontraram o paciente já sem vida ou em estado tão agravado que tornou inútil a sua aplicação. Seria muito bom que os juízes ou os robôs fossem avisados de que pedidos de urgência, que envolvem risco de vida, não podem esperar indefinidamente. Se salvar a vida de um ser humano não é argumento suficiente, que reflitam sobre o desperdício que essa burocracia acarreta ao sistema. Como se vê, são bilhões da saúde em recursos perdidos ou destinados a entidades privadas. Avisem, por favor, os robôs da vara 4.0 que um medicamento de R$ 3 milhões para salvar uma vida não vai desestabilizar o sistema.

 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.