Desde o início da operação russa na Ucrânia, em 2022, pudemos ver um setor expressivo da esquerda brasileira fazendo uma frente com a OTAN, em total alinhamento com o imperialismo. Passados três anos da guerra, ainda há muita gente que não entendeu o que está em jogo ou que finge não entender.
Gilbert Achcar, um professor da Universidade de Londres, é um dos porta-vozes dessa política pró-imperialista e contra a Rússia. O portal Esquerda Online publicou um de seus textos, intitulado “Trump e Putin: Paz entre neofascistas e guerra contra os povos oprimidos”, onde faz um ataque aberto contra a Rússia, uma das principais nações que enfrentam o imperialismo no momento.
A sua primeira argumentação é pelo fato de a Rússia e os Estados Unidos terem realizado uma reunião na Arábia Saudita para discutir o fim da guerra na Ucrânia:
“A própria forma como a reunião foi organizada é totalmente coerente com o local: a administração neofascista de Donald Trump não procurou promover a paz entre as partes beligerantes no quadro do direito internacional e das Nações Unidas, como a China tem vindo a apelar sistematicamente desde o início do conflito, mas procura, pelo contrário, estabelecer um acordo direto com o regime igualmente neofascista de Vladimir Putin à custa do povo ucraniano. É, pois, perfeitamente natural que as duas partes não tenham escolhido um espaço neutro e conforme ao direito internacional, como as Nações Unidas, mas sim um espaço conforme à sua natureza, mesmo que o seu regime despótico seja de tipo tradicional.”
Primeiro, o professor alega que é uma tentativa de acordo sem envolver as Nações Unidas, algo que não estaria de acordo com o direito internacional. O que é uma grande besteira, visto que é justamente a ONU, junto com seu aparato militar da OTAN, os responsáveis pelas agressões à Rússia, ou seja, são os responsáveis diretos pela existência da guerra. A operação russa na Ucrânia é uma defesa do território russo. O conflito entre Ucrânia e Rússia, que não começou somente há 3 anos, é também uma guerra de procuração dos Estados Unidos contra a Rússia. O que fica ainda mais evidente pelas tentativas de Trump de acabar com a guerra, visto que são os Estados Unidos que financiam os nazistas ucranianos, os mesmos elementos que deram o golpe no País há quase 10 anos, colocando um governo fantoche. O fantoche atual é Zelenski, que saiu da Casa Branca após ser esculhambado por Trump. Como o Partido Democrata de Joe Biden não está mais no controle do regime político norte-americano, as pressões para acabar com essa guerra de procuração são cada vez maiores.
O que Gilbert Achcar está defendendo, na realidade, é que a Ucrânia tenha sua soberania e possa continuar ameaçando o regime russo, à mando dos Estados Unidos e da OTAN. Para o acadêmico, é um absurdo que Trump negocie com Putin para acabar com uma guerra que sacrifica o povo ucraniano à mercê do interesse dos EUA.
Sobre Trump e a questão da Palestina, o professor defende que o governo atual é ainda pior do que o de Joe Biden:
“a nova administração ultrapassou a anterior em matéria de unilateralidade sionista com o apelo de Trump à deportação sem retorno dos residentes da Faixa de Gaza, ou seja, à implementação daquilo a que o direito internacional chama “limpeza étnica” – um crime contra a humanidade.”
O articulista faz essa declaração logo após mencionar um outro artigo de sua autoria, onde fala dos “dois mitos sobre o cessar-fogo”. Em seu outro texto, Achcar procura argumentar que o acordo de cessar-fogo não foi nenhuma vitória política do Hamas e da resistência palestina e nem que Trump tenha tido alguma participação nisso. Achcar desconsidera os interesses políticos envoltos nesses últimos acontecimentos e por isso faz essa análise conservadora. Em mais de 70 anos, a resistência armada na Palestina nunca obteve tamanho êxito como esse cessar-fogo. Não só isso, desde o 7 de outubro de 2023, o Hamas colocou “Israel” contra as paredes, escancarando para o mundo inteiro o genocídio contra o povo palestino e que conta com o apoio dos Estados Unidos e dos países imperialistas da Europa. O mundo inteiro vê Gaza sendo criminosamente bombardeada e resistindo bravamente.
Já no seu novo texto, o acadêmico desconsidera que há uma disputa dentro da burguesia norte-americana, entre um setor, ligado à indústria bélica e ao capital financeiro, mais agressivo que procura financiar guerras no mundo inteiro e um outro setor, mais ligado às pequenas indústrias, que vê seu país sendo esfolado pela política neoliberal e pelo dinheiro que deixa de financiar o desenvolvimento nacional para bombardear outras nações. Não entende que apesar de, mesmo sendo setores da direita e da burguesia norte-americana, que há um conflito evidente entre os seus interesses.
Ele defende isso porque Trump fez uma declaração bárbara contra os palestinos, que é basicamente uma limpeza étnica, como Achcar coloca. Mas é uma declaração infeliz e provavelmente muito mal-calculada (dada a repercussão que teve, inclusive da resistência), quando, na realidade, o que aconteceu desde a entrada do governo Trump foi justamente o cessar-fogo. A esquerda brasileira (e pelo visto a internacional também) possui muita dificuldade de analisar as crises envolvendo Trump. O acordo de cessar-fogo não quer dizer que Trump não seja um sionista ou que não defenda “Israel”, ele mesmo. Quer dizer que ele está trabalhando em função de outro interesse econômico, que é contrário ao financiamento do armamento para os sionistas e que por isso essa guerra deve acabar. Não só a guerra da Palestina, como a guerra da Ucrânia. Isso não foi meramente discurso eleitoral de Trump, trata-se de uma disputa política acontecendo dentro do Estado norte-americano.
