Marina Colerato

Marina Colerato é mestre em Ciências Sociais, jornalista independente e editora na Ginna. Em 2014, fundou o Modefica e desde então pesquisa e escreve sobre temas de interesse ecofeminista. Você pode acompanhá-la no marinacolerato.substack.com

Coluna

Pesquisa mostra aumento da coação e intimidação contra mulheres

"Mulheres têm sofrido coação e violência [...] por se mostrarem defensoras de direitos baseados no sexo ou críticas à teoria da identidade de gênero"

Publicado originalmente em 27 de setembro de 2023

Uma pesquisa preliminar publicada nesta quarta-feira, 27, revela as formas pelas quais mulheres têm sofrido coação e violência em espaços como universidades públicas, partidos políticos, no ambiente digital, no trabalho, em espaços de práticas religiosas, entre outros por se mostrarem defensoras de direitos baseados no sexo ou críticas à teoria da identidade de gênero.

A pesquisa foi elaborada pelo coletivo Correnteza Feminista, organização autônoma de mulheres dedicada a divulgar os fundamentos do movimento feminista e denunciar a violência contra mulheres no Brasil e no mundo, e fornece um mapeamento da perseguição sistemática enfrentada por mulheres em diferentes contextos sociais.

A divulgação dos resultados se dá duas semanas após o caso ocorrido na UFBA, no qual a professora Jan Alyne Prado foi acusada de racismo e transfobia em sala de aula, e rapidamente condenada pela mídia. No entanto, após a circulação do áudio do acontecimento, as acusações foram refutadas e, segundo pessoas próximas, Prado considera solicitar providências legais por calúnia e difamação. De acordo com a pesquisa, ocorrências como essa estão cada vez mais comuns, penalizando majoritariamente mulheres de maneira violenta.

Os dados foram levantados por meio de um formulário digital com perguntas de seleção e uma pergunta de resposta livre, utilizando o método de amostragem-por-conveniência, onde meninas e mulheres que foram ou seguem sendo alvo de coação e violência por se expressarem sobre os temas de sexo e gênero poderiam redigir seus relatos. As pesquisadoras afirmam que a pesquisa não teve a pretensão de levantar dados percentuais gerais, mas de colher informações sobre os casos acontecendo em território nacional.

O documento foi entregue à Relatora Especial da Organização das Nações Unidas sobre Violência Contra Mulheres e Meninas, Reem Alsalem que, em maio desse ano, emitiu uma nota oficial onde externou sua preocupação com a escalada de violência contra as mulheres e a intimidação contra todas as pessoas que expressam pontos de vista divergentes acerca de sexo, gênero e identidade de gênero. Na nota, a relatora afirmou também que está vendo as liberdades de expressão e de organização das mulheres serem cerceadas em diversos países da Europa, Oceania e América do Norte. No entanto, os resultados demonstram que essa também é uma realidade no Brasil, de forma que o documento será encaminhado aos Ministérios e órgãos públicos de interesse.

Principais resultados

Com base nas 366 respostas ao formulário de pesquisa e nos 155 relatos recebidos, as violações de direitos humanos de meninas e mulheres foram categorizadas em sete eixos de restrição de direitos, estipulados na CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres), convenção internacional com valor legal da qual o Brasil é signatário. Os eixos foram: 1) participação na vida pública e política, 2) igualdade de direitos na esfera da educação; 3) esfera de emprego e trabalho, 4) cuidados médicos e serviços de saúde, 5) recreação, esportes e todos os aspectos da vida cultural, 6) vida social (amizade, relações, família, sexo e sexualidade) e 7) liberdade religiosa.

Já as táticas utilizadas por grupos masculinistas seguem alguns padrões, sendo eles: 1) violência física; 2) ameaças, intimidação e coação; 3) falsa associação; 4) calúnia e difamação; 5) policiamento; 6) SLAPP; 7) De-platforming e 8) táticas de esgotamento mental e psicológico. O perfil das respondentes é variado, embora mais da metade pertença ao espectro político da esquerda ou centro-esquerda.

