Após a Câmara dos Deputados votar, em dois turnos, a Proposta de Emenda Constitucional nº 3 de 2021 (PEC 3/21), organizações não governamentais, personalidades, políticos e partidos brasileiros começaram a convocar atos de rua para o próximo domingo, dia 21 de setembro. Batizada de “PEC das Prerrogativas” pelos parlamentares, uma vez que visa estabelecer prerrogativas legais para a proteção da atividade parlamentar, a proposta foi apelidada pejorativamente pela grande imprensa de “PEC da Blindagem”. Em fevereiro, o articulista Merval Pereira, porta-voz das Organizações Globo, já dizia ser “natural que deputados tentem se proteger com uma PEC da Blindagem”, pois “não querem nem que assessores sejam investigados e que o Congresso seja avisado antes de qualquer ação da PF; uma série de privilégios que o cidadão comum não tem”.
Após a aprovação da PEC 3/21 em 16 de setembro, políticos ligados a ONGs que recebem financiamento estrangeiro começaram a chamar a proposta de “PEC da Bandidagem”. No mesmo dia, Érika Hilton, deputada transsexual do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), publicou em seu perfil na rede social X um texto em que dizia: “em uma noite VERGONHOSA, a Câmara dos Deputados aprovou, em dois turnos, a PEC DA BANDIDAGEM”. A deputada alegou não ter “palavras para descrever o nojo de ver representantes eleitos pelo povo votando para que políticos possam roubar o povo sem nunca serem punidos por isso”. Hilton concluiu a publicação dizendo a seus apoiadores que deveriam se preparar “para se manifestar contra a PEC DA BANDIDAGEM quando ela for ao Senado”, indicando que uma manifestação contra a aprovação da PEC já estava sendo articulada.
Érika Hilton é uma notória sócia de ONGs ligadas ao Departamento de Estado norte-americano. No mês passado, Érika Hilton se encontrou com o presidente da Open Society Foundation, instituto que financia “revoluções coloridas” em todo o mundo. Em seu próprio sítio, a Open Society se orgulha de dizer que uma de suas entidades, Fundação Internacional do Renascimento, participou ativamente dos protestos do Euromaidan, que resultaram em um golpe de Estado fascista na Ucrânia, dando lugar a um regime apoiado por milícias neonazistas.
Em 2024, Érika Hilton doou R$400 mil a uma ONG brasileira: o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (Fonatrans). Esta ONG, por sua vez, é promovida pela própria Open Society e pelo Fundo Brasil, uma plataforma que, por sua vez, recebe recursos de várias ONGs imperialistas.
Outra pessoa a se manifestar rapidamente foi o youtuber Jones Manoel, membro da Direção do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Em vídeo publicado em seu canal no dia 17 de setembro, Manoel diz que “deputados liderados pelo Centrão e pela extrema-direita, querendo aprovar um projeto de lei que vai torná-los imunes a qualquer prática criminosa”. O youtuber também diz que “a PEC para proteger criminoso, é a PEC para proteger bandido, é a PEC para proteger gente envolvida com crime organizado, com PCC, com lavagem de dinheiro. É deputado que dirige bêbado e mata a pessoa, deputado que mata a namorada e diz que foi suicídio. É para isso que serve essa PEC”.
O discurso do dirigente do PCBR, que procura apresentar os deputados como criminosos comuns, é muito semelhante ao da direita e da extrema direita no momento de auge da Operação Lava Jato. Em 2016, durante discurso na Câmara dos Deputados, o então procurador Deltan Dallagnol disse:
“São três as bases de estruturação das [10] medidas [contra a corrupção]. A primeira é que a corrupção mata, a segunda é que um paraíso de impunidade é um paraíso de corrupção e a terceira essas medidas formam um efetivo próprio contra a corrupção, porque é a impunidade de que alimenta essa corrupção.”
“A corrupção é uma assassina sorrateira, invisível e de massa. Ela é uma serial killer que se disfarça de buracos em estradas, em faltas de medicamentos, de crimes de rua e de pobreza.”
