O ano de 2025 começou com a premiação do filme Ainda estou aqui nos EUA, onde a atriz Fernanda Torres recebeu o Globo de Ouro por sua interpretação de Eunice Paiva, viúva do deputado Rubens Paiva, morto em sessão de tortura durante o regime militar. A esquerda pequeno-burguesa comemorou a feliz coincidência da premiação com o calendário político: afinal, o dia 8 de janeiro tornou-se uma data a ser lembrada na luta pela “preservação da democracia”.
O governo organizou uma cerimônia no Palácio do Planalto, com a presença de autoridades da República, para anunciar a entrega da restauração das obras de arte que foram destruídas na invasão dos prédios públicos de Brasília em 8 de janeiro de 2023, logo após a posse de Lula. Tida como parte de uma trama golpista que reconduziria Bolsonaro ao poder, a invasão, embora não tenha tido consequências práticas (diga-se que o próprio Bolsonaro estava fora do país), além do quebra-quebra e de acintosas defecações no prédio do STF, simbolizaria uma tentativa de volta da ditadura militar, que teria sido debelada pelas “forças democráticas” do país. Tudo a comemorar, pois. O público foi convocado a participar de um grande abraço democrático: de mãos dadas, manifestantes e autoridades, inclusive comandantes militares, cingiram a Praça dos Três Poderes, em defesa das “instituições democráticas”.
Houve, na esquerda pequeno-burguesa, quem propusesse a criação de um “memorial da democracia”, a exemplo dos memoriais do holocausto que existem em vários locais, nos quais fossem expostas fotografias da invasão e dos atos de vandalismo perpetrados pelos manifestantes. Professores levariam as crianças para conhecer o memorial etc. etc. Poderia mesmo ser uma ideia interessante, mas desde que ampliasse seu escopo, incluindo a ação dessas instituições no âmbito da Operação Lava Jato, do golpe contra Dilma Rousseff, da prisão de Lula – para dizer o mínimo.
Poderia voltar ao golpe de 1964 e ao processo de redemocratização, com as grandes manifestações pelas eleições diretas que desembocaram num acordo entre os militares e o MDB, que levaria ao poder por via indireta Tancredo Neves, o qual morreu sem tomar posse. A democracia se contentou com o vice, José Sarney, velho apoiador da ditadura.
Terminado o primeiro governo civil depois da ditadura, o povo finalmente vai às urnas e elege Fernando Collor de Melo, com o apoio maciço da imprensa e com os truques de edição do debate da Rede Globo, que, nos últimos momentos, tiraram de Lula a vitória. Dois anos depois, Collor é cassado e assume seu vice, Itamar Franco, que leva ao ministério da economia o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, antes perseguido pela ditadura. Com o Plano Real, que enfrenta o problema da hiperinflação, e o apoio da imprensa, FHC assume o poder e recomenda que esqueçam tudo o que escreveu. Governa para a burguesia durante dois mandatos e, num cenário de destruição, finalmente Lula chega ao poder, não sem antes trazer a público sua “Carta ao Povo Brasileiro”, na qual avisa ao mercado que vai manter as bases da política de FHC.
No segundo mandato, Lula consegue avançar em projetos sociais e sai do governo com aprovação maciça. Elege a sucessora, Dilma Rousseff, que, reeleita para segundo mandato, é alvo de golpe de estado, cujo início se deu com um fato pouco lembrado: seu oponente, Aécio Neves, neto de Tancredo Neves, põe em dúvida o resultado das urnas (na época, isso ainda não era crime). Pede recontagem, não se encontra erro, mas o relatório aponta não ser possível saber se houve algum tipo de fraude.
A burguesia muda de estratégia. É preciso derrubar Dilma Rousseff, mas sem tirar a credibilidade das urnas. Com alguma criatividade e muita cara de pau, depuseram a presidente eleita sob o argumento de que ela teria dado “pedaladas fiscais”, prática usada antes dela por todos os governantes e legalizada por seu imediato sucessor, o golpista Michel Temer, seu vice. Em seu curto governo, Temer destrói leis trabalhistas e segue a agenda da burguesia. Enquanto isso, uma certa operação Lava Jato perseguia a esquerda – e, sobretudo, Lula –, sob acusações de corrupção.
