Polêmica

O revolucionário imaginário

Na crise do regime, enquanto algumas organizações se perdem completamente, as que têm um programa sério e coerente crescem

Valério Arcary publicou no sítio Esquerda Online um artigo intitulado O partido revolucionário imaginário, no qual argumenta que a crise da esquerda torna a tarefa de construção de um partido revolucionário, marxista, capaz de unificar a vanguarda da classe operária, uma ilusão. Segundo ele, a esquerda brasileira encontra-se fraturada em dezenas de organizações, e essa fragmentação estaria ligada à insistência “sectária” em manter projetos políticos próprios de organização. Eis sua consideração:

“A esquerda socialista brasileira nunca esteve tão fragmentada como hoje. Existem no Brasil mais de vinte organizações de esquerda, em estágios diferentes de construção e influência.

(…)

A dispersão é avassaladora. Muitos ativistas honestos se perguntam o que poderia explicar esta catástrofe. Algo tão complexo tem muitas causas. Mas uma das razões é que a ideia de que existiria um núcleo que seria o embrião do partido da revolução brasileira ainda está presente. Mas este “partido revolucionário” imaginário é somente uma ilusão. Quem são os ‘mais revolucionários’? Como explicar esta anomalia?”

Na prática, Arcary renuncia abertamente à construção de um partido revolucionário, o que considera ser uma “fantasia”. Essa posição não é uma novidade, mas chama atenção pelo grau de franqueza com que ela é apresentada. Trata-se de uma guinada pública de um agrupamento, a Resistência, corrente morenista do PSOL saída de um racha com o também morenista PSTU e responsável por editar Esquerda Online. A renúncia à luta por um partido revolucionário independente é, portanto, sintoma de um impasse político mais profundo. O artigo de Arcary não é uma elaboração teórica, mas uma racionalização oportunista da crise política de sua corrente.

Logo no início, Arcary afirma que “o partido revolucionário é uma ilusão” e que a existência de dezenas de micropartidos é uma “anomalia”. Essa tese, embora apresentada como uma constatação realista, é uma posição profundamente despolitizadora. A tentativa de explicar a fragmentação da esquerda exclusivamente pela via subjetiva — o “sectarismo” — ignora que as divisões no movimento operário são produto de distintas estratégias e programas diante da luta de classes. Um partido revolucionário, finalmente, não é apenas uma “sigla”, mas uma organização baseada em um programa claro, capaz de intervir de forma independente em nome dos interesses históricos da classe operária.

O que Arcary propõe em lugar disso? Não há nenhuma proposta política concreta em seu texto. Toda a argumentação gira em torno da rejeição da autoconstrução partidária, da tese de que toda a esquerda vive uma crise que torna a empreitada “uma ilusão”, da defesa genérica da “frente única” e da crítica às “seitas”. Nenhuma política real, contudo, é apresentada como alternativa. Isso não é um detalhe: é o cerne do problema.

Arcary e sua corrente não apresentam a política porque qualquer formulação séria levaria à constatação da falência da linha que seguiram até aqui. A atuação parlamentar fracassou, a inserção nos movimentos sociais é limitada e sua influência política é cada vez menor. O texto expressa, assim, uma tentativa desesperada de justificar sua crise interna e sua desorientação estratégica, expressa também no trecho abaixo:

“Além das diferenças ideológicas, a estratificação social do mundo do trabalho foi ficando mais complexa. Não há como desconhecer que o proletariado contemporâneo foi se diversificando a tal ponto, que a sua representação por um único partido, há muito deixou de ser, politicamente, possível na maioria das sociedades urbanizadas.”

Essa guinada de Arcary representa uma mudança qualitativa. A nova linha parte do reconhecimento implícito de que fracassaram em se tornar uma alternativa política real à esquerda reformista, revolucionária e capaz de influir no movimento dos trabalhadores.

Esperavam eleger deputados, projetar quadros, disputar postos de direção nos movimentos e, com isso, alavancar seu crescimento. O fracasso eleitoral e a perda de espaço abriram uma crise interna, do qual as colocações acima não são mais do que o reconhecimento. A resposta é essa tese: já que não conseguimos nos construir, a construção do partido é uma ilusão. É a defesa do fracasso como estratégia. Mas Arcary não para por aí:

“Se não são fatores objetivos que explicam a divisão, devemos procurar causas subjetivas. Uma das razões chaves da situação de uma esquerda fraturada, estilhaçada e dispersa é o sectarismo.

(…)

O sectarismo é mais uma conduta política que elegeu como prioridade a defesa de interesses de grupo. Sectarismo político deve ser entendido como aparelhismo, um conjunto de procedimentos de autoafirmação. Tendências sectárias têm muita dificuldade para realizar a frente única, mesmo quando acordos eram possíveis para campanhas conjuntas, porque identificam os potenciais aliados, em especial, os mais próximos, como inimigas. A autoconstrução e, pior a autoproclamação é o sintoma mais recorrente do sectarismo.”

Para justificar sua capitulação, ele busca deslegitimar todos os esforços de construção partidária independente. Segundo ele, essas organizações são “seitas”, “ultraesquerdistas”, “aparelhistas”. É uma operação política clássica: projetar sobre os outros os próprios limites.

