No dia 15 de fevereiro, o jornal O Globo publicou um texto do professor Pablo Ortellado, da Universidade de São Paulo (USP), intitulado Reação ao populismo deve ser contraintuitiva. O artigo, conforme o próprio título propõe, é uma crítica à atual política da esquerda pequeno-burguesa frente ao mal chamado “populismo” – isto é, os movimentos de extrema direita que vêm ganhando força eleitoral em todos os continentes, como o trumpismo (Estados Unidos) e o bolsonarismo (Brasil).
Logo de cara, o texto de Ortellado chama a atenção pela sua sobriedade, contrariando a maioria dos intelectuais que se opõem à extrema direita. Em vez de adotar um tom histérico, o professor da USP considera que a imprensa norte-americana tem adotado um “tom apocalíptico” frente ao trumpismo e diz:
“Ficamos entre assustados e fascinados pela ambição e pela velocidade das medidas de Trump, mas não deveríamos deixar o assombro nos desviar a atenção de sua substância e sentido.”
O que Ortellado diz deveria ser óbvio: as coisas devem ser analisadas pelo que elas são, não pelo que elas aparentam ser. Menos ainda por aquilo que a grande imprensa faz elas parecerem ser. É preciso, portanto, levar em consideração não as manobras do trumpismo, mas sobretudo a sua “substância”.
Continuando a sua análise, Ortellado chegará a uma conclusão muito importante, mas à qual a esquerda pequeno-burguesa tem sido incapaz de chegar: que a sociedade se encontra cada vez mais dividida, polarizada. E que, portanto, essa divisão precisaria ser levada em consideração ao se traçar uma política.
Os identitários, ao ignorarem essa divisão, procuram impor sua ideologia reacionária e impopular ao conjunto da população. O resultado não poderia ser outro: a extrema direita, em vez de diminuir, se radicaliza ainda mais. Assim, a política da esquerda pequeno-burguesa identitária, em vez de combater a extrema direita, joga água em seu moinho.
É neste sentido que Ortellado conclui que:
“Em vez de reduzir as tensões, os progressistas acabam ampliando a percepção de que há uma elite estatal agindo contra a população conservadora, tornando a narrativa populista ainda mais poderosa.”
A crítica de Ortellado, acertada em vários aspectos, causou um mal-estar entre os esquerdistas criticados. No dia 20 de fevereiro, o portal Brasil 247 publicou o artigo Pluralismo ou capitulação?, de autoria do também professor universitário Carlos Vainer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), reagindo à crítica de Ortellado.
Antes de debatermos as poucas ideias apresentados por Vainer, convém explicar que ele, incomodado com as críticas, recorre a um expediente comum do intelectual pequeno-burguês: a distorção das palavras de seu adversário.
Vainer diz que, para Ortellado, “Trump expressa e representa as convicções de importante parcela da população e que seu ‘populismo’ ganha força quando ataca as ‘elites progressistas’ que teriam ocupado o aparelho de estado, impondo ao conjunto da sociedade algo que parcela desta repudia”. Vainer ainda diz que, para Ortellado, “os ‘progressistas’ deveriam abrir mão de posturas que considera intransigentes e aceitar a pluralidade democrática, que acolheria como legítimas as demandas e projetos reacionários das lideranças e bases sociais do trumpismo”.
Da forma como Vainer escreve, indica que, para Ortellado, haveria “elites progressistas”. Trata-se de uma intriga, que tem como objetivo apresentar Ortellado como um direitista, como uma pessoa que acredita que os poderosos seriam pessoas esquerdistas. Em nenhum momento Ortellado diz isso. O que ele diz, com razão, é que a postura da esquerda reforça a campanha da extrema direita de que “há uma elite estatal agindo contra a população conservadora”.
Vainer também distorce a argumentação de Ortellado no segundo ponto. Ele indica que o professor da USP estaria advogando que os “progressistas” abrissem mão de seu programa e adotassem o programa da direita. Ortellado também não disse isso. O que ele disse é que o Estado – e não os “progressistas” – deveria “promover reformas que busquem a pluralidade e o equilíbrio”.
