O esforço pela retomada da indústria no Brasil, ou reindustrialização como tem sido chamada, não é uma medida trivial que possa ser feita sem um grande esforço nacional. Como qualquer grande problema nacional, a reindustrialização vai requerer uma forte mobilização dos trabalhadores, pois depende da correlação de forças. Os países centrais não querem indústria forte na periferia do sistema. Para esses países, as nações atrasadas devem se concentrar em enviar matérias-primas e commodities para o centro industrial imperialista. Esse fator se torna ainda mais forte em períodos de grave crise internacional, como o atual.
Até fevereiro de 2025, a Nova Indústria Brasil (NIB) havia mobilizado R$ 1,2 trilhão em investimentos públicos, abrangendo planos como o “Mais Produção”, o programa Mover, o Novo PAC e o Plano de Transformação Ecológica. Além desses recursos, até junho de 2025, o BNDES já havia aprovado R$ 220 bilhões em financiamentos dentro da NIB, cerca de 73% dos recursos previstos pelo banco para a política industrial até o fim de 2026. O prazo geral para a execução desses investimentos é até o final de 2026, de acordo com o cronograma dos principais planos vinculados à NIB. No entanto, uma parte desses investimentos (como o Novo PAC) pode ser estendida para além de 2026.
O que a política industrial brasileira, concretizada na NIB, tem a ver com a dívida pública? Os R$ 1,2 trilhão previstos para investimentos públicos na NIB serão distribuídos em um período de aproximadamente nove anos, mais especificamente de 2024 a 2033. Para tomarmos como exemplo, o valor total aproximado investido em obras (infraestrutura, saneamento, moradia, mobilidade etc.) pela NIB no ano de 2024 foi de R$ 198,3 bilhões, ou seja, 16,5% do total previsto pelo programa até 2033. Em contrapartida, o valor gasto apenas com os juros da dívida pública no mesmo ano alcançou R$ 950,423 bilhões, 8,05% do PIB e quase 5 vezes o total de investimentos realizados pela NIB.
A oposição entre os dois tipos de despesas públicas é muito evidente. Os recursos investidos em infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade, oportunizados pela política industrial, exercem um efeito imediato da demanda em setores estratégicos, movimentando as cadeias produtivas nacionais da construção, engenharia e indústria de materiais. Há também um estímulo às atividades econômicas regionais, gerando empregos diretos e indiretos e fomento ao consumo local. Com a NIB, pode haver também uma elevação consistente na produtividade geral do país, com melhor logística, acesso a saneamento e redução de custos operacionais de todos os setores econômicos.
Os investimentos também ampliarão o acesso a serviços essenciais, como água, esgoto, moradia e transporte público, o que levará, inclusive, a melhores indicadores de saúde e educação. Os investimentos previstos na NIB também geram empregos diretos e indiretos, sobretudo nas fases de construção civil, montagem e operação das obras. Há um efeito multiplicador das obras de infraestrutura, que estimulam setores agregados, como logística, serviços e comércio, levando ao aumento da massa salarial, renda disponível e oportunidades para pequenos negócios locais.
Em contrapartida, os mais de 8% do PIB gastos com juros da dívida pública são dinheiro “jogado fora”. Não trazem geração de bens, serviços ou impacto imediato sobre o PIB real e o bem-estar social. É um valor exorbitante que deixa de ser investido em áreas fundamentais e que não tem nenhum efeito multiplicador positivo sobre a economia. Além disso, compromete a capacidade do Estado de investir em infraestrutura e políticas públicas estruturantes, dadas as restrições orçamentárias.
O pagamento dos juros da dívida tem efeito nulo sobre a geração de emprego e renda. Os recursos são transferidos para credores, muitos deles grandes instituições financeiras, muitas no exterior, sem nenhum efeito distributivo direto para a economia produtiva. Ademais, reduz muito a capacidade de investimento público em projetos de alto impacto social, comprometendo a geração de empregos em todas as áreas. Os valores pagos em juros não têm nenhum efeito no desenvolvimento nacional, além de aumentar as desigualdades de todos os tipos.
