Ailton Krenak foi procurado pelo portal do interior de São Paulo, Acidade On, que preparou uma série em homenagem aos 155 anos da estreia da ópera O Guarani, do compositor campineiro Carlos Gomes. A homenagem é muito válida, já que se trata da mais importante ópera nacional. A escolha de Krenak, no entanto, não fez jus à homenagem; foi, antes de nada, um espaço dado para a depreciação da obra de Carlos Gomes: Ecos de O Guarani: obra de Carlos Gomes é “papo furado” para os dias atuais, diz Ailton Krenak, eis o título do artigo.
Com uma “nova montagem concebida por Krenak”, a ópera foi encenada em 2023 e reencenada este ano no Theatro Municipal de São Paulo.
Este Diário já fez críticas a essa montagem que, na realidade, como foi explicado, trata-se de vandalismo contra a obra de Carlos Gomes. Explicamos que a concepção de Krenak revelou que o pretenso “filósofo-índio” era um inimigo da obra de Gomes e de José de Alencar – autor do romance que elaborou a ópera. As declarações de Krenak para o portal Acidade On têm a virtude de serem mais honestas, mostrando mais abertamente o desprezo de Krenak pela ópera: um “papo furado”, desdenha o “filósofo-índio” ao falar sobre O Guarani.
Antes de explicar as ideias de Krenak na entrevista ao portal, convém algumas palavrinhas sobre o que chamamos de vandalismo cultural. Ao deformar a obra para atender à concepção que ele, Krenak, tem sobre O Guarani, lembrando que sua concepção é extremamente negativa, conforme confessa na entrevista, ele vandaliza a obra como uma pessoa que destrói uma estátua ou um quadro. Não se trata aqui de uma crítica moralista. Por exemplo, poder-se-ia discordar da concepção que motivou alguém a condenar, chegando ao ponto de vandalizar uma obra de arte. Em geral, não é uma ação progressista, já que as obras, boas ou ruins, estão aí pois representam alguma coisa, de algum momento histórico, e são parte da evolução cultural e social de um povo. Não defenderemos a repressão contra um sujeito que vandalizasse alguma coisa, ainda que discordemos da ação.
O caso de Krenak com O Guarani não é simplesmente um problema de concepção. Por trás dessa “concepção” que levou à vandalização da obra, está uma política oficial que incentiva tal ação. Krenak não é um jovem confuso e desinformado, um rebelde que decidiu deformar a obra de Carlos Gomes. Ele foi contratado e muito bem pago para que, em pleno Municipal, realizasse seu vandalismo, sob aplausos da burguesia, basta ver que a maioria da grande imprensa elogia seu feito. Nunca é demais lembrar que o Municipal é administrado por uma Organização Social que, em tese, deveria obedecer à prefeitura de São Paulo, governada por uma direita, o MDB.
Em última instância, quem está financiando e aplaudindo o vandalismo da obra de Carlos Gomes é a burguesia mais poderosa do País. É como se um banqueiro financiasse alguém para arrancar os membros de uma estátua. Não há nada de transgressor nisso; pelo contrário, é muito reacionário. É como Rockefeller mandando destruir o mural de Diego Rivera. Naquele momento, o pintor não podia retratar Lênin, hoje, a coisa é mais disfarçada, mais cínica e pérfida; usa-se pretextos outros. Quais são eles? As ideias identitárias difundidas pelos colonizadores de hoje, o imperialismo. Os que colonizam o Brasil hoje, que mandam na imprensa do País, cinicamente acusam os nossos artistas do passado de serem “elitistas”. A burguesia não tem pudor de mentir e manipular.
Dito isso, vamos à “concepção” de Krenak, apresentada no artigo do portal.
Sobre a montagem da ópera em si, não vamos ser repetitivos aqui. Já explicamos que os elementos introduzidos na montagem empobreceram a ópera. O resultado desastroso está relacionado a como Krenak entende a obra. Ele a despreza e expressa isso abertamente na entrevista dada ao portal Acidade On.
