O regime político instaurado pelo golpe de Estado na Síria parece estar entrando em uma nova etapa de crise. O governo do Haiat Tahrir al-Sham (HTS), antiga Al-Qaeda, enfrenta três principais focos de conflito: no litoral, com a população de alauitas; no nordeste, com as milícias curdas armadas pelos EUA; e ao sul, com a invasão de “Israel” e o início de uma resistência da população drusa. Nesta região, a situação se desenvolve rapidamente.
No dia 1º de março, as forças de segurança lideradas pelo HTS e os drusos se enfrentaram pela primeira vez, não no sul, mas na capital, Damasco. O confronto resultou em uma morte e nove feridos, incendiando a luta política no sul, principalmente na província de Sueida, onde a população drusa é majoritária.
Os drusos são uma das minorias étnicas da região da Palestina, Síria e Líbano, frequentemente pressionada pelo imperialismo para ser cooptada. Na década de 1920, os franceses lhes ofereceram “autonomia”, mas eles recusaram e lutaram ferozmente contra o domínio francês entre 1925 e 1927. Mais tarde, desempenharam um papel significativo na luta pela independência da Síria, em 1947, sob a liderança de Sultan Puxá al-Atrash. Agora, com a queda do regime nacionalista de Assad, há uma nova tentativa de cooptação.
Cerca de 18 meses após o golpe de Estado, os drusos em Sueida já estavam se rebelando abertamente contra o governo de Assad em Damasco. Mas a situação com o governo do HTS não melhorou. Os salafistas que tomaram o poder têm um histórico de extrema violência contra todas as minorias religiosas, incluindo os drusos. Na província de Idlib, que o HTS domina desde 2015, eles roubaram as terras dessa população e realizaram massacres. Em um deles, 30 drusos foram assassinados.
Diante disso, os drusos se recusaram a se desarmar ou permitir que as forças do HTS entrassem em suas regiões sem garantias constitucionais. Sua resistência foi evidente em Jaramana, onde a comunidade impediu abertamente os militantes do HTS de entrarem em seu distrito. No entanto, essa oposição ao governo golpista abre margem para que “Israel” tente cooptar essa população.
A invasão sionista do sul da Síria
No primeiro dia do golpe de Estado contra Bashar al-Assad, o exército de “Israel” invadiu o sul da Síria. Passados três meses, sua ocupação militar se amplia. Uma das estratégias dos sionistas para tomar controle do território é cooptar a população curda. “Israel” já declarou que não aceitará a presença de tropas sírias nos três distritos do sul do país, incluindo Sueida. Ou seja, o HTS e “Israel” agora disputam o controle dessa região.
O jornalista sírio Sarkis Kassargian definiu três setores políticos entre os drusos da região. O primeiro é o de Maher Sharaf al-Din, que conta com o apoio de certos países árabes, mas tem pouco respaldo popular por ser ligado ao governo do HTS. O segundo é o de Rijal al-Karama (“Homens de Dignidade”), liderado por Leith Al-Balous, uma milícia que prioriza a autodefesa drusa, mantendo distância do governo do HTS.
Já o terceiro é o Conselho Militar de Sueida (CMS), uma organização de ex-oficiais do exército sírio que foi oficialmente anunciada em fevereiro, mas existe há mais de dois anos. Liderado por Tariq al-Shafi, o CMS é composto por aproximadamente 900 ex-oficiais, sargentos e soldados. Alguns relatos afirmam que este grupo estaria próximo do clérigo Xeique Hikmat al-Hajari, o druso mais influente da Síria, mas sem um apoio aberto.
Esse CMS também estaria possivelmente se aproximando das milícias curdas apoiadas pelos EUA, embora essa aproximação não seja explícita. Uma tese sugere que “Israel” tentaria conectar o sul da Síria, passando pela base de al-Tanf, dos EUA, até o nordeste controlado pelos curdos, criando assim uma linha direta para roubar o petróleo sírio. É um plano possível, mas repleto de dificuldades.
Para além das organizações políticas, nesta semana, muitos protestos eclodiram em Sueida contra o governo do HTS. Os manifestantes pediram a “derrubada de al-Jolani [o presidente]” e rejeitaram o “extremismo religioso”. Além disso, defenderam que a “governança descentralizada” e a “cidadania civil e liberal” são “imperativas” para o futuro da região. Os manifestantes também declararam que Sueida deveria estar sob a proteção de Xeique Hikmat al-Hajari e de seu homólogo nos territórios palestinos ocupados, Xeique Muaffaq Tarif.
Esses movimentos ocorreram após o Movimento dos Homens da Dignidade anunciar, em um comunicado, que havia chegado a um acordo com o Ministério do Interior, em coordenação com a “Casa de Hóspedes da Dignidade” e o “Movimento Livre da Montanha Druza”, para ativar a segurança pública em Sueida por meio de quadros locais da província. O objetivo era controlar a segurança, combater o crime e o tráfico de drogas, com apoio logístico do Ministério.
Uma peça-chave nessa situação parece ser Xeique Muaffaq Tarif, o líder curdo ligado ao Estado de “Israel”. Citado pelos manifestantes, ele pode ser a ponte para a entrada de “Israel” no sul da Síria.
No entanto, diante de tantas incertezas, nada parece estar definido. O grupo mais forte, o CMS, ligado à figura mais popular entre os drusos, al-Hajari, não está declaradamente ao lado de “Israel”, ao mesmo tempo em que se opõe ao governo golpista do HTS. De fato, os drusos foram colocados em uma situação extremamente difícil pelo golpe de Estado: de um lado, a bandeira branca e azul do genocídio sionista; do outro, a bandeira negra dos salafistas.
A política correta, de defesa do Eixo da Resistência, será reprimida com violência brutal por ambos os lados. No entanto, dada a conjuntura política geral, é possível que algum dos grupos armados se alinhe à resistência. Afinal, os drusos são historicamente conhecidos por sua luta contra o imperialismo. Um exemplo recente é Samir Kuntar, druso membro da resistência, assassinado por jatos de “Israel” no bairro de Jaramana, em 2015.
O futuro dos drusos, assim como o de toda a Síria, permanece incerto. Mas eles não são o único ponto de crise para o HTS. Ao mesmo tempo em que os protestos crescem em Sueida, a luta armada com os alauitas se intensifica, e no nordeste, os curdos continuam se recusando a se desarmar. O frágil governo de al-Jolani enfrenta um desafio gigantesco, e Trump não parece muito disposto a ajudá-lo.