José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

Regimes Próprios de Previdência e Justiça Previdenciária

"O Executivo Municipal de Florianópolis enviou à Câmara de Vereadores, em fevereiro, uma proposta de reforma da Previdência dos servidores municipais"

O Executivo Municipal de Florianópolis enviou à Câmara de Vereadores, em fevereiro, uma proposta de reforma da Previdência dos servidores municipais. Conforme o governo deixou bem claro, a reforma proposta segue as diretrizes da reforma nacional, advinda da Emenda Constitucional nº 103/2019, feita pelo governo de Jair Bolsonaro. Por isso mesmo, o essencial da proposta segue a linha da daquela Emenda, ou seja, transfere o custo do ajuste para as costas dos servidores: aumenta a Idade Mínima para Aposentadoria, obrigando os servidores a trabalharem por mais tempo do que o inicialmente previsto; reduz significativamente os valores dos benefícios; estabelece um pedágio de 100% para servidores que estão próximos de se aposentar; define um sistema de pontuação, que adia significativamente o acesso à aposentadoria.

Tomados de surpresa pelo envio do projeto, feito sem nenhuma negociação anterior com o Sindicato, os trabalhadores reagiram imediatamente, realizando uma forte greve, que durou 13 dias em pleno mês de fevereiro. Graças a esse movimento, e após algumas tentativas de conciliação no Tribunal de Justiça, os servidores conseguiram o adiamento da votação da reforma na Câmara Municipal. A pedido do Executivo, decorrência da negociação, a Câmara de Vereadores irá votar o projeto de reforma da previdência após o dia 7 de abril. Na negociação para encerramento da greve, o Sindicato conseguiu também uma cláusula garantindo que não haverá demissões dos trabalhadores envolvidos na paralisação, incluindo os servidores temporários. Outra conquista importante foi o comprometimento da administração municipal de convocar 268 candidatos aprovados no concurso de 2023 para reforçar o quadro de servidores. 

A vitória dos servidores com o movimento só não foi total porque o Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de Florianópolis (Sintrasem) foi multado em R$ 700 mil, por ter realizado a greve, considerada ilegal pela Justiça. Nessa greve, portanto, novamente os servidores municipais enfrentaram, além do executivo municipal, a Justiça. ​A greve iniciou no dia 12 de fevereiro e, no dia seguinte, a Justiça de Santa Catarina declarou a greve ilegal porque, no entender do desembargador que tomou a decisão, não respeitou a exigência de notificação prévia aos usuários dos serviços afetados. Além do Sindicato supostamente não ter buscado mediação antes de começar a greve. O que não é verdade, porque qualquer sindicato atuante, como é o caso do Sintrasem, está sempre disposto a negociar, ainda mais algo fundamental como o sistema de aposentadoria dos seus trabalhadores. A partir daí, a Justiça determinou que os servidores retomassem integralmente os serviços públicos, sob pena de uma multa diária de R$ 200 mil. 

Tem sido assim há muitos anos. Na greve dessa mesma categoria em março de 2024, por exemplo, a Justiça declarou a ilegalidade e abusividade da greve logo em seguida ao início do movimento e exigiu que as atividades paralisadas fossem integralmente restabelecidas em, no máximo, 24 horas. Autorizando, inclusive, o desconto salarial dos dias não trabalhados, após esse prazo. Além disso, proibiu os trabalhadores de entrar em prédios públicos e estabeleceu uma multa diária no valor de R$ 100 mil. Ou seja, na greve de fevereiro, o Sintrasem se deparou mais uma vez com um problema bem conhecido: apesar do direito de greve dos servidores públicos no Brasil ser assegurado pela Constituição Federal de 1988, na prática, servidor público não pode fazer greve. 

Em relação à proposta de reforma da previdência, a intenção divulgada pelo Executivo é diminuir o déficit do sistema previdenciário, que se acumula há décadas, e que vem se agravando nos últimos anos. O governo alega também, para realização da reforma, que decisões do TCE-SC (Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina), exigiram providências dos municípios para estabelecer o equilíbrio financeiro e atuarial dos RPPS. Entre as principais mudanças propostas, estão a alteração da idade mínima para aposentadoria, do tempo de contribuição, o aumento da alíquota de contribuição para aposentados e pensionistas e as novas regras de transição para os servidores ativos. Também estão sendo criadas modalidades que antes eram garantidas apenas através da justiça, como a aposentadoria especial e a aposentadoria de pessoas com deficiência. Neste caso, possivelmente, em função da incidência de ações judiciais, nessas áreas. 

Segundo informações da prefeitura, em 2024 foram destinados aproximadamente R$ 520 milhões para o pagamento de aposentadorias e pensões dos servidores municipais, terceiro maior gasto, atrás apenas dos investimentos em Saúde e Educação. Pela Lei Orçamentária Anual (LOA), os gastos com previdência correspondem a cerca de 12% do orçamento do ano passado. Segundo o prefeito, o percentual teria chegado a 15% na execução. Segundo dados do IPREF, em 1999, quando o fundo foi criado, existiam 4.200 servidores ativos para 600 aposentados, uma proporção de 6,8 ativos para um inativo. Hoje, essa mesma proporção é de 1,5 para cada um inativo.

É fundamental entender a questão previdenciária dos servidores municipais de Florianópolis no contexto nacional. Os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) dos municípios brasileiros enfrentam um déficit atuarial estimado em R$ 1,1 trilhão, pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Déficit atuarial é uma síntese matemática do desequilíbrio entre as obrigações futuras de pagamento de benefícios previdenciários e os recursos disponíveis, dos ativos necessários, para realizá-los. 

