“Sobe lá e chama o pessoal para descer!”
O “lá em cima” era o vão da História da FFLCH-USP, o ano era 2009 e a voz de comando era de Natália Pimenta.
Naquele dia, desde cedo, os estudantes da USP protestavam contra a presença da Polícia Militar no campus. Eram ecos de 2007, quando uma gigantesca mobilização estudantil tomou conta, primeiro das universidades paulistas e logo se espalhando para o Brasil todo – episódio que merece uma história à parte.
Na véspera – ou poucos dias antes, não me lembro –, a PM havia tentado prender alguns estudantes, sabe-se lá sob qual pretexto, ali nas redondezas da FFLCH. A provocação da PM foi respondida espontaneamente pelos estudantes, que cercaram a viatura e exigiram a liberação dos detidos. Derrota para a polícia.
Enfim, depois desse ocorrido, os estudantes marcaram uma manifestação contra a PM. Logo no início do dia, no Portão 1 do campus Butantã, os estudantes se aglomeravam. A ideia era não deixar a PM entrar. A Universidade não é lugar pra polícia, não sei se hoje as pessoas entendem esse problema.
Confesso que não me lembro qual foi o estopim, mas em determinado momento, a PM forçou a barra e os estudantes reagiram. Vendo que não teria como conter a radicalização, a reitoria de João Grandino Rodas e o governo estadual de José Serra chamaram reforços. Chegou a tropa de choque.
Os estudantes não recuaram, enquanto a polícia avançava, com bombas de gás, os estudantes atiravam pedras. Ninguém imaginava que a Tropa de Choque entraria no campus e, pior, atirasse bombas de gás entre os prédios da universidade. Mas foi o que aconteceu!
A Tropa de Choque avançava com bombas, os estudantes revidavam como podiam. Entre os carros que passavam pela avenida principal do campus, as bombas caíam.
Era de propósito! A PM deve ter sido orientada pelo próprio reitor e o governo a macular o ambiente universitário, a mostrar o desprezo por aquele local.
Passamos pela pedagogia, chegamos ao CRUSP. Os estudantes encontram algumas pedras e paralelepípedos de alguma construção que havia por ali.
Eu me perguntava: “até onde a PM vai avançar com essas bombas?”. Foram longe, mais longe do que poderíamos imaginar.
Enfim, os estudantes encontraram o seu último refúgio, a FFLCH, especificamente o prédio da História e Geografia.
Mas as bombas continuaram. Me lembro de correr para o vão da História subindo pelo gramado e as bombas de gás caindo ao meu lado. Jogaram bombas dentro do prédio da História.
A mando do governo do estado e da reitoria, a PM estava disposta a mostrar para os estudantes quem mandava ali. Por isso decidiram jogar bombas até dentro da faculdade.
Essa saga durou o dia todo. Quando chegamos na História, já era fim de tarde. Ali, a perseguição parou. A Tropa de Choque ficou perfilada na avenida em frente ao prédio da História, a ordem era não deixar ninguém entrar nem sair da faculdade.
Os estudantes, que chegavam na história um pouco desorganizados devido à perseguição da PM, voltavam a se agrupar. Nós, militantes do PCO, também nos reagrupamos.
A radicalização daquele dia foi a maior que já vi num movimento de estudantes. Os estudantes se recusavam a sair de perto da polícia. A maioria ficava na avenida, encarando a Tropa de Choque. Nós, do PCO, estávamos lá.
Outra parte, numerosa, porém minoritária, se concentrava no vão da História. Não porque não quisessem descer, mas porque as coisas ainda estavam confusas.
É nesse momento que volto à primeira linha desse texto.
– Henrique, sobe lá e chama o pessoal pra descer! Peguei o megafone, não me lembro qual companheiro foi comigo. No vão da História, entre os que ficaram por ali, começou a se formar uma discussão por parte de grupos da esquerda pequeno-burguesa tentando dissuadir as pessoas a ficarem dentro do prédio e não enfrentarem a PM.
Chegamos: “companheiros, vamos descer, vamos à assembleia lá na rua, em frente à PM, para decidir o que fazer! Não podemos recuar diante da polícia”. A esquerda pequeno-burguesa não queria. Ameaçou-se fazer uma pequena reunião entre os que ali estavam para decidir se desciam ou não, se a tal da assembleia seria ali ou na rua.
Aquele vai-não-vai, aquele chove-não-molha, não deve ter durado mais que 10 minutos.