Os resultados revelaram a responsabilidade do Estado na violação dos direitos de mulheres e meninas, seja diretamente por meio de instituições estatais (incluindo universidades públicas e instituições do judiciário) ou por omissão. A pesquisa revela ainda uma ampliação daquilo que vem sendo considerado “transfobia”, com a acusação de crime sendo uma das principais estratégias de impor medo e silenciamento a meninas e mulheres. Também é relevante o dado de que a maior parte da violência e intimidação contra as mulheres no ambiente de ensino tenha acontecido em universidades públicas.

Entre os relatos que podemos ler, há dois que acendem um alerta sobre os níveis de violência e perseguições enfrentados pelas mulheres. O primeiro deles, uma tentativa de suícidio de uma estudante dentro do campus da Universidade de São Paulo, que ocorreu este ano, e outro, um caso de extorsão financeira, onde uma mulher foi coagida a se retratar publicamente e doar milhares de reais a uma ONG LGBT. Em ambos os casos, as mulheres foram vítimas por defenderem direitos baseados em sexo em redes sociais.

De acordo com as pesquisadoras, embora a teoria de identidade de gênero seja uma convicção filosófica, não podendo ser imposta ao conjunto da sociedade, tendo em vista a laicidade do Estado brasileiro, estabelecida no art. 5º da Constituição Federal, sujeitos e instituições públicas e privadas estão perseguindo e punindo mulheres que não expressam tal crença ou convicção, ferindo princípios básicos de liberdade.

Para as autoras do relatório, considerando a gravidade e a natureza específica da violência contra meninas e mulheres, é uma condição essencial para o exercício pleno de seus demais direitos e liberdades que as mesmas tenham garantidos seus direitos à liberdade de expressão e pensamento para falar, pesquisar, se manifestar pública e politicamente, escrever e se organizar em torno de pautas relacionadas à realidade material de seu sexo, livres de violência, intimidação, ameaças e coação. Também consideram fundamental que meninas e mulheres possam exercer tais direitos com o apoio e a proteção de autoridades , visto que, de acordo com a CEDAW, o Estado brasileiro se comprometeu, dentre outras coisas, a implementar medidas destinadas a garantir a participação plena de meninas e mulheres em todas as esferas da sociedade e a eliminar preconceitos e práticas de qualquer natureza baseados em funções estereotipadas de homens e mulheres (artigo 5 da Convenção).

Omissão e conivência do poder público

Nos anexos da pesquisa, é possível observar que a adesão do governo e da jurisprudência brasileira à teoria da identidade de gênero, em detrimento dos direitos baseados em sexo, não passou por um amplo debate público, de forma que esta perspectiva teórica foi instaurada de forma silenciosa e autoritária; um padrão que se repete em diversos países, fazendo com que as consequências do conflito entre direitos baseados em sexo e identidade de gênero não sejam avaliadas antes da implementação de leis e políticas públicas.

Entre os anexos está o “Apenas Adultos? Boas Práticas no Reconhecimento Legal de Gênero Para Juventude – Um relatório sobre o estado atual das leis e atuação de ONGs em oito países da europa, com foco nos direitos dos jovens”, elaborado de forma voluntária pela Thomson Reuters Foundation, pelo escritório de advocacia Dentons e pela rede de organizações LGBTQI, IGLYO. No referido documento, são listadas “boas práticas” destinadas a facilitar a implementação e o aprofundamento de políticas de identidade de gênero para crianças e adolescentes. O documento recomenda às organizações LGBTQI seguir estratégias “silenciosas”, por exemplo, acoplar às demandas a um assunto mais popular de forma sutil, sem debate público e com o mínimo de cobertura midiática possível, passando por brechas de instituições e dos ritos democráticos.

Outro ponto de preocupação suscitado pela pesquisa é a omissão do Ministério das Mulheres e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Em meio ao aumento da violência contra as mulheres, realidade expressa no Anuário de Segurança Pública de 2023, o Ministério das Mulheres cancelou a visita de Reem Alsalem ao país, sem justificativas, e até o momento não propôs novas datas. Quando questionado, o Ministério das Mulheres afirmou ter encontrado problemas de agenda, embora a visita já estivesse marcada há meses.

