Na última semana, com o lançamento do novo modelo gerador da OpenAI, as redes sociais foram inundadas por imagens quotidianas e até mesmo memes no estilo de ilustração do famoso estúdio japonês de animação, Ghibli. Basicamente, usuários da plataforma de inteligência artificial submetiam imagens (ilustrações ou até mesmo fotos) ao modelo, com o pedido de que as recriassem no estilo Ghibli. Os resultados foram surpreendentemente bons, apesar deste colunista cético achar que os marqueteiros da OpenAI devam ter requisitado o ajuste do modelo para o mesmo ter bom desempenho nesse caso de uso particular, que renderia mais burburinho na internet. E rendeu.
Muitos artistas profissionais e setores liberais lançaram-se numa ofensiva contra esse novo desenvolvimento. Usamos, primariamente, o X como forma de passar nervoso lendo besteiras na internet e, portanto, não acompanhamos tanto essas críticas e interagimos mais com infindáveis imagens engraçadas ao estilo Ghibli. Recebemos, porém, a informação de usuários da outra rede, a da borboletinha azul, de que lá já foi instaurado um clima persecutório contra imagens Ghibli. Não seria surpreendente se um usuário fosse cancelado por publicar uma imagem do filme Porco Rosso, dado que o espírito perseguidor e religioso é frequentemente acompanhado da ignorância.
De qualquer maneira, mais uma vez foi colocado o debate sobre inteligência artificial e sua substituição da arte. A forma mais interessante desse debate apareceu na imprensa burguesa, muito preocupada com as implicações jurídicas dessas imagens que tanto se assemelham ao trabalho de Hayao Miyazaki. Dão a entender que quem publicasse essas imagens nas redes sociais poderia ser implicado num caso de violação de propriedade intelectual e que a própria OpenAI estaria sob esse risco. Foi especialmente cômico ver um portal de notícias referenciar, defensivamente, o “autor” da imagem que ilustra nossa coluna, com medo de um processo.
Por que destacamos a posição burguesa? Porque, desde o início dos modelos geradores, esse tema é um problema latente. A matéria-prima desse engenhoso maquinário estatístico são dados. Quanto mais houver, melhor será o resultado. A matéria-prima é a própria produção intelectual humana, toda aquela que tivermos registrada em formato digital, que possa ser processado por um computador. Boa parte dessa produção está protegida por direitos de reprodução, e é por isso que temos que pagar até hoje para assistir a um filme lançado décadas atrás (isto é, se nosso caro leitor não souber o que significa a palavra torrent no contexto da tecnologia).
Há inúmeras evidências de que a OpenAI violou os direitos de propriedade intelectual para treinar seus modelos. A proficiência do GPT-4o em gerar imagens ao estilo Ghibli é só mais uma evidência, mas muitos usuários já encontraram formas interessantes de fazer o modelo entregar conteúdo de livros, artigos acadêmicos e até mesmo documentos confidenciais. Nesse caso, a empresa violou a legislação, mas a Justiça está mais preocupada com o usuário da ferramenta que “viole” os direitos de reprodução da obra original (ou até mesmo da estética de determinada obra, se é que isso pode ser protegido legalmente).
Neste espaço, já criticamos inúmeras vezes o otimismo messiânico com que muitos enxergam essas novas tecnologias. Superestimam suas capacidades. Criticamos o terrorismo de certos setores que acham que a dita inteligência artificial trará o fim do mundo, que a tecnologia precisaria ser rigorosamente regulada (ironicamente, a própria OpenAI encontra-se nesse campo). Agora, somos forçados a criticar outro lado do debate (que, se não me engano, já havíamos criticado), o setor ludista, que quer impedir esse avanço tecnológico e, nesse caso, pelo motivo mais reacionário possível.
Propriedade intelectual é um conceito que priva a humanidade, de conjunto, do avanço científico há décadas. Países que poderiam ver sua produtividade avançar não podem fazê-lo, porque isso acarretaria sanções econômicas, caso copiem métodos de produção desenvolvidos por outras empresas ou universidades de outros países. Quem não tem essa propriedade intelectual deve ser condenado ao atraso, ou pagar somas incalculáveis pelo acesso a esse conhecimento. Ativistas da computação lutam há décadas contra a propriedade intelectual de software, legalmente interpretado como texto e, portanto, protegido pela mesma lei que protege textos literários. Nesse caso, a proteção impede que se melhore ou corrija problemas existentes no próprio software, sob a pena de violar sua propriedade intelectual.
Que a inteligência artificial esteja escancarando o quão ultrapassada é essa proteção é uma das melhores contribuições dessa tecnologia. A saída revolucionária para o problema seria denunciar a OpenAI por proteger seus modelos segundo a mesma lei de propriedade intelectual que abertamente violam para treiná-los. Isso sim, um escárnio!
Mais do que nunca, é visível que a produção humana é algo coletivo. Por mais que, em alguns casos, seja fruto da inspiração de um indivíduo, essa pessoa só conseguiu esse desenvolvimento porque vive numa sociedade que lhe ofereceu recursos e tempo para tal. Se estética Ghibli agrada alguém, e essa pessoa quer uma foto de seu filho naquele estilo para pendurar na parede de casa, isso é mais uma homenagem ao estúdio do que uma ofensa ou, pior, um roubo. É claro, a inteligência artificial não acabará com o trabalho criativo e precisa de mais e mais dados para acompanhar o ritmo acelerado da produção de mais de 8 bilhões de pessoas. Mas, se o trabalho é apenas proteger legalmente a produção intelectual e reproduzi-la ad infinitum, cobrando da sociedade um custo elevado, isso não é nem criativo, nem produtivo, é o mais puro rentismo.
A arte, em seu sentido tradicional, sempre esteve em conflito com o modo de produção capitalista, que tratou de colocar o trabalho criativo e relativamente espontâneo de seres humanos numa cruel linha de montagem desalmada. Basta ver os famigerados filmes da Marvel, com o mesmo valor artístico e estético de uma barra de sabão. Se algum dia for possível criar um filme desses mediante um prompt ao ChatGPT, quem dirá que isso não é um progresso? Milhares de artistas que trabalham nessas produções, ceifados de sua liberdade criativa, estarão finalmente livres para criarem o que bem entenderem e, finalmente, alimentar o modelo gerador de seu tempo.
O que devemos exigir é que a OpenAI e seus concorrentes entreguem ao público seus modelos, suas rotinas de treinamento e as probabilidades de suas saídas, para que todos se beneficiem, de fato, desse avanço. É exigir que a empresa cumpra o que está em seu próprio nome.