Em editorial publicado no último dia 10, intitulado Apoio a punição para golpistas traduz maturidade da democracia, o jornal golpista O Globo dá uma excelente lição à esquerda sobre porque a “democracia” não deve ser defendida. Partindo das famosas pesquisas de opinião fabricadas por ele próprio, o jornal apresenta a tese de que a posição imperialista sobre a repressão aos manifestantes do 7 de Janeiro é popular e a proposta de uma lei de anistia não. Ainda assim, o jornal sentencia: “mesmo que houvesse apoio popular (a uma PL anistiando os presos políticos bolsonaristas), trata-se de iniciativa indefensável”, ao que o órgão acrescenta que: “a preservação da democracia depende da punição exemplar àqueles que a violam. Fora do Estado Democrático de Direito, impera o arbítrio.”
Acaso “democracia” deixou de significar “poder do povo”, para significar “punição exemplar do povo”? É claro que não. A “punição exemplar”, em primeiro lugar, é o exato oposto do que significa o estado democrático de direito, um regime político onde o poder de repressão do Estado é limitado pela lei (ou seja, baseado no direito), que, por sua vez, é elaborada pela população, diretamente ou por meio de representantes eleitos (o “democrático” da coisa).
De maneira nenhuma, portanto, é um regime onde um indivíduo ou um grupo de iluminados decidem (com base em interesses próprios) que uma multidão em uma manifestação é criminosa e deve ser punida. Acima de tudo, é um regime baseada em regras e que se aplica principalmente ao Estado, nem tanto ao indivíduo.
Com essa parte esclarecida, “punição exemplar”, ou seja, punição que vá além do que foi legalmente estipulado para determinadas práticas previamente definidas como “crime”, só pode ser parte de uma “democracia” medieval. É uma loucura o que o editorial de O Globo defende.
Descendo com mais resolução no golpe que está defendendo, o jornal continua dizendo que “fora do Estado democrático de direito impera o arbítrio”. Ora, a punição exemplar é exatamente o que está fora do Estado democrático de direito.
Como um ilusionista, O Globo está apresentando a “democracia” como um véu para um regime que é tudo, menos democrático, sendo na realidade profundamente arbitrário. O editorialista do jornal imperialista continua:
“Em julgamentos realizados com amplo direito de defesa, não há por que falar em anistia.”
Se a tese é que julgamentos com amplo direito de defesa tornam a anistia inadmissível, então nenhum processo de anistia no mundo poderia existir — porque, para o regime vigente (independente de qual seja), o sistema judicial sempre parecerá legítimo e garantidor da ampla defesa, uma obviedade que torna o argumento do editorialista uma pérola. Durante a Ditadura Militar, por exemplo (e para ficar em apenas um exemplo famoso), a então jovem militante Dilma Rousseff passou por um julgamento, no qual foi condenada.
Havia um processo legal que garantia o que se entendia por “ampla defesa”, que, naturalmente, era o processo da Ditadura, mas havia. O mesmo se aplicava ao regime nazista: eles perseguiam opositores “dentro da lei”, seguindo regras que eles mesmos haviam imposto. Do ponto de vista deles, o devido processo legal estava sendo respeitado.
Esse argumento, portanto, é uma bobagem sem tamanho. Em qualquer sociedade, é possível que ocorra perseguição política, mesmo com aparência de legalidade (o que geralmente é o caso, diga-se). E é perfeitamente democrático que indivíduos ou setores da sociedade reivindiquem anistia para quem consideram estar sendo perseguido.
Não há nada de ilegítimo nisso. Ao contrário: é autoritário afirmar, como faz O Globo, que não se deve discutir anistia simplesmente porque os processos conduzidos por Alexandre de Moraes garantem o direito à ampla defesa. Negar o debate sobre anistia com base nesse tipo de argumento é que não é democrático — em nenhum lugar do mundo.
Isso, porém, não é tudo. O parágrafo a seguir deve ser lido com muita atenção, sobretudo pela esquerda que insiste em apoiar o terror da ditadura judicial contra os manifestantes bolsonaristas do 8 de Janeiro:
“O vandalismo nem foi o mais grave. Acampados havia dias diante de quartéis do Exército, a multidão irrompeu sobre a Praça dos Três Poderes numa tentativa de incentivar a adesão dos líderes militares ao golpe de Estado. É sobretudo por esse crime que foram punidos.”
Finalmente, O Globo entra no centro da questão. O problema todo não é por algo que os manifestantes fizeram. O problema é o que eles querem.
O que os manifestantes fizeram, no máximo, foram atos que poderiam ser classificados como vandalismo — destruição de objetos, depredações, coisas que ocorrem com frequência em protestos mais radicalizados. Nada disso, no entanto, é importante.
O que realmente incomoda o jornal é a opinião política dos manifestantes. É isso que os mobilizava — e é isso que o órgão de imprensa considera imperdoável.
O jornal diz, de maneira absolutamente explícita: “é sobretudo pelo crime de tentar incentivar militares a dar um golpe de Estado” que os manifestantes precisam ser duramente perseguidos. Ou seja, não se trata de punir ações concretas, mas sim ideias.
Para O Globo, o que justifica a condenação e a pena exemplar não é o que os manifestantes fizeram, mas o que pensavam e desejavam politicamente. É uma punição por opinião — o que, em qualquer definição razoável, é a negação frontal da democracia.
Mais do que isso: trata-se de um apelo direto para que o Estado atue contra um setor da população por conta de sua posição política. E quem faz esse apelo é o mesmo jornal que apoiou a ditadura militar de 1964, que defendeu o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, que apoiou a prisão arbitrária de Lula em 2018 e que agora volta a defender a repressão e a supressão dos direitos democráticos. Essa é a “democracia” do Globo: um regime em que os inimigos da classe dominante devem ser perseguidos por suas opiniões e punidos com “exemplaridade”.
Nesse ponto, é preciso dizer com clareza: O Globo está sendo cínico — mas não incoerente. O jornal está, na verdade, sendo absolutamente fiel ao programa que sempre defendeu, desde quando escreveu que os militares golpistas de 1964 “reestabeleceram a democracia”.
A diferença é que agora, esse programa aparece disfarçado, maquilado com os termos vazios da “defesa da democracia”. Uma palavra que, como fica evidente, pode ser esvaziada a ponto de significar qualquer coisa — inclusive seu oposto.
A esquerda, por outro lado, precisa estar atenta ao que o imperialismo (do qual O Globo é mero porta-voz) realmente está dizendo quando fala em “defesa da democracia” contra os extremistas. A “democracia” em questão é uma ameaça ao povo brasileiro de conjunto e aos inimigos do imperialismo em especial, inclusive na direita, mas principalmente no campo onde estão representados os inimigos mortais da ditadura mundial: a esquerda.