Muitos municípios instituíram seus RPPS antes das reformas previdenciárias das Emendas Constitucionais nº 20/1998 e nº 41/2003, sem realizar estudos atuariais prévios ou planos de custeio compatíveis com as necessidades. Segundo a CNM, atualmente, 2.148 municípios mantêm RPPS no Brasil, que abrangem quase 10 milhões de segurados, dos quais aproximadamente 6 milhões são servidores ativos e 3 milhões são aposentados e pensionistas. Ou seja, na média do sistema, a relação é de 2 servidores ativos para cada beneficiário. Em um sistema de repartição simples, a relação considerada ideal entre servidores ativos e inativos, seria de 4 ativos para cada inativo. Essa proporção garantiria que as contribuições dos trabalhadores ativos, fossem suficientes para cobrir os benefícios pagos aos aposentados e pensionistas, mantendo o equilíbrio financeiro do sistema.

Visando reduzir o déficit atuarial, muitos municípios implementaram alíquotas patronais suplementares, em alguns casos com percentuais bastante elevados. A CNM tem recomendado aos municípios a realização de reformas previdenciárias, para garantir o equilíbrio financeiro e atuarial dos RPPS. Segundo dados recentes, da Secretaria de Regime Próprio e Complementar (SRPC), dos 2.108 municípios brasileiros que possuem Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS), apenas 771 (37%) implementaram reformas amplas em seus sistemas de aposentadoria, adequando-se às definições estabelecidas pela Reforma da Previdência de 2019 para servidores federais. ​ No que se refere às alíquotas, a informação da SRPC é de que 96% dos estados e municípios com RPPS ajustaram suas alíquotas previdenciárias conforme exigido pela Emenda Constitucional nº 103/2019. ​

Em 1998 a EC nº 20/1998 estabeleceu uma série de medidas, que visava equilibrar financeiramente a previdência, através da retirada de direitos e dificuldades no acesso à previdência. Dentre as inúmeras medidas,  essa EC autorizou a instituição de regimes de previdência complementar para servidores públicos, permitindo que União, Estados, Distrito Federal e Municípios definissem limites para aposentadorias e pensões, similares aos do regime geral de previdência social. ​Passados tantos anos, a grande maioria dos RPPS continua apresentando elevados déficits financeiros e atuariais, mesmo tendo sido feitas outras reformas previdenciárias reduzindo valor da aposentadoria, elevando ou instituindo contribuições dos segurados e dificultando o acesso dos novos. 

Em 2017 o Ministério Público de Contas (MPC) apresentou representação ao Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE-SC) para que fosse realizada, de forma urgente naquele ano, uma auditoria no IPREF, por ter constatado a possibilidade de comprometimento do pagamento dos benefícios. Na ocasião o MPC solicitou também, que a Prefeitura de Florianópolis e o Instituto de Previdência apresentasse um plano de ação para reestabelecer o equilíbrio financeiro e atuarial do RPPS. Naquele ano o MPC identificou irregularidades que podem ser assim resumidas:

  1. Ausência, insuficiência e inconstâncias nos pagamentos das contribuições sociais pelos sujeitos passivos e responsáveis ao Fundo Previdenciário;
  2. Ausência no pagamento de diversas parcelas dos parcelamentos realizados com o RPPS/Florianópolis nas últimas competências;
  3. Irregularidade na unificação dos fundos previdenciários e utilização indevida de recursos;
  4. Enfraquecimento do estoque de ativos (investimentos) do Fundo Previdenciário para pagamento de benefícios previdenciários;
  5. Redução da geração de receita patrimonial do Fundo Previdenciário.

Como se pode observar, todas as irregularidades apontadas pelo MCP foram cometidas pelos gestores do Município, que são os responsáveis pela administração do Fundo Previdenciário. Em vários períodos, por exemplo, embora os servidores fossem descontados em seus salários, os valores não eram repassados ao IPREF. Segundo o TCE, o IPREF não estava recebendo efetivamente as receitas que lhe eram devidas. Em outros períodos as contribuições foram pagas apenas parcialmente ou nem foram pagas. A prática comum era de não repassar os valores devidos, formando um passivo que, em momento posterior, era parcelado através de acordos. 

Conforme mostram alguns especialistas (ver a Nota Técnica do Dieese “A Sustentabilidade da Previdência dos Servidores Públicos e a PEC nº 66/2023”, por Luciano Fazio), os Regimes Próprios de Previdência Social, subnacionais, em geral enfrentam imensos desafios ligados ao equilíbrio financeiro e atuarial. Como destacado no estudo mencionado, a exigência constitucional de equilíbrio atuarial, exige o pagamento dos benefícios presentes, ao mesmo tempo em que devem ser formadas reservas financeiras, que garantam o pagamento dos benefícios futuros dos segurados. O que é extremamente difícil, considerando a realidade financeira dos municípios e estados brasileiros. A exigência das reformas previdenciárias brasileiras de que os RPPS façam uma transição para o regime de capitalização, leva a que estados e municípios, durante várias décadas, precisem financiar ao mesmo tempo duas previdências: a da geração passada e a da geração atual. Sem a realização desse período de transição, não há equilíbrio atuarial. 

Considerando o contexto nacional do sistema previdenciário dos servidores municipais (que têm déficit atuarial estimado de R$ 1,1 trilhão), e o histórico de irregularidades apontado pelo MPC, a Câmara Municipal não pode aprovar a toque de caixa, sem discussão com todas as partes envolvidas, uma proposta de reforma da previdência da PMF, que é profunda e transfere todo o custo do ajuste para as costas dos servidores municipais.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.