Nessa segunda-feira (13), o jornal O Estado de S. Paulo publicou o curioso artigo O STF que o ‘Estadão’ não mostra, escrito pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, em uma tentativa vergonhosa de se defender das críticas diárias sofridas pela corte golpista.
Barroso afirma que o STF “tem três grandes missões: assegurar o governo da maioria, preservar o Estado de Direito e proteger os direitos fundamentais”. É algo que, conforme esperado, ele tirou da própria cabeça. O Supremo não tem “missões”, como se fosse um escoteiro. Ele tem um conjunto de competências, estabelecidas rigorosamente pela Constituição Federal.
A diferença é grande. Uma vez que se estabelece que a “missão” é “preservar o Estado de direito”, qualquer decisão do STF estaria justificada, desde que o seu magistrado jurasse que estaria preservando o Estado de direito, seja lá o que isso signifique. Já a Constituição Federal, por outro lado, estabelece, entre outras competências, que:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente
(…)”
A Constituição deixa claro, portanto, que o STF tem apenas a competência de julgar, e não de criar leis. Pouco importa, neste caso, “assegurar o governo da maioria, preservar o Estado de Direito e proteger os direitos fundamentais”. O que compete ao STF é, quando provocado, e nunca por conta própria, julgar ações diretas de inconstitucionalidade ou julgar, dentro do código de leis estabelecido no País, os conflitos e infrações que estiverem sob sua alçada. A ação direta de inconstitucionalidade, por sua vez, tem como objetivo declarar se uma lei ou ato normativo é inconstitucional, ou seja, contraria a Constituição Federal.
Essa diferença, além de indicar uma grande ignorância acerca da própria Constituição Federal, também revelará um profundo oportunismo jurídico do senhor Barroso, que, como veremos, chegará a conclusão de que o STF não é um órgão de fiscalização, mas sim uma burocracia que pretende governar o País.
Em seu ataque de pelanca ao jornal da Família Mesquita, Barroso diz:
“Naturalmente, toda e qualquer decisão é passível de divergência ou crítica. Menciono algumas referidas nos editoriais. O STF de fato determinou o uso de câmeras na farda em operações policiais militares. Há quem ache que a violência policial descontrolada contra populações pobres é uma boa política de segurança pública. Mas não é o que está na Constituição.”
Novamente, somos obrigados a ensinar Barroso o que diz a Constituição. Não, a Constituição Federal não se presta ao papel de dizer o que é uma boa ou uma má política de segurança. De tão ignorante, o presidente do STF sequer consegue compreender qual é o papel de uma Constituição.
O que o código de leis mais importante do País estabelece é que “às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública” (Art. 144, IV, §5) e que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (Art. III). Portanto, se algum governador implementasse uma medida que autorizasse a polícia militar a torturar as pessoas ou a realizar outra atividade que não a preservação da ordem pública, ou se a assembleia legislativa de algum estado aprovasse uma lei com conteúdo semelhante, o STF poderia, segundo o que diz a Constituição, intervir. No caso do uso de câmeras corporais, não foi o que aconteceu.
Após os assassinatos bárbaros cometidos pela Polícia Militar (PM) na Baixada Santista entre 2023 e 2024, a Defensoria Pública estadual e a Organização Não Governamental (ONG) Conectas Direitos Humanos solicitaram que um juiz obrigasse o governador do estado, Tarcísio de Freitas, a implementar as câmeras corporais nos agentes da corporação. O governador recorreu e conseguiu derrubar a decisão liminar.
Fato é que não cabia ao Judiciário determinar o uso de câmaras. Cabia ao próprio governador adotar a medida ou à Assembleia Legislativa aproar uma lei sobre o tema. A atuação do Judiciário, neste caso, já era uma ilegalidade. Que o caso chegasse ao STF já era, em si, uma aberração. Afinal, não havia ato direto de inconstitucionalidade a ser julgado – a não ser o do juiz que, sem poderes para tal, determinou que o governador implementasse as câmeras.
Ao chegar em suas mãos, Barroso não apenas se meteu no que não era de sua competência, mas ainda aproveitou o julgamento para estabelecer regras para uso obrigatório de câmeras corporais por PMs em São Paulo. Isto é, criou uma lei!
No decorrer de seu ataque de pelancas, Barroso usa vários exemplos de caso semelhante.
“O STF ordenou a elaboração de um plano para o sistema prisional. Há quem ache natural presos viverem sob condições indignas de violência e insalubridade. Mas não é o que está na Constituição.”
Neste caso, a vítima de uma extorsão não foi o governo de São Paulo, mas o governo federal. Também sem ser de sua competência, o STF resolveu obrigar a presidência da República a tomar medidas sobre o sistema prisional. O mais grotesco deste caso é que sequer havia uma ação direta de inconstitucionalidade envolvida. Para aprovar o plano, os doutos ministros sacaram da cartola algo que não é citado pela Constituição em momento algum: “o estado de coisas inconstitucional”. Qualquer semelhança com a ideia de “estado de sítio” não é mera coincidência.
