Na próxima quarta-feira, um ato público em Brasília está programado para acontecer por ocasião do aniversário de dois anos das manifestações bolsonaristas de 8 de janeiro. A programação terá início pela manhã no Palácio do Planalto, quando ocorrerá o evento de apresentação das obras de arte que haviam sido danificadas pelos manifestantes. Na sequência, terá lugar um “abraço simbólico” da Praça dos Três Poderes, num esforço para reproduzir um “abraço na democracia”.
A imprensa burguesa destaca que, ao contrário do ano passado, em que a data foi marcada por uma cerimônia com autoridades no Congresso Nacional, neste ano a participação da militância de esquerda será mais representativa. O jornalista Ricardo Kotscho, no entanto, em programa veiculado no portal burguês UOL, demonstrou sua preocupação com o caráter “de esquerda” com que o ato tem sido apresentado.
“Esse negócio de apresentar a cerimônia de 8 de janeiro como ato de esquerda é um erro. Os convites estão sendo feitos pelo PT, pelo governo e por movimentos populares. Deveria ser um ato suprapartidário, como foi a campanha das Diretas, reunindo todos os partidos democráticos, inclusive da Frente Ampla do governo, que, aliás, foi eleito com essa Frente Ampla”, pontuou o jornalista.
Kotscho, que chegou, inclusive, a ocupar cargo de secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República durante o governo Lula, entre 2003 e 2004, expressa o ponto de vista dos entusiastas da Frente Ampla, ou seja, da aliança da esquerda com uma suposta direita “democrática”, “civilizada” e “antibolsonarista”.
Na posição de Kotscho estão presentes todos os elementos que caracterizam a posição que impera em setores majoritários na esquerda pequeno-burguesa, em especial na direção do PT. Em primeiro lugar, a concepção a respeito da luta contra a extrema direita, contra o bolsonarismo.
Os atos da esquerda em torno do 8 de janeiro fazem parte do método que os principais partidos e organizações de esquerda adotaram para enfrentar a extrema direita ― o método da criminalização do bolsonarismo. O bolsonarismo deve ser criminalizado; suas lideranças devem ser processadas e presas, o mesmo valendo para seus militantes; seus porta-vozes e propagandistas devem ser censurados, sobretudo na internet, e assim por diante.
Dentro dessa concepção, o protagonismo no enfrentamento contra Bolsonaro e sua base não cabe, como é possível concluir, às massas populares, à classe operária e às suas organizações, mas, sim, ao aparato judicial e repressivo.
Nesses termos, o maior aliado e principal ferramenta da esquerda para derrotar o bolsonarismo seria, não a mobilização popular, mas as canetadas do ministro Alexandre de Moraes, um elemento da direita tucana e golpista. Que Alexandre de Moraes faça o que for preciso fazer para colocar Bolsonaro na cadeia!
Em segundo lugar, percebe-se desde logo que tal visão impõe a aliança com a direita dita “democrática”. É essa direita que controla setores importantes do aparato estatal, em especial do Poder Judiciário. De “democrática” essa direita não tem absolutamente nada.
Foi ela, de fato, quem liderou a operação golpista que derrubou o governo de Dilma Rousseff e prendeu por 580 dias o atual presidente Lula. Foi ela, afinal, que preparou o terreno e criou as condições para a ascensão do bolsonarismo.
Suas contradições com o bolsonarismo, embora existentes, não são fundamentais, e sim de ordem secundária e conjuntural. Alexandre de Moraes, hoje, está processando Bolsonaro, mas amanhã pode muito bem ser o juiz que irá inocentá-lo e impulsioná-lo. Em grande medida, sua perseguição desenfreada contra o bolsonarismo já é um fator decisivo para o fortalecimento da extrema direita.
Kotscho critica o caráter “esquerdista” que o próximo ato em torno do 8 de janeiro estaria adquirindo. Mais do que um ato da esquerda, deveria ser um ato suprapartidário, em defesa da “democracia”. É a concepção que tem embasado toda a política da esquerda no último período e que só tem colhido fracassos, um atrás do outro.
A política de criminalização contra o bolsonarismo não tem tido outro resultado que não fazer o movimento da extrema direita crescer. As recentes eleições municipais, nas quais o partido de Bolsonaro (PL) saiu como o principal vencedor, são apenas um entre tantos exemplos que demonstram isso.
Por outro lado, essa mesma política não fez a esquerda avançar um milímetro sequer. Os atos “em defesa da democracia”, cujo mote gira ao redor da palavra de ordem “Sem Anistia”, são um retumbante fiasco.
Os processos judiciais contra Bolsonaro e lideranças bolsonaristas não atingiram senão figuras de quinta importância e não tiveram nenhum resultado efetivamente concreto. Sem um programa próprio, sem o esforço no sentido de mobilizar suas bases, tudo o que as principais organizações fazem é apoiar as iniciativas policiais e judiciais dirigidas contra o bolsonarismo, atuando na prática como linha auxiliar, um apêndice da política da direita “civilizada”.
Kotscho expressa, enfim, a evolução de setores da esquerda para os quais o caminho é enveredar ainda mais para a direita. Vão tão à direita que até a presença da militância de esquerda num ato “em defesa da democracia” vira motivo de preocupação.