Entrevistando a professora Rashmi Singh e o professor Michel Gherman, a estatal Agência Brasil publicou uma matéria no dia 25 de outubro de 2023, poucas semanas após a operação Dilúvio de al Aqsa, intitulada Entenda o que é sionismo, movimento que dá origem ao Estado de Israel e trazendo interpretações para o fenômeno do sionismo. Uma das entrevistadas, a professora de pós-graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais Rashmi Singh, diz que “o sionismo é uma religião-política”, uma formulação tirada da cartola para disfarçar o fato de se tratar de um movimento político, que usa os judeus como escudo para a defesa do Estado de “Israel”, um enclave imperialista dedicado a controlar o Oriente Médio. O outro entrevistado, historiador e professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Michel Gherman, ousa ainda mais e diz:
“Diria que o sionismo é um movimento que se constitui pela construção da identidade nacional do povo judeu. Note que eu não falo sobre Estado de Israel quando defino o sionismo porque algumas correntes do sionismo, que é um movimento diverso, não têm como objetivo final a construção do Estado de Israel.”
O problema com a interpretação fantasiosa de Gherman é que ao formular seu “movimento diverso”, o historiador da UFRJ esqueceu de combinar com o “pai do sionismo, o judeu austríaco Theodor Herzl, que no século XIX escreveu uma obra intitulada O Estado Judeu, o que já seria suficiente para desmentir Gherman. Ocorre que Herzl vai além e escreve cartas com o seguinte teor:
“Você está sendo convidado a contribuir para a escrita da história. Isso não deveria assustá-lo, nem causar risos. Não está dentro de sua esfera habitual; não trata da África, mas sim de uma parte da Ásia Menor, não envolve ingleses, mas sim judeus. No entanto, se isso estivesse em seu caminho, já teria sido realizado por você mesmo. Então, como posso me dirigir a você, uma vez que este é um assunto fora do seu caminho? De fato, como? Porque é um assunto colonial [grifo nosso] e exige a compreensão de um desenvolvimento que levará vinte ou trinta anos. O senhor, Sr. Rhodes, é um visionário tanto em termos políticos quanto práticos… Quero tê-lo ao meu lado… para endossar a autoridade do plano sionista.”
O “Sr. Rhodes” a quem o austríaco se refere é ninguém menos que Cecil John Rhodes, organizador de colônias britânicas na África e responsável por um sistema de organização social que posteriormente será conhecido como apartheid, um sistema abertamente racista e que só seria derrubado em meio a uma insurreição revolucionária dos negros da África do Sul, no início dos anos 1990. Não apenas é falsa a versão de Gherman de que “algumas correntes do sionismo não têm como objetivo final a construção do Estado de Israel”, como desde sua concepção, “Israel” não era outra coisa além de uma colônia organizada sob a base do racismo.
Na sequência da entrevista, Gherman atribui ao sionismo a melhor resposta para a questão judaica, simplificando malandramente o caso com a tirada: “os judeus que saíram da Europa para construir um Estado-nação sobreviveram, os judeus que permaneceram na Europa falando das outras alternativas foram vítimas do Holocausto”. É uma malandragem porque joga para debaixo do tapete o fato de que não foi mérito algum de um movimento, mas do imperialismo, que se aproveitou do Holocausto para impulsionar uma onda migratória de europeus judeus para a Palestina, na época, uma colônia britânica, portanto, sem vez e nem voz diante dos planos da então maior potência imperialista do mundo. Um pouco mais honesta, Singh destaca a importância central dos monopólios para a “resposta” sionista:
“Nessa época (final do século 19), [o movimento sionista] era uma organização para juntar fundos e comprar territórios na Palestina para colocar as comunidades de judeus da Europa nesse local. Mas eles não conseguiram comprar muita terra porque já era uma área ocupada.
A situação começou a mudar depois da 1ª Guerra Mundial com a criação do Mandato da Palestina do Reino Unido. Antes mesmo do Reino Unido ganhar o controle do território palestino, o governo britânico lançou a Declaração de Balfour, em 1917, que deu apoio total ao estabelecimento dos judeus nesse local. A partir daí, temos enormes migrações de judeus europeus para a Palestina e, ao mesmo tempo, começou uma reação dos árabes contra essa migração.”
Singh, no entanto, não entra no mérito sobre como exatamente se iniciou a “reação dos árabes contra essa migração”. Não menciona, por exemplo, que três anos após a Declaração de Balfour, surge um dos mais infames instrumentos do terror sionista, a milícia paramilitar Haganá.
Armada e treinada pelo imperialismo britânico, o Haganá será o núcleo do futuro Exército de “Israel”, dedicando-se a aterrorizar os palestinos, para expulsar a população nativa de seu território e com isso, facilitar a aquisição de terras palestinas por sionistas. É uma declaração, portanto, que vale pelo que esconde.
Gherman, por sua vez, decidido a defender a fantasia de que o movimento sionista seria orgânico aos judeus e não uma construção de banqueiros, também comenta a “resposta” sionista e o impulso à imigração judaica para a Palestina destacando:
“O objetivo era fazer essa migração sem acordo com as potências, principalmente ingleses e turcos, e também sem chegar a um acordo com os palestinos. Tinha que migrar e fazer com que as coisas acontecessem depois da migração por causa de duas questões: a disputa das potências naquela região enfraqueceria o projeto sionista e também pelo crescimento do antissemitismo.
A que se hegemonizou foi a corrente migratório social-democrata por causa das condições concretas da realidade. Primeiro, porque eles conseguiram produzir uma migração por conta do antissemitismo na Europa que aumentava muito e os judeus não tinham para onde ir porque as fronteiras foram fechadas, tanto nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália, na Argentina e no Brasil. Então, o destino palestino era o único possível para os judeus naquela época.”
O fato destacado por Gherman, de os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Argentina e Brasil, dificultarem a entrada de judeus em seus territórios, não é um fenômeno aleatório ou fruto da maldade no coração de seus governantes, mas uma decisão deliberada voltada a restringir as opções para os judeus desesperados, de modo a impulsionar a ocupação da Palestina na ocasião, a única alternativa viável para a fuga dos judeus europeus. Gherman não entra no detalhe do motivo pelo qual os governos tomaram tal medida em conjunto, porque não convém à fantasia que tenta apresentar, útil para apresentar o sionismo como uma “resposta” à perseguição sofrida pelos judeus até a primeira metade do século passado, mas que tem o problema de demonstrar que os sionistas atuaram junto aos seus perseguidores, e pior, usando os judeus como bucha de canhão para a ditadura imperialista contra os povos oprimidos.
Esse é o fator fundamental dessa política frontalmente contrária aos preceitos religiosos do judaísmo, o que Gherman trata como “narrativa que diz que quem criou a inimizade entre judeus e palestinos foi o sionismo”, mas que explica tanto o estado de conflito permanentemente, como também porque essa população europeia está lá e não nos países para os quais tentaram asilo durante o período do Holocausto, destacadamente EUA e Reino Unido. O historiador sionista da UFRJ não explica porque dois países centrais na criação do Estado de “Israel” como essas potências imperialistas negaram a entrada de judeus oriundos da Europa continental em seus territórios e nem pode, sob risco de desmascarar o sionismo e, portanto, sua tese, de que o movimento sionista seria dedicado a defender os judeus. Nunca foi e continua não sendo.