E voltando ao “neofascismo” de Putin, o autor dispara:
“O eixo neo-fascista sionista-americano converge com a Rússia de Putin no seu ódio racial aos povos oprimidos. Moscou tem-se destacado nesta área, não só através da sua agressão colonial contra a Ucrânia, repudiando a sua soberania nacional, mas também na região árabe, onde tem desempenhado um papel fundamental na destruição da Síria e no extermínio de grande parte dos seus habitantes, ao mesmo tempo que é abertamente cúmplice do Estado sionista, permitindo-lhe bombardear à vontade instalações iranianas na Síria (no quadro da rivalidade entre as influências russa e iraniana nesse país).”
Aqui, o acadêmico apela para acusações despolitizadas contra Putin, como dizer que ele tem um “ódio racial aos povos oprimidos”. Como já explicado anteriormente, não há uma agressão contra a Ucrânia, mas sim uma tentativa dos Estados Unidos de invadir a Rússia através da Ucrânia. E a outra acusação de que Putin estaria contra os países árabes é tão absurda quanto. Putin declarou que o Talibã é um aliado da luta contra o terrorismo e estreitou laços com o Afeganistão. Sobre a Síria, o grupo ligado aos golpistas sempre foi inimigo dos russos e, mesmo após o golpe, não conseguiu expulsar os russos do país, tornando a presença militar russa ainda como uma pedra no sapato para o imperialismo. Em fevereiro deste ano, em reunião com representantes russos, o Hamas agradeceu pela ajuda humanitária para a Palestina e elogiou o governo russo por seu apoio ao povo palestino.
Como se não fosse o bastante, a Rússia é um dos maiores entraves para o imperialismo nos dias de hoje. A guerra na Ucrânia acentuou ainda mais a crise política que os países imperialistas enfrentam, afetando inclusive a Europa. Um caso que deixou muito claro foi a crise do gás na Alemanha, que configurou numa crise econômica severa, aumentando a conta de luz a valores absurdos no país. A fragilidade do imperialismo escancarada com a guerra da Ucrânia, abriu margem para levantes de povos oprimidos em outros lugares do mundo como o Níger e o Gabão, na África e, finalmente, para as operações do Hamas contra “Israel” na Palestina. A Rússia cumpre um papel importantíssimo de enfraquecimento do regime imperialista.
E após jogar mais algumas barbaridades para defender a Ucrânia e seus nazistas, Achcar conclui sua incrível e fantasiosa tese:
“Estamos agora a assistir a uma convergência entre neofascistas à custa dos povos oprimidos, porque o novo fascismo, tal como o antigo, nega abertamente o direito dos povos à autodeterminação… O resultado é que os povos oprimidos do mundo já não podem tirar partido da divergência entre grandes potências que existia no passado mas têm agora de travar as suas lutas de resistência e de libertação em condições mais difíceis do que nunca. O caso da Palestina é a prova mais evidente deste fato.”
Ao longo do texto, podemos observar algumas menções à decadência do liberalismo dos países imperialistas, o que parece mostrar uma preferência do acadêmico pela política dos países dominantes em relação ao que chama de “neofascismo”.
O texto expõe com muita clareza a ideia generalizada na esquerda da luta entre “democracia e fascismo”. Quando se propõem a chamar Trump e Putin de neofascistas, é quase um apelo aos democratas. Biden e a turma do Partido Democrata dos EUA são os maiores responsáveis pelo genocídio na Faixa de Gaza e, mesmo assim, parece que Trump é o cara mais terrível que já pisou na face da Terra. É uma incompreensão infantil, uma imaturidade política enorme ou talvez seja mau-caratismo mesmo. Ao invés de denunciar os horrores que os democratas fazem com os povos oprimidos em todo o mundo, a preocupação é com atacar uma das principais frentes contra os genocidas.
Achcar está completamente enganado quando diz que os povos oprimidos estão condenados e que não podem mais tirar proveito das brigas entre outros países. Quando a Rússia, o Irã e a China ameaçam o monopólio político e econômico dos Estados Unidos e da Europa, os setores da esquerda pequeno burguesa, como Achcar, sai correndo para defender o interesse dos países imperialistas!
Todas as revoltas de povos oprimidos nos últimos anos se deram por conta da crise que o imperialismo enfrenta em sua dominação mundial. E a Rússia é importantíssima no enfraquecimento desse domínio. Esses mesmos setores da esquerda pequeno burguesa não reconhecem a revolução que ocorre debaixo dos nossos olhos, como é o que acontece na Palestina. Em décadas, o Hamas, ou seja, o povo palestino, decidiu dizer “basta” para o genocídio e está enfrentando um exército muito mais equipado, com toda a garra do mundo.
Aqueles que atacam a Rússia, serão incapazes de defender os oprimidos de verdade. E é por isso que Achcar não reconhece o Hamas como a legítima liderança do povo palestino e um exemplo mundial de resistência para os povos oprimidos. E é por isso que não reconhece o avanço do povo palestino contra “Israel”. Se opor à Rússia, atacar a resistência palestina, é um alinhamento total aos interesses do imperialismo e sobre isso não podemos ter dúvidas.