Em outro momento do mesmo vídeo supracitado, o youtuber Jones Manoel revela seu incômodo com o fato de que os deputados não seriam imediatamente julgados pelo Judiciário caso sofressem alguma acusação penal:
“Se um líder de facção se eleger deputado estadual, ele não vai poder ser investigado pela Justiça. Vocês entenderam isso? Veja: qualquer líder de facção, qualquer líder de grupo de extermínio ou qualquer traficante que se eleger deputado, não vai poder ser investigado pela Justiça sem aprovação prévia dos seus pares, entendeu? Então, é a PEC do crime organizado”.
A PEC das Prerrogativas, no entanto, não impede que um parlamentar seja investigado. O que ela determina, segundo o próprio texto aprovado, é que “os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa”.
Não se trata de uma novidade. O próprio Jones Manoel reconhece, em seu vídeo, que a Constituição Federal de 1988 havia estabelecido um dispositivo semelhante.
Assim como Érika Hilton, Jones Manoel tem vínculos significativos com ONGs e fundações estrangeiras. O youtuber teria iniciado sua atividade política durante a campanha Não vai ter Copa, um movimento financiado pela Fundação Ford, instituto conhecido por promover projetos golpistas ligados à Central de Inteligência Norte-Americana (CIA, na sigla em inglês). Em 2022, após as relações entre pessoas de seu círculo íntimo e ONGs imperialistas serem expostas, Jones Manoel declarou que “não é pq a pessoa é de um mov. social que captou recursos num fundo que tem $ da Ford ou Bill Gates que ela é teleguiada por eles”. A publicação foi vista como uma conivência com o recebimento de fundos imperialistas por pessoas e organizações que dizem integrar a esquerda nacional.
No último período, Manoel também tem sido promovido pela imprensa capitalista, em especial pelas Organizações Globo, onde foi citado em um programa com o apresentador Pedro Bial e entrevistado por Mario Sergio Conti, e pela Folha de S.Paulo, que escreveu um artigo elogioso a ele recentemente.
No mesmo dia em que Jones Manoel publicou seu vídeo criticando a aprovação da PEC, o deputado federal Guilherme Boulos fez um chamado às ruas.
As relações entre Guilherme Boulos e as ONGs imperialistas já foram expostas extensamente neste Diário. O deputado também tem um histórico de relações com o jornal Folha de S.Paulo, que o chamou, em duas oportunidades, para integrar o quadro de colunistas.
Nos últimos anos, Boulos tem sido constantemente convocado para impedir que manifestações com potencial explosivo se desenvolvam. Durante a pandemia de coronavírus, Boulos, com o apoio da Folha de S.Paulo, se apresentou como líder das manifestações contra o governo de Jair Bolsonaro (PL) para firmar um acordo com a Polícia Militar de São Paulo (PMESP). Graças ao acordo, a esquerda ficou impedida de realizar manifestações em alguns finais de semana reivindicados pela direita.
No dia 18 de setembro, o cantor Caetano Veloso também decidiu convocar uma manifestação de rua contra a PEC 3/21. Veloso, que se eximiu de defender a Venezuela e a Palestina nos últimos anos, não é uma figura de esquerda. Defensor da Lava Jato, o cantor é associado às Organizações Globo. Sua esposa, Paula Lavigne, é conhecida por promover encontros, em seu apartamento, entre pessoas de interesse da Família Marinho. Em um desses encontros, Veloso e Lavigne receberam o próprio Deltan Dallagnol.
Em 2017, Boulos e Caetano Veloso estiveram juntos em uma situação semelhante: uma articulação em torno da palavra de ordem de Fora Temer. Ambos, à época, defendiam que os protestos contra o presidente golpistas fossem dominados pelas cores verde e amarela, uma manobra que servia para impedir que o movimento contra o golpe de 2016 se transformasse em um movimento de apoio à candidatura de Lula em 2018, o que era seu caminho natural.
A convocatória de Caetano Veloso foi produzido pelo coletivo 342 Artes, criado por Paula Lavigne. Este, por sua vez, é filiado ao Washington Brazil Office (WBO), que tem como uma de suas conselheiras Mari Stockler, que é gestora cultural e coordenadora da 342 Artes. De acordo com o sítio do WBO, entre seus apoiadores, estão fundações imperialistas como a Open Society, o Action for Democracy e o Instituto Clima e Sociedade.