Mais uma vez, a imprensa alavanca a perseguição da esquerda. Lula é preso e não pode concorrer à sucessão de Temer. Bolsonaro ganha a eleição com discurso de extrema direita, e o PSDB praticamente desaparece. Sem o controle da burguesia, embora governasse a seu favor, Bolsonaro perde o apoio da imprensa e do mercado financeiro, mas continua forte. Nesse ínterim, Lula sai da prisão, é inocentado e volta ao poder com o apoio de uma “frente ampla”, que inclui vários dos golpistas de 2016, obtendo vitória apertada sobre Bolsonaro.
Como se vê, a democracia brasileira vem caminhando aos trancos e barrancos. Num ato falho, o próprio Lula teria dito, ante a foto de Temer exposta no Palácio do Planalto, que lhe faltava na legenda o atributo “golpista”. Em seu discurso no ato em prol da democracia, parafraseou o título do filme de Walter Salles: “Hoje é dia de dizermos em [sic] alto e bom som: ainda estamos aqui. Estamos aqui para dizer que estamos vivos e que a democracia está viva, ao contrário do que planejavam os golpistas de 8 de janeiro de 2023”.
Parece ter vindo a calhar a associação entre a suposta tentativa de golpe de Bolsonaro e o filme, que, baseado em livro de Marcelo Rubens Paiva, relata a maneira como sua mãe, Eunice Paiva, administrou a família após o desaparecimento de seu pai durante a ditadura instalada com o golpe de 1964. Segundo a Folha de S. Paulo, a premiação do filme teria mostrado ao mundo que “houve uma ditadura no Brasil, que existiu uma mulher capaz de enfrentá-la e que há atrizes a competir em pé de igualdade com a nata de Hollywood”.
O filme mostra a luta de Eunice Paiva para cuidar da família, inclusive sem meios de movimentar a conta bancária do marido desaparecido, cujo atestado de óbito só seria emitido em 1996, 25 anos depois de sua morte sob tortura. O foco da história é a alegria da vida familiar subitamente interrompida pelo sumiço de Rubens Paiva – Eunice, segundo a história contada, nem mesmo sabia da atividade política “subversiva” do marido. Ela também seria interrogada e, assim, tomaria conhecimento da situação.
Em uma das cenas de destaque do filme, um jornalista procura Eunice para fazer uma reportagem e, ao fotografá-la ao lado dos filhos, estranha o fato de todos estarem sorrindo para a câmera. Ele sugere que mostrem expressão grave, o que seria orientação do editor, mas ela insiste em que sua família apareça sorrindo. O gesto foi lido como uma forma de mostrar que a família resistiu à ditadura. Talvez o termo mais apropriado não seja resistência, mas, sim, “resiliência”, a capacidade, tão elogiada no mundo empresarial, de se adaptar à má sorte ou às mudanças.
Em nenhum momento do filme se apresenta o conteúdo político da luta da esquerda. Condenam-se os métodos criminosos da ditadura – perseguições, tortura, morte, ocultação de cadáver –, mas nada se diz sobre o que desejavam as vítimas do regime. A própria Eunice, protagonista do filme, não tem nada a ver com essa luta. Não há elogio dos ideais da esquerda. Fosse um filme “de esquerda”, por óbvio, não teria ganhado o Globo de Ouro. A foto da família sorridente representa uma vitória pessoal, doméstica, que pouco significaria para a luta coletiva pelo socialismo. É como se a protagonista nos brindasse com uma lição de pragmatismo, bem distante do idealismo de jovens que se lançaram na luta armada, pois, afinal, o que importa é tocar a vida, ainda que sob o beneplácito de uma democracia abençoada pelo banco Itaú e pela Rede Globo.