Cultura

O trabalho é importante e é misterioso: Severence como aviso

Série é uma das mais incisivas críticas à alienação do trabalho produzidas pelo cinema na contemporaneidade

A série Severance (2022), criada por Dan Erickson e dirigida majoritariamente por Ben Stiller, é uma das mais incisivas críticas à alienação do trabalho produzidas pelo cinema na contemporaneidade. Seu conceito central — uma separação cirúrgica entre a consciência do trabalhador dentro e fora do ambiente corporativo — apresenta uma metáfora potente sobre a divisão entre tempo de vida e tempo de produção dentro do capitalismo, refletindo como este sistema molda desejos e percepções para impedir a revolta.

A empresa LUMON oferece um “sentido” ao trabalho, mesmo que seja absurdo, levando seus trabalhadores a uma falsa satisfação, que é temporária, uma vez que o enredo da série consiste justamente no desmonte e exposição deste falso sentido. Ocorre que, aqui no mundo real, o que vemos por todos os lados no capitalismo tardio é justamente a alienação do trabalho mascarada por ideologias de progresso e realização pessoal, mas diferentemente da série, sem perspectivas de entendimento pelas massas da ideologia decrépita que as cerca.

Marx descreve a alienação do trabalho em O Capital como um processo em que o trabalhador é separado do produto de seu trabalho, de sua própria criatividade e, em última instância, de si mesmo. Em Severance, essa alienação é levada ao extremo: os funcionários da LUMON Industries têm suas memórias divididas entre duas existências distintas, conhecidas como “innies” (seres que existem apenas dentro do ambiente de trabalho) e “outies” (versões que vivem fora, sem consciência do que ocorre no escritório). Isso cria um duplo aprisionamento: os “innies” vivem eternamente dentro da empresa, sem qualquer autonomia sobre sua própria vida, enquanto os “outies” veem o trabalho como um espaço abstrato, removido de suas identidades.

Essa dinâmica reflete uma hiperbolização da exploração capitalista, onde o tempo de trabalho não apenas rouba o tempo de vida do trabalhador, mas o fragmenta em duas identidades irreconciliáveis. Sabemos que o capitalismo contemporâneo opera por meio de novas formas de acumulação, nas quais o trabalhador é cada vez mais desumanizado. A LUMON exemplifica esse processo ao transformar seus funcionários em entidades puramente produtivas, sem qualquer autodeterminação.

O trabalho mecanizado transforma os operários em meras engrenagens de um sistema de produção, a repetição desumaniza e por fim a burocracia sufoca qualquer vestígio de autonomia, reduzindo o trabalhador a um executor de tarefas, cujo valor é medido apenas pela eficiência e conformidade dentro da lógica do capital. A LUMON é a expressão máxima desse modelo, onde tarefas absurdamente repetitivas, como o refinamento de macrodados, são realizadas sem que os trabalhadores compreendam seu propósito, sendo lhes dito que o trabalho é importante e é misterioso. Essa terrível estrutura remete ao conceito de “trabalho morto” de Marx, onde a própria força vital do trabalhador é drenada para alimentar uma máquina que não o beneficia, neste caso não uma máquina, mas uma ideia, uma ideia banhada a luz fria, corredores intermináveis e material de escritório.

Além disso, a empresa opera como uma instituição totalitária, onde a vigilância, os rituais corporativos e a obediência irrestrita lembram os sistemas burocráticos criticados por Trótski em regimes autocráticos. Os funcionários são doutrinados com uma devoção quase religiosa à figura de Kier Eagan, o fundador da empresa, cuja iconografia e mitologia ecoam curiosamente tanto no culto à personalidade presente no stalinismo quanto no corporativismo moderno.

Essa devoção funciona como um mecanismo de alienação que transforma a exploração do trabalho em uma missão sagrada. A mitificação de Kier Eagan cria um sistema de valores onde a obediência cega é sinônimo de virtude, e a identidade do trabalhador se dissolve na lógica da empresa.

Essa estrutura remete não apenas ao culto a líderes autoritários, como Stalin, mas também à forma como corporações modernas constroem narrativas messiânicas em torno de seus fundadores—como Steve Jobs ou Elon Musk para justificar hierarquias rígidas e exigir lealdade emocional dos empregados. Ao transformar a empresa em uma entidade transcendente, a série expõe como a devoção religiosa, ao invés de libertar, pode ser instrumentalizada para reforçar a alienação, fazendo com que os trabalhadores aceitem sua exploração como um propósito maior.

Slavoj Žižek argumenta que o capitalismo sobrevive ao incorporar a crítica a si mesmo, criando espaços de falsa liberdade dentro de sua estrutura opressiva, Severance pode ser um bom exemplo do que aponta o filósofo esloveno. A empresa oferece pequenas recompensas, como festas temáticas e prêmios banais, para manter a ilusão de um ambiente positivo.

Esses mecanismos lembram o conceito de “ideologia cínica” de Žižek: os trabalhadores sabem que estão sendo explorados, mas continuam a participar do sistema porque não conseguem conceber uma alternativa, então o absurdo da tela parece transbordar e nos tocar com as imagens mais bizarras produzidas pelas IAs, quando o presidente norte-americano Donald Trump compartilha um vídeo em suas redes sociais com seus planos para Gaza: um Resort de luxo, amparado em tudo de mais Kitsch que se possa imaginar. Não há mais espaços para denunciar o maior genocídio étnico do nosso tempo, eles estão preocupados com suas piscinas e prédios de ouro, e as massas do mundo estão muito ocupados no Instagram ou TikTok consumindo o que lhes é dado, como lavagem para os porcos.

Ainda temos outro ponto interessante: um dos aspectos mais marcantes de Severance é seu design de produção, que evoca o visual corporativo da década de 1950 — período de auge do “american dream” (o sonho americano, em português) e da expansão do capitalismo industrial. Os escritórios minimalistas, os aparelhos analógicos e os móveis inspirados no modernismo funcionalista criam uma estética anacrônica que remete à promessa de estabilidade e prosperidade que marcou os Estados Unidos no pós-guerra.

No entanto, ao invés de representar um ideal positivo, essa escolha estética reforça a sensação de estagnação e aprisionamento. Em vez de progresso, a LUMON encapsula um tempo congelado, onde o sonho americano se torna um pesadelo burocrático. A promessa de uma vida digna através do trabalho, que outrora impulsionava o otimismo da classe média, é revelada como um pesadelo do qual ainda não pudemos acordar. Esse uso do design dos anos 50 como metáfora para a falência desse ideal trabalha como as promessas de liberdade e crescimento econômico serviram para mascarar a crescente desigualdade e precarização do trabalho.

O sonho americano já não passa de uma ruína corporativa, uma memória congelada que apenas acentua o vazio existencial dos personagens, Severance se revela não apenas uma distopia sobre o trabalho, mas uma reflexão essencial sobre as contradições fundamentais do capitalismo em sua fase atual, para que nos lembremos e alertemos os demais que o trabalho que prometeram que seria a salvação individual será a ruína coletiva.

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