O STF proferiu a sentença contra Jair Bolsonaro, que engrossa a lista de ex-presidentes do chamado período da redemocratização condenados à prisão. Na triste galeria, já figuravam Collor, Lula e Temer, este último por brevíssimo período. Escaparam da sina Dilma Rousseff, que foi deposta sem motivo, e os ilibados governos do PSDB – Itamar Franco e FHC. A condenação de Bolsonaro, a mais de 27 anos de prisão em regime fechado, é anunciada com gáudio e ares de ação patriótica. Em uníssono, os jornais da burguesia, a Rede Globo, os ministros do STF e a esquerda governista comemoram em êxtase o desfecho da pantomima, já de antemão conhecido. Estamos, finalmente, livres de um golpe que, se concretizado, nos levaria de volta aos porões da ditadura de 1964.
Bolsonaro está sendo punido com uma pena altíssima, que, dada a sua idade, equivale à prisão perpétua, por atos que não cometeu, mas que, segundo indícios, poderia vir a cometer. A Justiça, nesse caso, estaria agindo antes da materialização do crime, o que é, no mínimo, esdrúxulo. Como chegamos até aqui?
Um fato recentíssimo nos ajuda a raciocinar: o mesmo Bolsonaro, imediatamente após a primeira condenação, perde outra ação que tramitava na mesma Justiça, na qual era acusado de crime de “injúria racial”. Não receberá mais anos de prisão – até porque estará preso até os 97, caso chegue até lá –, mas terá de pagar uma indenização de R$ 1 milhão. O motivo da condenação foram piadas de mau gosto sobre o cabelo de um rapaz negro. O rapaz, apoiador de Bolsonaro, não se sentiu ofendido nem o processou, mas o Ministério Público Federal ajuizou ação, pedindo R$ 5 milhões. O dinheiro arrecadado, segundo consta, vai para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, pois a ofensa atingiria toda a população negra. Nesse caso, o acusado foi condenado com base na Lei da Injúria Racial, que tem como agravante a situação de descontração. Em outras palavras, sendo uma brincadeira, a ofensa é mais grave.
Essa lei, apresentada como forma de proteger a população negra contra a branca, “estruturalmente racista”, foi aprovada no auge da propaganda identitária no país. Como sabemos, tem sido usada para tachar de antissemitismo toda crítica ao genocídio praticado por “Israel” em Gaza e servido de base para entendimentos ampliados do STF, que estendeu seus efeitos a injúrias contra a população LGBT, contra pessoas obesas, deficientes etc. Quem acompanhe o noticiário está observando o uso dessa lei para condenar inimigos políticos por coisas ditas. Em outras palavras, dizer coisas desagradáveis ou meramente contrárias à política identitária passou a ser visto, a depender das circunstâncias, como crime. O que antes era crítica tornou-se “ataque”. A inovação está em criminalizar a expressão do pensamento como se fosse um ato.
Ouvido de passagem em transmissão ao vivo do canal 247, um comentador afirmava, em referência ao propalado “discurso de ódio”, que as palavras antecedem os atos criminosos. Nessa lógica, falar já é, em si, o indício de que o sujeito é um criminoso em potencial. A Justiça, então, assumiria o papel de evitar o ato criminoso ao punir a fala, o rascunho de texto encontrado em um arquivo de computador, a conversa em aplicativo de mensagens, os supostos “planos” de ações criminosas, mesmo que tudo isso não passe de expressão de pensamentos. Estamos diante de uma justiça preventiva, que prescinde de provas materiais, pois não está a julgar atos, mas intenções. Quando a imprensa, inclusive a de esquerda, e a mais alta corte judiciária do país se referem ao julgamento de uma “trama golpista”, fica claro que se está julgando algo que não se consumou. É possível punir a coisa dita, pensada ou escrita em rascunho?