Recentemente, o Ministério também “esqueceu” de confirmar sua presença no Comitê da CEDAW, que deveria ter acontecido em abril de 2023. Na 86ª sessão do Comitê, seriam julgados os crimes perpetrados pelo Estado brasileiro por meio da Lei de Alienação Parental (LAP). Como resultado, o julgamento do tema foi adiado, sem previsão de novas datas.

Entre as recomendações da pesquisa está a necessidade do Estado brasileiro garantir espaços e grupos de trabalho para abordar as divergências e desenvolver caminhos possíveis para endereçar os conflitos entre os direitos das meninas e mulheres baseados no sexo e a teoria da identidade de gênero, não apenas no Ministério das Mulheres, como também no Ministério dos Direitos Humanos e no Ministério da Saúde (que já adotou amplamente termos desumanizadores como “pessoas que menstruam”, “pessoas com útero”, “pessoas que produzem leite”, entre outros). Em conclusão, dado o contexto internacional não noticiado na grande mídia brasileira, o Brasil está falhando em entender os múltiplos problemas e questões bioéticas oriundos de uma adesão irrestrita à teoria da identidade de gênero.

A importância da articulação feminista autônoma

Esse mapeamento é — até onde encontrei — o primeiro do tipo no Brasil. As organizações feministas de maior alcance, financiadas pelo filantrocapitalismo1, aderiram de forma acrítica a agenda da identidade de gênero e se tornaram, elas mesmas, parte da onda persecutória dos não crentes2. Já pelo lado da academia, o próprio mapeamento demonstra o cerceamento das possibilidades de pesquisa consideradas politicamente incorretas e até mesmo criminosas.

Por um lado, a capacidade do financiamento internacional de interferir nos movimentos sociais, na agenda estatal e nas políticas públicas se torna indiscutível, o que deve servir de alerta (e objeto de pesquisa e escrutínio)3 para militantes, ativistas, jornalistas, pesquisadores e sociedade. Por outro, essa realidade reforça a importância de coletivos autônomos e independentes, financiados diretamente por pessoas, de forma descentralizada, e o envolvimento em atividades de ação direta.

Sem dúvidas, sobretudo considerando o cenário de aprofundamento da desigualdade social e empobrecimento das pessoas e a realidade social e econômica da maior parte das mulheres, muitas mães, está longe de ser um jogo justo. Pense, por exemplo, no total destinado pela Open Society Foundations às agendas financiadas pela organização em 2017. Foram 45,8 milhões de dólares distribuídos entre os 20 conceitos mais importantes a serem financiados pela OSF, entre eles “trabalho sexual e identidade de gênero”4. No entanto, de 2017 para cá, os gastos anuais da OSF saltaram de pouco mais de 900 milhões de dólares para mais de 1 bilhão e meio em 2021, valor que inclui gastos operacionais e grants concedidos. E estamos falando de apenas um bilionário aqui.

Mas, esse mapeamento e outras ações feministas, como a movimentação frente ao STF feita pela Mátria – Associação de Mulheres, Mães e Trabalhadoras do Brasil para proteger mulheres encarceradas, demonstram que o movimento contra-hegemônico existe e está sendo levado adiante, não sem dificuldades, por meio do apoio mútuo entre mulheres. Sendo assim, qualquer pessoa insatisfeita com a forma pela qual o filantrocapitalismo e as elites estão corroendo os movimentos sociais pode apoiar e somar no trabalho das organizações e coletivos.

[O presente relatório foi enviado para divulgação nos seguintes veículos da mídia progressista: Outras Palavras, Gênero e Número, AzMina, Brasil 247, Revista Fórum, Opera Mundi, El País, Brasil de Fato, A Pública, The Intercept, Revista Piauí, Revista Cult, Revista Ela (O Globo), Universa (UOL) e Le Monde Diplomatique. Não obtivemos resposta de nenhum.]

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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