Segundo o “filósofo-índio”, o romantismo “buscava criar uma identidade a partir de um mito fundador da nação brasileira, com um ‘indígena devoto do mundo europeu’”. Nem mesmo nos livros de história do ensino primário poderia haver uma interpretação tão rasa do que foi o romantismo no Brasil. O senso comum escolar é o de que o romantismo brasileiro seria uma espécie de adaptação das novelas de cavalaria medievais, uma ideia não só superficial como errada. Apesar disso, é compreensível que se caia nesse erro, é uma tentativa de explicar o problema através de uma comparação superficial entre o romantismo em geral e o brasileiro. Mas mesmo essa concepção simplista não abre espaço para afirmações como a de Krenak, não há “indígena devoto do mundo europeu”, como ele diz.
Não seria de todo errado dizer que há uma idealização do índio, mas isso não pode ser apresentado como um problema em si. Afinal, como fazer literatura sem idealizar os personagens? Peri, por exemplo, é obviamente um índio idealizado, um herói como há outros heróis na literatura universal. Mas criticar isso é como criticar um romance por contar uma história que não é verdadeira. Ora, estamos falando de literatura ou de ciência histórica ou antropologia? Mesmo estas últimas são passíveis de idealização, afinal, o cientista não está totalmente isento de suas crenças, concepções e ideologias, mas, nesse caso, poderia se apresentar concepções diferentes, críticas.
Mesmo assim, os principais intelectuais do romantismo, José de Alencar está entre os maiores deles, estudaram a fundo a vida e os costumes dos índios para desenvolver sua obra. As obras indianistas do romantismo brasileiro são verdadeiras lições de antropologia, incomparavelmente mais profundas do que as ideias que Krenak apresenta sobre os índios.
Krenak simplesmente inventou a ideia de que os românticos buscavam um “índio devoto do mundo europeu”. O que eles buscavam era a exaltação do indígena, atribuindo-lhe características que exaltam esses povos justamente porque os românticos queriam valorizar a identidade do brasileiro. Assim, o índio tinha atributos maiores e melhores do que os europeus e, consequentemente, os brasileiros eram um povo com uma identidade própria e que superava os europeus. Logicamente que seria legítimo questionar tal idealização, se está correta ou não, mas é até mesmo uma calúnia contra os românticos dizer que eles rebaixavam os índios.
Como prova disso está o próprio Peri. O personagem de Alencar é um homem perfeito – ou quase perfeito se quisermos ser mais precisos. Peri era mais hábil e forte que qualquer outro personagem do romance, sua moral era incorruptível, seu caráter era inviolável. Peri é um verdadeiro herói. A intenção de Alencar era essa, a de fazer de Peri um herói típico, quase sem defeitos. Os grandes heróis são mesmo idealizados, do contrário não seriam grandes heróis, e graças a Alencar o índio Peri é um dos maiores – senão o maior – herói da nossa literatura. Vejam só, o grande herói da literatura brasileira é um índio, não é um branco europeu, não é um burguês, não é um latifundiário, é um índio. Krenak, que se autoproclama grande pensador indígena, trata com desdém esse fato que deveria ser exaltado como um dado revelador de como era progressista o romantismo brasileiro.
A união desse grande herói índio com a moça branca, descendente de portugueses, é o que forma a identidade nacional. É certo que Peri vai se ajoelhar perante a religião e a cultura europeia. Isso pode incomodar os moralistas que acreditam na pureza dos índios, não há problema. Mas isso não pode nos impedir de constatar o óbvio: que a cultura brasileira é uma mistura da cultura indígena, africana e europeia, mas com a predominância desta última, não por inferioridade racial do índio, coisa que não existe, mas porque a cultura europeia, muito mais complexa, se impôs. Essa imposição, no entanto, não impediu a mistura.