Tanto Érika Hilton, quanto Jones Manoel, quanto Guilherme Boulos, quanto Caetano Veloso quanto o 342 Artes, embora façam muito alarde da “blindagem” dos deputados, não mencionam a crise política que levou a PEC a ser votada na Câmara dos Deputados.
O próprio fato de que ela resgata um dispositivo presente na Constituição Federal de 1988 já deveria afastar a ideia de que se trata de uma mera manobra de conveniência, desconectada de qualquer problema político real. A votação da PEC 3/21 é mais um capítulo de uma profunda crise institucional entre os Três Poderes — principalmente, entre o Judiciário e os demais. Essa crise foi descrita detalhadamente um artigo de Hugo Henud e Zeca Ferreira para o Estado de S.Paulo, no qual diziam que “a Presidência da República perdeu força, o Congresso Nacional ampliou o seu poder e o Supremo Tribunal Federal (STF) assumiu um protagonismo inédito”. Os autores assinalaram que, em um período de maior estabilidade, “o Legislativo tinha influência, mas estava longe de ser protagonista, enquanto o Supremo permanecia à margem das grandes decisões políticas: seus ministros não apenas adotavam um comportamento mais reservado, evitando excessos em eventos públicos ou entrevistas, mas também exerciam seus poderes de forma mais contida, restringindo decisões monocráticas e interpretações que extrapolassem o escopo do tribunal e interferissem em outros Poderes – como ocorre atualmente”.
Os autores argumentam que isso iria mudar com o julgamento do Mensalão, em 2012, que “trouxe o STF para o centro do cenário político ao transformar a Corte constitucional também em tribunal penal, condenando políticos de diferentes matizes ideológicos e marcando a primeira vez em que o Supremo assumiu papel central no embate político nacional”. Este julgamento, por sua vez, deu início a um processo de golpe de Estado, na medida em que iniciou a perseguição de vários dirigentes políticos, que acabaram sendo condenados sem provas.
O artigo segue, dizendo:
“Ao mesmo tempo em que o Congresso conquistou maior protagonismo, o Supremo passou por uma transformação radical. A Corte, antes distante do debate público, se tornou peça central no embate político. O tribunal deixou de ser “esse outro desconhecido”, expressão cunhada pelo ex-ministro do STF Aliomar Baleeiro em 1968 – e que deu nome a uma obra clássica sobre o desconhecimento da sociedade em relação às funções e à relevância da Corte –, para se tornar uma das principais arenas políticas do País, impulsionado, muito em parte, pelo protagonismo crescente de seus ministros nos últimos anos.”
O que Hugo Henud e Zeca Ferreira indicam, embora não o digam abertamente, é que o STF se tornou um tribunal político. Isto é, abandonou seu papel de fiscalizar a Lei e passou atuar de acordo com interesses políticos. No último período, esta atuação se desenvolveu a tal ponto que a Corte vem assumindo papéis que deveriam, de acordo com a Constituição, serem desempenhados pelo Legislativo. A revisão do artigo 19 do Marco Civil da Internet, por exemplo, é uma medida que apenas o Congresso Nacional poderia aprovar, uma vez que se trata de uma lei votada pelo próprio parlamento.
O atropelo do Congresso, por sua vez, é admitido abertamente pelos próprios ministros. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2024, Luís Roberto Barroso, presidente do STF, declarou que “há matérias que não podem depender do processo político majoritário”, defendendo abertamente que uma Corte formada por ministros não eleitos tomasse decisões à revelia do sistema representativo parlamentar.
As manifestações, portanto, não são contra “o deputado que dirige bêbado e mata a pessoa”, mas sim em defesa da usurpação de poderes por parte do STF. Considerando que quem está idealizando, financiando e comandando as manifestações são pessoas e entidades ligadas ao imperialismo, pode-se dizer que são manifestações organizadas pelo imperialismo com o objetivo de interferir no regime político brasileiro.
O imperialismo, fazendo uso de suas ONGs, está tentando, ao estilo das “revoluções coloridas”, impor à sociedade brasileira uma ditadura que tenha poderes para cassar toda e aquela medida aprovada na Câmara dos Deputados — a ditadura do STF. Trata-se, finalmente, de uma cassação da vontade popular, pois os parlamentares nada mais são que seus representantes.





