Brasil

O STF e suas ‘facções’

A ideia de que existe um setor técnico e outro político dentro da Corte é uma farsa. Todos são políticos

O jornalista Jeferson Viola assinou um artigo intitulado Os votos absurdos de Nunes Marques e André Mendonça para absolver criminosos do 8 de janeiro, publicado no portal Brasil 247 no último dia 14, acusando os ministros Nunes Marques e André Mendonça de agirem com base em seus interesses políticos, e não com base na lei. Diz o articulista:

“Com seus votos, eles se assumiram como uma facção bolsonarista na Suprema Corte do país e se colocaram, portanto, em posição de franco antagonismo em relação à Constituição que têm a obrigação de zelar e defender.”

É bem possível que seja verdade, uma vez que tanto Marques quanto Mendonça foram nomeados diretamente por Bolsonaro e, em muitos casos, expressam decisões alinhadas à orientação política da extrema direita. O problema dessa acusação, porém, não está no que ela afirma, mas no que ela tenta disfarçar.

Miola parte do pressuposto de que esses dois ministros seriam exceções dentro da Corte — que atuariam como representantes de um grupo político — ao passo que os demais membros do STF estariam acima disso, encarnando um suposto papel técnico, imparcial e isento. Trata-se de uma ilusão conveniente.

Tomemos como exemplo Alexandre de Moraes. Antes de ser ministro do STF, foi secretário de Segurança Pública do governo Geraldo Alckmin em São Paulo, onde ficou conhecido pela repressão violenta a manifestações populares, destacadamente a barbárie contra professores e os estudantes das ocupações que marcaram o ano de 2016.

Moraes também foi filiado ao PSDB — um dos principais partidos responsáveis pela construção do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Dizer que alguém com esse histórico é apenas um “técnico” é fingir que nomeações políticas deixam de ser políticas quando feitas por governos supostamente democráticos ou civilizados.

O mesmo vale para Flávio Dino, hoje ministro do STF por indicação do presidente Lula. Dino foi apoiador de primeira hora de Aécio Neves (também do PSDB) no segundo turno das eleições presidenciais de 2014, no momento em que a direita “civilizada” fomentava golpe.

Também foi governador do Maranhão e ministro de Estado, sempre atuando como quadro político, primeiro pelo PCdoB e depois pelo PSB. Há uma tentativa evidente de apagar esse passado, de fazer parecer que o ingresso no Supremo significa um desligamento da vida partidária e da militância.

A realidade, porém, é outra: o histórico, a trajetória e os vínculos políticos dos ministros seguem influenciando suas decisões. A toga não apaga a biografia, muito pelo contrário. Acentua seu alinhamento com o PSDB, e consequentemente, o imperialismo.

A crítica seletiva de Miola opera uma clara manipulação. Aponta a parcialidade de Nunes Marques e André Mendonça para sugerir que os demais ministros não têm lado, não têm interesses, não estão inseridos em nenhum projeto político. Isso é falso.

Gilmar Mendes, por exemplo, foi indicado por Fernando Henrique Cardoso e é amplamente reconhecido por suas relações com o PSDB e setores conservadores do judiciário. No processo do mensalão e durante o impeachment de Dilma, Gilmar foi um dos principais articuladores jurídicos da ofensiva da direita.

Seu comportamento no STF foi tão descaradamente político que ficou famosa a declaração de Romero Jucá sobre o “acordo com o Supremo, com tudo”. Miola simplesmente ignora esse histórico porque está engajado em criar uma narrativa conveniente.

A ideia de que existe um setor técnico e outro político dentro da Corte é uma farsa. Todos são políticos. O que difere entre eles é o campo de onde provêm e os interesses que representam. No caso de Alexandre de Moraes, Flávio Dino e os outros nove ministros, o alinhamento ao imperialismo é explícito.

O problema não está apenas nos ministros bolsonaristas, mas no conjunto da Corte, que há anos atua como uma máfia, de maneira antidemocrática, como foi no caso da prisão de Lula em 2018, que permitiu a eleição de Bolsonaro, e como tem sido nas recentes ações contra adversários políticos sob o pretexto de combater notícias falsas e o “discurso de ódio”.

Miola também acusa os ministros bolsonaristas de se colocarem em antagonismo com a Constituição. A verdade é que a Constituição já foi sistematicamente rasgada — inclusive pelos ministros que Miola idolatra.

Um exemplo disso é o precedente criado pelo próprio STF que permitiu a prisão de réus antes do trânsito em julgado, violando a cláusula pétrea da presunção de inocência. Essa mudança foi decisiva para manter Lula na cadeia e para facilitar a vitória eleitoral de Bolsonaro. Ou seja, foi o Supremo, com apoio da imprensa e de setores do sistema político, que pavimentou o caminho para o bolsonarismo chegar ao poder.

A Constituição já foi atirada à sala de lixo quando o STF, por exemplo, considera críticas a seus membros lidas nos computadores da instituição como “ataques realizados no interior das dependências do órgão”, golpe que permitiu, por exemplo, a criação do famigerado Inquérito das Fake News. Com base nisso, o órgão vem desde então realizando uma profunda intervenção na política nacional, censurado tudo e todos, fechando redes sociais e sítios, prendendo pessoas por opiniões e agindo de maneira totalmente arbitrária.

A liberdade de expressão, cujo único limite explícito na Constituição é o anonimato, foi completamente corroída. O argumento de que “liberdade implica responsabilidade” virou justificativa para toda sorte de abusos — como se o Supremo estivesse acima da própria lei. Já não se trata de defender a Constituição, mas de prostituí-la, usando a Carta como pretexto para decisões políticas tomadas ao sabor da conveniência.

Ao ignorar tudo isso, Miola se revela ele próprio defensor de uma facção. Não é a facção bolsonarista — é a facção tucana, que atua sob a máscara da tecnocracia, mas que opera com os mesmos métodos autoritários e antidemocráticos.

Herói dessa nova direita liberal, Moraes foi e continua fazendo política tucana, só que agora com a legitimidade que o Supremo lhe concede. Flávio Dino, apesar de ter passado pelo PCdoB, não hesitou em apoiar Aécio Neves e hoje serve como elemento de contenção dentro do regime.

Miola representa o pensamento de um setor da esquerda pequeno-burguesa que, iludido pelo medo do bolsonarismo, acabou aderindo a uma política ainda mais autoritária. Ao defender um STF supostamente “técnico”, sua posição ajuda a legitimar a repressão empreendida pelo órgão, representante do setor mais poderoso da burguesia mundial, apoiando assim o cerceamento das liberdades e o avanço de medidas de exceção.

A história mostra que esse tipo de aliança é desastrosa: foi assim em 1964, quando os “democratas” defenderam os militares a tomar o poder. Assim é hoje, quando o STF substituiu as Forças Armadas como órgão centralizador de uma ditadura, um regime arbitrário sem qualquer controle popular ou institucional.

No fim, o que está em jogo não é a defesa da Constituição, mas o controle do regime. Quem está no controle, neste momento, é justamente o setor que se apresenta como democrático e técnico.

Um setor que hoje precisa disciplinar as burguesias domésticas, representadas pela extrema direita, mas que tem na esquerda o verdadeiro inimigo a ser controlado. Apoiar o imperialismo é alimentar um monstro que fatalmente atacará os trabalhadores. Com o apoio de Miola e da esquerda pequeno-burguesa, uma orientação desencontrada da realidade que deve ser criticada, para não ser seguida, o que seria um suicídio.

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