José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

O custo real da subjugação financeira

“Como todos os grandes problemas nacionais, a servidão econômica não será enfrentada sem esclarecimento e mobilização da maioria da sociedade”

O Brasil, enquanto um país atrasado economicamente, mas de grande importância em termos de população, PIB e território, sofre de muitos problemas. Um que está no centro do subdesenvolvimento brasileiro, que, ao mesmo tempo, é decorrência do atraso político e econômico do país, e causa deste, é o problema dos gastos com a dívida pública. Por razões históricas, o Brasil cristalizou um arranjo que aproxima o país de uma espécie de servidão financeira, na qual prioridades públicas são rebaixadas diante da estabilidade dos fluxos de renda financeira.

Não há qualquer comparação de país no mundo que gaste tanto com os serviços da dívida pública quanto o Brasil, em proporção do PIB. Os gastos do Brasil com a dívida, por si só, são uma ilustração completa do modelo econômico perverso que vigora no país. Em 2024, segundo o cálculo da Auditoria Cidadã da Dívida, o país gastou R$ 1.996.776.149.754 (quase R$ 2 trilhões) com os serviços da dívida, o que significa um gasto de R$ 5,5 bilhões ao dia.  Os Serviços incluem Juros, Amortização, Refinanciamento ou Rolagem da dívida e outras Despesas financeiras.  

Para termos uma referência do que esse gasto com a dívida pública significa no conjunto dos gastos públicos, no atual escândalo do INSS se estima, com base nos dados apurados até o momento pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que tenham sido desviados R$ 6,3 bilhões, entre 2019 e 2024. É uma estimativa feita pelos membros da CPMI e polícia federal, que corresponde ao desvio total de recursos dos aposentados e pensionistas, num período de 6 anos. Na realidade, o bloqueio judicial até agora chegou a R$ 2,8 bilhões, os R$ 6,3 bilhões são uma estimativa, com base nos dados colhidos até o momento. Sem dúvidas, é uma mega fraude. Mas os R$ 6,3 bilhões, em relação aos serviços da dívida, é praticamente, pouco mais que o gasto de um dia (R$ 5,5 bilhões no ano passado). Os golpistas do INSS roubaram, pela estimativa, R$ 6,3 bilhões entre 2019 e 2024. Os serviços da dívida, nos últimos três anos, como vimos, corresponderam a de R$ 5,5 bilhões diários. Ou seja, um dia e meio de pagamento dos serviços da dívida, cobriria todo o roubo do escândalo atual do INSS.  Essa comparação, se os dados estiverem corretos, mostra o quão absurdos são os gastos com a dívida pública.    

Um gasto de R$ 2 trilhões com serviços, corresponde a cerca de 17% do PIB brasileiro. Não há nada parecido com isso no mundo. Os Estados Unidos gastaram aproximadamente US$ 1,22 trilhão em pagamentos de juros da dívida federal em 2025, representando um aumento de 7% em relação a 2024 (o ano fiscal nos EUA se encerra em 30 de setembro de cada ano). Este montante corresponde a 3,2% do PIB americano, um percentual já bastante significativo do orçamento nacional. A dívida está em US$ 38 trilhões e aumenta US$ 1,8 trilhão/ano. Sem dúvida é um problema gravíssimo, mas o gasto com os serviços da dívida está em um patamar muito abaixo do Brasil, que realmente é um ponto fora da curva. 

Ao contrário do que os setores que ganham muito dinheiro com o esquema querem nos fazer crer, o “problema fiscal” do Brasil são os gastos com a dívida pública. O déficit primário do governo central em 2024, sem gastos extraordinários (dentro do arcabouço fiscal), foi de R$ 11,032 bilhões, 0,09% do PIB. Com gastos extraordinários (incluindo Rio Grande do Sul): R$ 43,004 bilhões (0,36% do PIB). O Brasil não tem um problema de gastos primários em excesso. O Brasil tem um problema de gastos com os serviços da dívida, que consomem quase 43% do orçamento federal. 