O quebra-quebra de 8 de janeiro de 2023 foi a única materialização do que quer que seja, mas é impossível provar que seu mentor fosse o ex-presidente. A manifestação popular, no entanto, é punida exemplarmente para que o povo entenda que democracia é comparecer às urnas eletrônicas de quatro em quatro anos e aguardar o resultado – mais nada. O dano às obras de arte e aos edifícios jamais imporia penas de 12, 14 ou 17 anos de prisão. Nem assassinos confessos amargam tantos anos na cadeia. De resto, por que o golpista Bolsonaro, que foi eleito no regime democrático dizendo as mesmas coisas que hoje o condenam, não teria dado o famigerado golpe enquanto estava no poder? Se houvesse condições, talvez o tivesse feito, mas as condições para um golpe no Brasil, como sabemos, passam pela bênção do imperialismo e do próprio STF, como vimos em 2016 e em 1964.
De todo modo, o que gera um grande incômodo é o clima de resgate da democracia, liberta das garras do golpismo. A esquerda virou fã de carteirinha da ministra Cármen Lúcia, “a única mulher do STF”, que fez um discurso pomposo sobre a necessidade de livrar o Brasil de golpes, como o de 1937 e o de 1964. A mesma ministra, há pouco tempo, afirmou que a população brasileira era composta de 213 milhões de pequenos tiranos, donde ser necessário controlar as redes sociais. Eis o quilate de nossos honrosos defensores da democracia.
Depois do ufanismo em torno do Oscar recebido pelo filme Ainda Estou Aqui, que retrata a saga de uma família de classe média alta que é arrancada do conforto pequeno-burguês pelas garras da ditadura de 1964, estamos todos sensibilizados quanto aos métodos indiscutivelmente terríveis desse regime de exceção. O filme, propositadamente, excluiu do roteiro as motivações da luta política travada pela esquerda na época – afinal, a Globoplay e o Oscar não iriam, em hipótese alguma, fazer o elogio da luta armada e dos ideais da esquerda que se enfrentava com a ditadura da burguesia. O foco é a luta de uma mulher para se reerguer depois de perder o marido, torturado e morto pelo regime militar da época.
Para bom entendedor, meia palavra basta. A ditadura aparece como uma sombra de um período nefasto que ninguém gostaria de reviver, no qual militares torturavam e matavam pessoas. É fato. É fato também que houve uma anistia que impediu a punição desses militares assassinos. O que não é fato, mas tem sido argumento da esquerda, da Rede Globo e da retórica dos ministros do STF, é que punir os militares de hoje pela “trama golpista”, assim como Bolsonaro, é fazer um acerto de contas com esse passado. É falso. Essas forças políticas alegam que, como elogiou a ditadura, Bolsonaro pode (e deve) ser punido pelos crimes do golpe de 1964. Esse é o subtexto da retórica do STF, que se tem traduzido em memes, charges, cançonetas e toda sorte de material para animar a torcida da esquerda.
Quando o humorista Leo Lins foi condenado a oito anos de prisão por contar piadas politicamente incorretas, Jones Manoel, o comunista admirado por Caetano Veloso e pela Folha, comemorou com base no argumento de que era salutar que um homem branco de classe média fosse para a cadeia, já tão cheia de pessoas negras e pobres. Leo Lins seria, então, o símbolo do “patriarcado branco heteronormativo”, finalmente enfiado numa masmorra. Da mesma forma, Bolsonaro seria um símbolo da ditadura de 1964, que diz admirar, portanto merece ser punido. A esquerda pequeno-burguesa, em seu delírio, vibra com a justiça semiótica.
Nesse clima de congraçamento entre a esquerda, a imprensa burguesa, a Rede Globo e o STF, todos querem atirar sua pedra no condenado. Até seu precário estado de saúde é posto em dúvida, como se a internação hospitalar não passasse de subterfúgio para evitar a prisão. Enquanto isso, caros amigos, os golpistas ainda estão aqui, com STF, com tudo – mantido, porém, o Estado Democrático de Direito, que manobram de acordo com a sua conveniência.