Além do gasto colossal com juros, que no Brasil são os mais elevados do mundo em proporção do PIB, o governo rola uma parte da dívida, ou seja, substitui os títulos vencidos por novos, mantendo ou aumentando o estoque total da dívida. Segundo a Auditoria Cidadã da Dívida, muitas vezes os juros são “indevidamente registrados como amortização”, confundindo as informações. Cabe uma pergunta: se a dívida pública é amortizada anualmente, por que o estoque total continua crescendo? A amortização consiste no pagamento do principal dos títulos da dívida pública aos seus detentores, quitando os títulos vencidos a cada ano. Por exemplo, em 2022, o Governo Federal e o Banco Central reportaram cerca de R$ 1,27 trilhão em amortizações/refinanciamento da dívida pública federal. Em 2023, as amortizações alcançaram aproximadamente R$ 1,3 trilhão.
Apesar dessas anunciadas amortizações, a evolução recente no Estoque Total da Dívida Pública foi:
- Dez/2022: Estoque da Dívida Pública Federal (DPF): R$ 6,45 trilhões
- Dez/2023: DPF: R$ 6,52 trilhões
- Fev/2025: DPF: R$ 7,49 trilhões
- Jun/2025: DPF: R$ 7,88 trilhões
Os dados acima são da DPF (Dívida Pública Federal), que engloba apenas os títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, tanto no mercado interno quanto externo. Eles revelam que, mesmo com pagamentos bilionários todos os anos, o estoque aumentou em mais de R$ 1,4 trilhão em menos de três anos, o que indica uma trajetória bastante preocupante. Os dados revelam que, mesmo havendo alguma amortização da dívida, ela não tem sido suficiente para de fato amortizar (pagar o principal) da dívida. Os juros incidentes sobre a dívida existente acabam compensando a amortização, fazendo o estoque da dívida aumentar. O governo emite novos títulos para rolar a dívida, o que não representa amortização e, no futuro, esses novos títulos significam aumentos dos juros pagos, gerando um processo autoalimentado. Em outras palavras, muitas amortizações significam apenas substituição de títulos e não o efetivo pagamento. Parte dos juros é capitalizada no valor do principal, caracterizando os juros sobre juros (chamado de anatocismo).
Não por acaso, a dívida pública brasileira é definida como um sistema. Possui mecanismos complexos e interligados, de difícil compreensão para os não especialistas. A rede de operações que move o sistema funciona de modo articulado e, não raro, sigiloso. Além disso, a dívida pública possui mecanismos próprios de reprodução, independentemente do governo do momento. Mesmo quando o país gera superávits primários (gasta menos do que arrecada, excluindo juros), o que é bastante comum no Brasil, a dívida segue crescendo, como se fosse uma determinação divina. Isso revela que a dívida possui mecanismos financeiros próprios, e não decorre de uma suposta irresponsabilidade fiscal ou incapacidade de gestão.
Diante da evolução da dívida, os governos adotam uma postura de resignação, como se a dívida fosse um tabu da política econômica, totalmente fora do alcance do governo. Além disso, a dívida tem sido usada como uma surrada justificativa para contrarreformas e privatizações, o que é um embuste, porque as empresas que são privatizadas geram caixa na veia para a União, não havendo nenhuma justificativa para a sua privatização.
Considerando o que aconteceu no Brasil depois do golpe de 2016 e levando em conta o prejuízo que a dívida pública impõe ao país há muitas décadas, é surpreendente que alguns encarem as tarifas impostas pelo governo de Donald Trump ao Brasil como “o maior ataque imperialista sofrido pelo país”. Diante do rombo financeiro e do atraso ao desenvolvimento nacional, impostos pela ditadura da dívida pública, as tarifas trumpistas não significam absolutamente nada. Alguns estudos preliminares mostram que o efeito das tarifas no PIB, caso elas não sejam negociadas, será algo entre 0,15% e 0,30% do PIB, o que significaria um prejuízo de até R$ 25,8 bilhões. Em contrapartida, nos 12 meses encerrados em junho de 2025, o setor público brasileiro gastou, somente com juros da dívida pública, sem contar outras despesas, R$ 912,3 bilhões, equivalente a 7,45% do PIB.