O déficit primário acumulado em quatro anos (2021 a 2024) chegou a R$ 255,7, menos de R$ 64 bilhões em média, no período, cerca de 0,55% do PIB de 2024. O resultado nominal, no entanto, que inclui os gastos com os juros da dívida, foi de R$ 1,7 trilhão, média de R$ 443,6 bilhões anuais, equivalente a aproximadamente 3,79% do PIB de 2024. O Brasil não tem problema fiscal por gastar demais com saúde, educação ou previdência, como toda a propaganda dos banqueiros nos quer fazer crer. O problema fiscal do Brasil está diretamente relacionado à dívida pública, sustentada com juros estratosféricos, normalmente os mais elevados do mundo. 

Como a dívida pública no Brasil é um sistema de extorsão de dinheiro público, praticamente todo o debate sobre a questão fiscal, com raras exceções, se dá sobre o resultado primário, ou seja, o resultado que exclui os gastos com a dívida pública. Dessa forma, os quase R$ 2 trilhões de despesas com o serviço da dívida não aparecem no debate, é como se fossem uma obrigação divina, e que não pudesse nem ao menos ser objeto de debate público. Quem controla a grande mídia são grupos econômicos ligados ao setor financeiro, empresas que dependem de publicidade de bancos e capitalistas que investem em títulos públicos. A mídia comercial amplifica narrativas que beneficiam seus proprietários e anunciantes, não a população. Além disso, confunde propositalmente conceitos como: resultado primário e nominal; gastos operacionais com custo da dívida; despesas fundamentais (saúde, educação) com “desperdício”. 

Os gastos com a dívida travam o desenvolvimento e a reindustrialização do país, toda a capacidade de investimento do país é sugada pelos serviços da dívida. Considerando esses gastos, se pode concluir que é quase um “milagre” que o Brasil ainda cresça 2,5% ou 3% ao ano e sustente a posição de 10ª economia do mundo. É possível afirmar que os mecanismos da dívida operam como um “sistema”. São mecanismos de funcionamento complexos e interligados – como a rolagem da dívida, emissão de novos títulos, remuneração de bancos pelo Banco Central e operações de swap cambial – que trabalham de modo articulado e muitas vezes sigiloso. Tais mecanismos, que são compreendidos por um número muito pequeno de pessoas, garantem o crescimento contínuo da dívida e favorecem a transferência de recursos públicos para o setor financeiro.

Outra característica de “sistema” é que a dívida possui mecanismos próprios de reprodução. Mesmo quando o governo gera superávits primários (gasta menos do que arrecada, excluindo juros), o que é bastante comum no Brasil, a dívida segue crescendo, de forma vegetativa. Isso revela que a dívida possui mecanismos financeiros próprios, e não é decorrência de uma suposta irresponsabilidade fiscal ou incapacidade de gestão. Face à evolução da dívida, os governos adotam uma postura de resignação, como se tratasse de um tabu da política econômica, totalmente fora do alcance das ações de governo. 

O dramático é que toda a política econômica no país se adequa às necessidades de honrar os pagamentos da dívida pública. O superávit primário se torna uma obsessão de todos os governos, o que significa cortes em áreas essenciais, seja na erradicação da pobreza, ou nos investimentos em tecnologia. Os governos passam a trabalhar com o que sobra no orçamento. Quantas contrarreformas da previdência social, por exemplo, o Brasil já realizou, em nome do equilíbrio das contas públicas? O salário-mínimo brasileiro, não aumenta significativamente porque “quebraria” a previdência social, já que cerca de 70% dos benefícios da Previdência Social são de um salário-mínimo. Enquanto o setor público gasta R$ 2 trilhões por ano com a dívida, o Brasil gastará no Bolsa Família, R$ 158,6 bilhões em 2025, para atender 50 milhões de brasileiros, quase um quarto da população brasileira. Ou seja, com menos de 8% do que se gasta com serviços da dívida ao ano, o Brasil sustenta o maior programa de transferência de renda das Américas. 

A combinação de alto endividamento (externo ou interno), fuga de capitais, instabilidade cambial crônica, dependência externa das exportações de commodities e políticas de austeridade impostas por credores internacionais, são características tradicionais da servidão financeira. Romper com essa servidão depende de conscientização e mobilização da maioria da sociedade. Não se trata de um embate meramente técnico, é antes de tudo um problema de correlação de forças. Como todos os grandes problemas nacionais, a servidão econômica não será enfrentada sem esclarecimento e mobilização da maioria da sociedade, que paga o preço de todo o processo.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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