Resumir isso tudo a “indígena devoto de europeu” é não apenas uma demonstração de ignorância, mas uma calúnia contra os românticos. E a que serve tal calúnia? Ela serve a propósitos opostos daqueles que diz defender Krenak. A concepção de Krenak, como dissemos, serve para justificar a vandalização de uma das principais obras da nossa cultura. Ao fazer isso, Krenak está agindo em favor daqueles que querem tratar o Brasil como colônia, que querem fazer pouco caso do grande progresso da cultura nacional, dos elementos progressistas de nossa história. E Krenak faz isso, como dissemos, financiado pelos capitalistas. É isso o que explica o vandalismo.
Krenak continua destilando suas calúnias contra a obra:
“Além da história estabelecida a partir do casal principal, a problemática de O Guarani se estende para os outros povos indígenas retratados na obra, conforme destaca o filósofo. ‘Eles são tratados da maneira mais ofensiva. São chamados de bárbaros, de brutos. Toda a caricatura instituída na colônia com relação aos não brancos era agora arremessada contra os nossos irmãos Aymorés’”.
O pretenso “filósofo-índio” quer ensinar a José de Alencar e Carlos Gomes (se eles fossem vivos, é claro) como retratar os indígenas. Mas ele mesmo acaba demonstrando sua total ignorância do assunto. Krenak acredita mesmo que não havia tribos guerreiras e que todos os índios eram pacíficos como hippies dos anos 70. Alencar não apenas sabia dos conflitos entre tribos como sabia quem era inimigo de quem. Mas, à parte tudo isso, não pode o autor da obra retratar uma tribo como inimiga de outra se assim for o desejado para o enredo da história?
Além do mais, basta ler o livro ou o libreto da ópera para ver que os Aymorés, apesar de vilões, não são tratados como simples “brutos”. Os Aymorés têm muito destaque tanto no romance quanto na ópera, embora inimigos dos protagonistas, eles são descritos como um povo de muita virtude e com atributos quase tão perfeitos quanto os de Peri. O caráter de Peri e de todos os índios, mesmo os inimigos Aymorés, contrasta, inclusive, com o caráter da maioria dos brancos, que são corruptos, gananciosos, covardes. Na realidade, o correto não é dizer que os Aymorés são os vilões, os vilões são os ladrões e traidores que acabam levando à destruição da casa do fidalgo português. Os Aymorés estão reagindo contra o assassinato de filhos de sua tribo pelos brancos, ou seja, são um povo guerreiro que exerce seu direito de revolta.
A interpretação de Krenak simplesmente não tem pé nem cabeça. Do mais, qual seria exatamente o problema de colocar esse ou aquele povo como vilão? Essa foi a maneira que Alencar encontrou de contar a história, a única crítica que cabe aqui é saber se o papel dos Aymorés obedece à verdade da obra literária, o resto não passa de análise moralista, não serve para nada.
“‘A narrativa de O Guarani sugere que os indígenas deveriam ter recebido os colonos aqui com flores, convidando eles para nos matar e roubar a nossa terra. Esse papo é muito furado’”, disse Krenak.” Outra demonstração de ignorância do “filósofo-índio”. Basta ler a história para saber que não é assim. O próprio episódio dos Aymorés mostra isso, eles estão atrás de vingança depois de uma injustiça cometida contra seu povo. Pelo contrário, a obra é permeada por uma tensão constante entre o elemento indígena e os personagens brancos. Alencar mostra sua tese de que a formação da nossa identidade vem da união dos dois povos, mas faz isso mostrando os conflitos e contradições.
“Não dava para contar uma história tão falsa daquela”, diz Krenak. Esse sim é um papo furado. Aliás, tudo o que ele fala e fez sobre O Guarani não passa de um grande papo furado. “Falsa” ou não, essa é a história contada por Alencar e pela ópera de Carlos Gomes. Se ele não gosta dela, faça outra, não vandalize a que já existe. No fundo, não fosse o financiamento da burguesia e a bajulação da imprensa, ninguém iria querer saber a sua opinião sobre a obra. Por tudo isso que dissemos acima, percebemos que falso é Krenak: não é filósofo, porque não consegue entender minimamente os problemas da cultura nacional, e nem é índio, porque não sabe nada da história desses povos.