Bolívia

O que Emir Sader se esquece de contar quando conta votos

Sader não conta que foi Evo quem propôs, legitimou, respaldou e garantiu a vitória eleitoral de novembro de 2020 de um funcionário eficaz mas praticamente desconhecido

— Por José Schulman, publicado no portal Rebelión (traduzido para o português pelo Diário Causa Operária)

Emir Sader, ex-secretário da Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), aguerrido “intelectual orgânico” do governo do Brasil e talvez o representante mais clássico do progressismo chinfrim que acabou estragando o ciclo de governos que houve no começo deste século e do qual só restam de pé Venezuela, Cuba e Nicarágua, dedica quase todo o seu tempo a desqualificar a esquerda revolucionária do continente. Só assim se pode ler sua triste análise sobre as eleições da Bolívia que Página 12 intitula Triste derrota da esquerda na Bolívia.

Emir Sader olha as eleições, conta votos, mas esconde muitas outras coisas.

Diz que a esquerda obteve poucos votos e que o MAS terá a menor representação parlamentar de sua história. Mas não conta que o líder histórico da revolução do bem viver sofreu um golpe de Estado em 2019, que salvou sua vida graças à solidariedade do governo do México (López Obrador) e à decidida atuação do presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández (“Alberto me salvou a vida”, disse Evo Morales ao chegar ao México), que a ditadura de Jeanine Áñez obrigou ao exílio os dois integrantes do Poder Executivo (também García Linera) na Argentina, que houve massacres e presos políticos e que foi Evo quem dirigiu com sucesso a estratégia de resistência que acabou impondo eleições à ditadura, ainda que não tenha conseguido superar a própria proscrição.

Sader não conta que foi Evo quem propôs, legitimou, respaldou e garantiu a vitória eleitoral de novembro de 2020 de um funcionário eficaz mas praticamente desconhecido chamado Lucho Arce, que obteve o acordo de todos os setores sociais que compõem o MAS (que não é um partido tradicional, mas um instrumento político-eleitoral do movimento social), justamente porque todos consideravam que ele não teria nenhuma possibilidade de governar sem o povo, dada sua extrema fraqueza.

Um dia depois de Arce assumir, Evo, acompanhado do já presidente Alberto Fernández e de um enorme conjunto de militantes que sofreram o exílio, cruza a pé a fronteira para se encontrar com uma multidão de partidários em Villazón (aqui está a crônica da BBC de Londres, que não é nem de esquerda nem triste como Emir) e inicia uma turnê comemorativa pelo fim da ditadura e pela retomada do governo pelo MAS, mas rapidamente o rumo de Arce o surpreendeu.

Evo havia vencido as eleições de 2019. Ele e seus quadros mais próximos (Juan Ramón Quintana, por exemplo, passou o ano da ditadura refugiado na embaixada do México para não ser assassinado) haviam conduzido a resistência, mas foram rigorosamente excluídos do novo governo, que se sentiu mais continuador de Áñez do que de Evo. Mas isso Sader não conta, para poder armar seu conto de fadas de uma esquerda debilitada pelo personalismo de Evo e suas ínfulas revolucionárias.

Em julho de 2020, o bilionário nascido na África do Sul, Elon Musk, surpreendeu o mundo ao afirmar que o golpe de Estado havia sido pelo lítio e que “daremos um golpe em quem quisermos, aguente”, conforme escreveu no Twitter. Pois agora se sabe que, pouco depois de assumir, Arce e seus filhos começaram todo tipo de acordos coloniais justamente sobre o lítio. Mas isso Sader não conta (acaso porque no Brasil continuam mandando os mesmos que com Bolsonaro?).

No final de 2023, a situação saiu do controle. Arce, que nunca cumpriu as disposições constitucionais de constituir reservas suficientes nos anos de bonança energética, não consegue recuperar a economia e cede dia após dia frente a um Império que não teve piedade de Evo nem dele.

Quase nada do que Áñez destruiu em um ano havia sido recuperado e, esgotado o recurso energético (Allende dizia que o cobre era o salário do Chile em 1973, Evo poderia ter dito que o gás e o lítio eram o da Bolívia), sem combustível a pobreza se abate sobre o povo, e Arce não faz nada de bom.

Em setembro de 2024, o movimento cocalero, camponês e popular organiza uma grande marcha “para salvar a Pátria”, com uma pauta reivindicativa muito concreta, que será brutalmente reprimida por Arce, dando início a um ciclo de lutas e atos repressivos que incluíram uma tentativa de magnicídio jamais investigada e a prisão de 320 militantes populares, cem deles acusados de violar a lei antiterrorista, em condições brutais e desumanas, tal como denunciou a missão internacional da Coordenadora Americana pelos Direitos dos Povos, que chegou à Bolívia em fevereiro para visitar os locais de detenção em La Paz, entrevistar familiares de presos políticos ali e em Cochabamba e chegar ao Trópico de Cochabamba, onde Evo vive com seu povo, defendido por seu povo.

Juro que perguntamos se o senhor tinha andado por lá, Sader, e nos disseram que não o conheciam, mas não se preocupe: são camponeses cocaleros, gente da esquerda triste, não são alegres como o senhor, e tampouco vivem como o senhor, no Rio de Janeiro; Chimore, nada a ver.

A divisão do movimento popular não é entre os partidários de Evo e a esquerda renovada e alegre que o senhor imagina, mas entre os que defendem os presos políticos e os que os encarceram.

Não é tão difícil, não? De um lado, o carcereiro; do outro, o companheiro. E até o senhor alguma vez esteve do lado dos derrotados. Mas faz muito tempo.

Uma última observação. Não sou evista nem considero que Evo seja infalível. Assim como Correa, ao escolher Lenín Moreno, se equivocou feio, e sobretudo se equivocou na forma de escolhê-lo. Suponho, não conheço muito, que deve ter cometido uma parva de erros, mas não cometeu o erro de negar os presos políticos, nem os torturados, nem os assassinados — e isso me agrada.

Eu gostava do Fidel que não abandona os Cinco presos cubanos nos EUA e recupera o menino Elián, eu gostei que Maduro não abandonasse Saab, e nós não soltamos a mão de ninguém. Não somos como o senhor, que é tão culto mas não conhece o dever elementar dos revolucionários de não abandonar os companheiros nas mãos do inimigo.

Talvez seja isso: o senhor olha para a Bolívia e conta votos, e eu conto companheiros presos políticos. Talvez por isso o senhor não veja os presos, e para mim parece que a história não se esgota em uma urna.

A vida dirá quem tem razão.

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