Como percebeu a impossibilidade de se manter vivo com a política defendida, acusam os que têm um programa de serem doutrinários. Como não conseguem se expandir, desqualificam quem cresce como “hipercentralizado”. Como não têm base social, dizem que ninguém tem. Como estão em crise, negam a possibilidade de qualquer projeto sobreviver. É uma tentativa de nivelar por baixo todo o campo da esquerda, balizando-a com o referencial da sua própria decadência.

A existência do Partido da Causa Operária, que vem crescendo com a crise do regime político e a radicalização das contradições do capitalismo, é um dos grandes obstáculos à tese de Arcary. O PCO é uma organização com vida política própria, com um programa revolucionário claro, uma militância ativa e um crescimento visível, sobretudo a partir da crise aberta pelo golpe de 2016. Não depende de manobras em partidos reformistas nem de cargos institucionais para existir.

Sua construção está ligada diretamente a um programa dedicado à intervenção revolucionária na luta de classes, à intervenção política cotidiana e à defesa intransigente da independência de classe. É por isso que precisa ser apagado do artigo de Arcary — ou, quando mencionado, reduzido a uma caricatura: “à sua maneira esdrúxula”, não sem surpresa, a única organização de esquerda que recebeu qualquer caracterização do gênero.

Para contornar esse problema, Arcary introduz uma nova tese: a existência de “seitas grandes”. É uma ideia absurda do ponto de vista teórico, mas reveladora do ponto de vista político. O que ele quer dizer é simples: mesmo organizações que crescem devem ser descartadas como inválidas. Eis sua consideração:

“O que define uma seita não é o seu tamanho, mas sua marginalidade crônica, sua impermeabilidade à pressão social e política, e um regime interno burocraticamente deformado e, com o tempo, uma direção que cultiva a própria clarividência messiânica, politicamente, estéril.”

É a defesa da irrelevância como virtude. Não importa se uma organização cresce, intervém na luta de classes, se apresenta como alternativa, se mantém independência diante do Estado e da burguesia e se torna relevante a ponto de influir no movimento de massas, fenômeno que pode ser observado desde a luta contra o golpe, passando pela mobilização contra a prisão de Lula e depois, pela sua libertação, e finalmente, na mobilização em defesa da Palestina, que confere ao PCO uma autoridade reconhecida inclusive pelas organizações revolucionárias da Resistência Palestina. Se não passar pelo crivo subjetivo da pequena burguesia, é seita.

Essa crítica à “autoconstrução” também merece atenção. Segundo Arcary, é sectário tentar construir um partido com vida própria, sem se subordinar a frentes e alianças com correntes reformistas. É “doutrinário”, “autoproclamatório”, “isolado”. Mas sua corrente, a Resistência, não tem qualquer vida política independente.

Precisa entrar em outros partidos — primeiro o PSTU, depois o PSOL —, precisa colar sua atuação a figuras públicas como Guilherme Boulos ou parlamentares de outras correntes, precisa disputar espaço em outras siglas porque não tem base para se sustentar sozinha. A crítica à autoconstrução, nesse caso, é apenas a admissão de impotência. Como não conseguem se construir, dizem que ninguém deve tentar.

Essa linha política é fruto de uma crise profunda da esquerda pequeno-burguesa. Arcary está apenas dizendo, de forma mais sistemática, aquilo que se tornou senso comum nesse setor: a política revolucionária é impossível, é preciso adaptar-se. O que sua análise revela é, sobretudo, o desespero de uma corrente que está sendo atropelada pelos acontecimentos.

A crise do imperialismo, a falência do regime político, a crescente radicalização das contradições sociais estão colocando na ordem do dia a necessidade de uma alternativa revolucionária real. E aqueles que não têm essa alternativa entram em colapso. A ausência de política no artigo de Arcary não é um descuido: é uma malandragem e um sintoma.

A única conclusão que Arcary consegue oferecer é que, apesar de tudo, é preciso “seguir tentando construir um partido”. Mas como? Onde? Com que programa? A resposta não vem, porque não pode vir. Sua Resistência está encurralada.

Sua base pressiona por respostas, mas seu artigo demonstra que a resposta da direção é que não tem mais para onde ir. A tese do “revolucionário imaginário” é, na verdade, uma autodefesa da marginalidade política como estratégia de sobrevivência. E, nesse sentido, é profundamente conservadora: renuncia à revolução em nome da estabilidade do grupo.

O partido revolucionário não é uma “ilusão”, como diz Arcary. É uma necessidade histórica. A fragmentação da esquerda não é causa, mas consequência da ausência de uma direção revolucionária clara.

A defesa do partido é, justamente, a resposta à crise da esquerda. Ao contrário do que diz Arcary, é possível e necessário construir uma organização com programa, independência e militância. O PCO é a prova disso. E é por isso que, para os derrotados, ele precisa ser invisível.

A verdadeira fantasia é acreditar que será possível enfrentar a crise capitalista e as ofensivas do imperialismo com golpes de DCE. Felizmente, a realidade se impõe. Na crise do regime, enquanto algumas organizações se perdem completamente, quem tem um programa sério e coerente cresce, proporcionando aos revolucionários de verdade, um partido revolucionário real.

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