O artigo de Barroso, no entanto, não é uma tentativa inocente de explicar a teoria por trás das aberrações cometidas por ele e seus colegas. É, acima de tudo, uma resposta às críticas que o incomodam profundamente porque a maior parte delas corresponde aos sentimentos das massas – se há uma coisa que unifique hoje o povo brasileiro, é o ódio ao STF.
A primeira defesa de Barroso é ridiculamente infantil. Diz ele: “o Brasil é o país que ostenta o maior grau de judicialização do mundo, o que revela a confiança que a população tem na Justiça. Do contrário, não recorreria a ela”. Isto é, que os dois candidatos a presidente mais bem votados da história do País tenham sido considerados inelegíveis pelo Judiciário, não significa, para Barroso, que a população não respeita minimamente esse poder. O importante seria, vejam só, que o Brasil tem um alto grau de judicialização!
O que o douto ministro não deve ter parado para pensar é que o Brasil é um país extremamente burocrático – e que, portanto, infelizmente, queira o povo ou não, muita coisa só acontece se for feita por meio do Judiciário. Isso não significa que o Judiciário é bom ou que o povo goste dele, apenas que é uma imposição do regime político.
Outra coisa importante a ser levada em conta é que, na medida em que o Judiciário se torna arbitrário e qualquer coisa pode ser esperada dele, ele também se torna um instrumento importante de repressão. Muitas pessoas fazem uso do Judiciário não porque “confiam” nele, mas porque o simples fato de processar alguém, na maioria das vezes, serve para intimidar essa pessoa. Prova disso são os inúmeros processos contra o Partido da Causa Operária (PCO), feitos não por pessoas que “confiam” no Judiciário, mas por pessoas que querem tentar intimidar os militantes do Partido.
Os dois temas mais importantes, no entanto, aparecem de maneira muito disfarçada, tamanha a covardia do presidente do STF. O primeiro deles é o identitarismo:
“Sob a Constituição de 1988, temos 36 anos de eleições regulares, estabilidade institucional e avanço nos direitos de todos os brasileiros, inclusive de mulheres, negros, gays, comunidades indígenas e pessoas com deficiência.”
É como se Barroso dissesse: não critique as nossas lambanças, pois estamos fazendo o direito dos oprimidos avançarem. É uma piada. Nos últimos anos, a situação do povo brasileiro de conjunto apenas piorou, em todos os aspectos. A classe operária viu seu poder de compra despencar, o número de desempregados crescer de maneira assustadora, os direitos trabalhistas irem para o espaço e a aposentadoria se tornar um sonho impossível. É possível levar a sério que houve algum avanço?
Mas o curioso desse trecho é que revela a que serve o identitarismo. Para justificar os ataques ao povo brasileiro, Barroso alega que “mulheres, negros, gays, comunidades indígenas e pessoas com deficiência” tiveram conquistas. E que conquistas seriam essas? As migalhas reacionárias que a burguesia oferece a esses grupos para encobrir os seus ataques contra o conjunto da população. São “conquistas” como o aumento de penas para “feminicídio”, o que causará a desgraça de milhares de famílias. É a equiparação da“injúria racial” ao “racismo”, o que está transformando a defesa da Palestina em crime.
O segundo tema importante é a liberdade de expressão. Ela aparece de maneira discreta em dois trechos:
“Ao longo do período, o jornal não vislumbrou qualquer coisa positiva na atuação do STF ou do CNJ. Faz parte da vida. Parafraseando Rosa Luxemburgo, liberdade de expressão é para quem pensa diferente. Mas o que existe está nos olhos de quem vê.”
“Com plena liberdade de expressão, inclusive para críticas injustas. Sinal de que, mesmo sendo impossível agradar a todos, temos cumprido bem o nosso papel.”
Em vez de um debate sério sobre a liberdade de expressão, Barroso sai com uma tirada: o STF respeita tanto a liberdade de expressão que ele “deixa” o Estadão criticá-lo. Isso, no entanto, não prova nada, a não ser a covardia de Barroso para censurar o jornal da Família Mesquita. A covardia, inclusive, é tão grande que o Estadão, já sabendo que as bravatas de Barroso nada valem contra o jornal, publicou o artigo do presidente do STF.
Para além das tiradas, Barroso deveria responder: onde estava a liberdade “para quem pensa diferente” quando o STF derrubou os perfis do PCO na Internet por criticar Alexandre de Moraes? E quando o STF determinou a prisão de Daniel Silveira pelo mesmo motivo?
Devemos, igualmente, perguntar: qual a posição do senhor Barroso acerca da derrubada do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que tornará a Internet um ambiente de censura total por parte de empresas estrangeiras?
Sobre isso, silêncio total. Afinal, apesar do ataque de pelancas, todo mundo já sabe de que lado Barroso está: o lado da repressão, da censura, do autoritarismo. O lado da ditadura do Judiciário.