Imagino que a Natália, lá da rua, percebeu que havia alguma vacilação. Mandou mais alguém subir, com orientação mais decidida. Vendo ali a pequena discussão que ameaçava se formar, totalmente infrutífera e que só serviria para retardar a ação; o companheiro chegou, pegou o megafone da minha mão, e disse: “vamos descer, pessoal, já vai acontecer uma plenária lá embaixo, em frente à polícia”.
Aquela iniciativa mais enérgica provou que o que impedia os estudantes de descer era puramente a confusão gerada pela esquerda pequeno-burguesa.
Aprendi com aquele episódio, coordenado pela Natália, que nos momentos de radicalização, o mais democrático não é discutir, é fazer. Em tais momentos, a discussão não serve para nada além de retardar a ação política. Isso porque a decisão da maioria já estava tomada.
Todos desceram!
Chegando lá, uma multidão de estudantes se concentrava frente a frente com a Tropa de Choque.
A direção do DCE, que não participava efetivamente da luta contra a PM e sequer havia enfrentado a polícia, apareceu. Estavam como baratas tontas porque a esquerda pequeno-burguesa, em particular essa que está mais preocupada em ocupar cargos burocráticos, é como um peixe fora d’água quando há um movimento real, ainda mais tão radicalizado como aquele.
Tontas, as baratas, que pegaram o bonde andando, acharam que sentar na janelinha fosse quase um direito natural seu e que os milhares de estudantes que ali estavam concordariam com isso. Reivindicaram seu “legítimo” mandato no DCE para dirigir a mesa da assembleia.
Nesse momento, apoiada por uma ampla maioria de estudantes, entra em cena novamente a Natália.
Com o megafone, Natália e os demais companheiros da AJR colocam para os presentes que a mesa da assembleia pode ser composta por qualquer estudante e que o DCE não é proprietário de nenhum direito natural sobre o movimento. É feita uma votação muito rápida e toda a massa dos estudantes decidem que a AJR, na pessoa da Natália, iria dirigir a assembleia. Constituiu-se, então, uma mesa coordenada pela Natália e mais dois ou três companheiros, acho que não apenas da AJR, mas companheiros que participaram do movimento.
Sem medo de errar, digo com tranquilidade que foi a assembleia mais democrática que já vi no movimento estudantil.
Democrática pela grande participação dos estudantes. Democrática porque era feita por estudantes que estavam participando no calor de um movimento real. Democrática porque era combativa. Democrática porque a mesa que dirigiu a assembleia era formada por quem estava realmente participando da luta.
Não me lembro bem quantas pessoas haviam naquela assembleia, naquela noite; duas mil pessoas, três mil? Eram muitos estudantes. Estavam ali os que passaram o dia sendo perseguidos pela Tropa de Choque, levando bomba na cabeça, e chegavam de todos os cantos mais uns tantos que, sabendo da repressão, vinham se juntar a nós no enfrentamento com a polícia.
Mesmo diante de uma assembleia tão grande, sob a coordenação da Natália, ninguém deixou de falar, as inscrições não precisaram ser cortadas, assim como o direito de fala de ninguém. Os mini burocratas do DCE, ainda baratas tontas, constrangidos, se inscreviam e falavam, sob algumas vaias e irritação dos estudantes mobilizados que reconheciam neles um atraso político; peleguismo, para dizer o português correto.
Obviamente, não me lembro de tudo o que foi discutido ali. Só me lembro que, diferentemente do que queriam os burocratas, os estudantes decidiram enfrentar a polícia e ficar a noite em vigília na FFLCH até que Tropa de Choque fosse embora.
Dormimos ali. A Tropa de Choque foi embora em determinada hora avançada da noite ou na madrugada.
O resultado daquela mobilização, que era uma continuidade do movimento de ocupação de reitorias de 2007, tema que pretendo abordar em outra ocasião, foi retardar um pouco mais a presença da PM no campus, coisa que hoje, infelizmente, está naturalizada, graças à ausência de um movimento de luta real e à política ainda mais direitista e pelega das direções estudantis.
Para mim e outros companheiros que estavam ali sob a liderança da Natália ficaram lições importantíssimas. Uma delas é que um movimento de luta vai procurar uma política correta quando existe mobilização real. A outra é a da importância que uma ação enérgica tem numa situação política radicalizada.
Naquele dia, a política do PCO, por meio da AJR, expressava os anseios daqueles estudantes mobilizados, e a Natália, por sua vez, personificava a política do PCO. Um partido revolucionário e sua direção são parte do movimento real, não algo oposto e ele.
Éramos todos um só!