Até aqui, Vainer ainda não apresenta claramente o que defende, mas apenas uma tentativa de substituir o debate com Ortellado por uma campanha baixa, por uma tentativa de “cancelá-lo” com acusações e insinuações de que ele teria uma política oportunista e conciliadora. Essas acusações, no entanto, já revelam um pouco do que Vainer pensa, e de como o que ele pensa é assustadoramente reacionário.
O que Vainer mostra quando se opõe à política proposta por Ortellado é que, para ele, o Estado deve servir como instrumento de opressão ideológica. Isto é, que seria válido, por parte dos “progressistas”, tomar conta do aparato do Estado para impor a sua ideologia ao restante da população. Uma política que – não é necessário muita reflexão para dizê-lo – é tipicamente nazista.
Vainer, por exemplo, se opõe à seguinte declaração de Ortellado: “uma reação mais estratégica, e também mais pluralista democrática, seria os progressistas reconhecerem algumas queixas que alimentam o populismo, reformando as instituições de modo controlado, para que se tornem mais equilibradas e plurais e para que ajam com mais sobriedade”. Se um setor da população tem demandas e queixas, o que seria democrático, esmagá-las ou procurar satisfazê-las? É incrível que Vainer se considere um “progressista” e opte pela primeira opção.
Em sua defesa, Vainer saca do bolso um pretexto. Diz ele:
“Ortellado, porém, parece atribuir aos “progressistas” a rejeição do pluralismo democrático. Ao fazê-lo, deixa de lado a natureza e a vocação da extrema direita, para a qual não há negociações possíveis, mesmo porque os ‘outros’, os ‘progressistas’, os ‘comunistas’ e os ‘ateus’ são o mal personificado, o demônio na Terra. São bem conhecidas as consequências das tentativas de negociação com o fascismo, com Hitler e, na história pátria, dos acordos que líderes de uma direita que se queria democrática pensaram ser possível fazer com os militares golpistas de 1964… e que alguns hoje, tentam fazer hoje com os golpistas de 8 de janeiro de 2022.”
É o velho argumento de que não se pode ser “tolerante” com os “intolerantes”, transformado em teoria pelo anticomunista Karl Popper. Isto é, a teoria que defende que o Estado, em nome da defesa da “democracia”, desconsidere a cidadania daqueles que considere como “antidemocráticos”. Uma política que, também, poderia ser chamada de “nazista”.
No mesmo parágrafo, Vainer faz uma salada para tentar contrabandear a sua defesa do “paradoxo da intolerância”. Ele diz que as “tentativas de negociação com o fascismo” teriam fracassado. Ora, mas em nenhum momento Ortellado propõe, em seu texto, uma “negociação com o fascismo”. Ele simplesmente propõe que o Estado funcione de uma maneira democrática e que a esquerda, para não sumir do mapa, defenda esse tipo de funcionamento.
“Negociar com o fascismo” seria, por exemplo, propor a Donald Trump que não deporte os imigrantes e, em troca, o aborto seja considerado ilegal. Não é nada disso que está sendo proposto por Ortellado.
Mas pode-se dizer, de certa forma, que é o que Vainer propõe. Como o texto dele deixa claro, ele defende que os “progressistas” negociem com o Estado os seus interesses:
“Seria ‘sóbria e equilibrada’ uma justiça que abdicasse de penalizar ou penalizasse mais suavemente golpes de estado, crimes contra direitos humanos e a violência policial contra negros?”
Por trás do linguajar esquerdista, o que Vainer diz é: em nome do combate aos “intolerantes”, é preciso defender que o Estado reprima a extrema direita, como está fazendo com os envolvidos nas manifestações de 8 de janeiro. Essa, sim, é uma negociação espúria. É como quem diz: em troca dos direitos democráticos da população, em troca da presunção de inocência, em troca do devido processo legal, damos ao Estado o poder de prender os nossos inimigos.
É Vainer, e não Ortellado, quem negocia com o fascismo.