Coluna

O capitalismo é inconstitucional

"A militância de esquerda apela para as instituições ditas democráticas, mesmo sabendo que elas promovem a desigualdade e garantem as vantagens das classes dominantes"

Este é o título de um podcast — Armutszeugnis (Atestado de Pobre, em tradução livre) — da Fundação Rosa Luxemburgo, instituto ligado ao partido alemão Die Linke. O episódio foi publicado recentemente na página do instituto na internet e nas redes sociais. O assunto se refere a uma provável inconstitucionalidade, ao menos no plano teórico, do sistema capitalista. A conversa começou girando em torno do Art. 15 da Lei Fundamental, o qual trata da propriedade privada e de sua função (ou interesse) social. O preceito que este artigo da Constituição alemã estabelece é bem semelhante ao da função social da propriedade previsto na Carta dos Direitos Fundamentais da Constituição brasileira.

É tempo de crise do sistema capitalista e, assim, muitos conflitos estão chegando ao seu ápice e, é verdade, a mudança climática também gera convulsões sociais. As propostas liberais, entretanto, sempre apontam para o mercado e ignoram solenemente a equalização social. Neste cenário, a direita cresce a passos largos, o que fortalece os partidos e as ideologias fundadas na tal ditadura do capital travestida de liberdade.

Ao menos o texto constitucional alemão, e também o brasileiro, traz preceitos de socialização como resposta às múltiplas crises — seja quando declara que o reconhecimento da propriedade privada depende da satisfação da função social para a qual ela é destinada, e assim garante o direito à reforma agrária; seja pelos meios de produção e os recursos naturais, os quais devem ser retirados do controle privado e da orientação para o lucro. O objetivo de ambas as Constituições é eliminar a desigualdade social.

Não é necessário um grande esforço exegético para concluir que, tanto no Brasil quanto na Alemanha, a Constituição instaura — ou ao menos deveria instaurar — um Estado Social Democrático de Direito. E o que isto quer dizer, afinal?

No papel e na realidade

A realidade e o ideal jurídico estão contrapostos. A conciliação entre os princípios da liberdade e da igualdade é possível apenas no papel e no plano do idealismo que sustenta o Direito vigente. Isto quer dizer que, por um lado, a Constituição assegura a liberdade e a propriedade e, por outro, assegura a igualdade — o que, materialisticamente, é impossível. São garantias incompatíveis no plano da realidade. Embora os esforços dos juristas para compatibilizá-las sejam tantas vezes sinceros, não passam de puro idealismo. Na realidade, o buraco é bem mais embaixo.

Já se escreveu que o capitalismo é contra a democracia, que a emancipação é impossível no capitalismo, e agora se fala que o capitalismo é inconstitucional. Pelo menos em um podcast. Talvez haja alguma bibliografia no campo do Direito que esclareça a melhor interpretação: aquela que considera o liberalismo — e tudo o que dele decorre — como inconstitucional, ao menos na medida em que é inconciliável com o princípio da igualdade. É neste sentido que a Constituição determina a equalização social como o escopo de todo e qualquer Estado que se diga democrático.

Tanto na Alemanha como no Brasil

A esquerda liberal se rendeu ao liberalismo e foi incapaz, até agora, de propor soluções concretas para as emergências reais. Perdeu-se, em grande parte, no debate acadêmico, no qual a Filosofia, a História e a Sociologia se comunicam, mas o Direito — que também oferece os meios de repressão social — pouco dialoga com as teorias sociais e se mantém firme no idealismo. Embora no Brasil os esforços sejam muito mais significativos do que na Alemanha, onde o conservadorismo anticientífico se confunde com rigor metodológico, a produção intelectual ainda não ofereceu uma visão contemporânea sobre o Direito e seu papel numa sociedade igualitária. Pelo menos não de modo sistemático.

A militância de esquerda apela para as instituições ditas democráticas, mesmo sabendo que elas promovem a desigualdade e garantem as vantagens das classes dominantes. Além disso — e sobretudo no Brasil — essa militância ainda se apoia no ativismo judicial como meio de tentar enfraquecer a direita no campo político. Não por ironia, imiscuir-se o Poder Judiciário na atividade política também é, pelo menos no plano teórico, inconstitucional.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!