No último dia 21, o portal esquerdista Esquerda Online, da tendência do PSOL Resistência, publicou o artigo Trump e Putin: Paz entre neofascistas e guerra contra os povos oprimidos, traz uma demonstração eloquente da desorientação do órgão quanto ao que é o imperialismo, expresso em colocações como “governos liberais que restam na Europa estão atônitos” com o que chamou de “eixo neo-fascista sionista-americano”, que segundo o autor, Gilbert Achcar, “converge com a Rússia de Putin no seu ódio racial aos povos oprimidos”. Tendo como eixo inicial a reunião entre Trump e Putin na Arábia Saudita para tratar da guerra contra a OTAN na Ucrânia, Achcar diz:
“Agora temos os americanos envolvidos no assassínio de centenas de milhares de habitantes de Gaza a encontrarem-se com os russos envolvidos no assassínio de centenas de milhares de sírios, ambas as partes partilhando com o Estado sionista um desprezo comum pelos direitos territoriais dos povos. Encontram-se no território de um Estado árabe que, se realmente se preocupasse com o destino dos povos sírio e palestino, deveria ter sido tão hostil a ambas as partes que nem sequer lhes teria ocorrido pedir-lhe que acolhesse o seu encontro.”
O teor geral do artigo segue a confusão interessada, difundida em um primeiro momento pelo imperialismo (o real) e amplamente repercutida pelos desorientados órgãos esquerdistas, de que a Rússia seria um país imperialista. O autor não se dá ao trabalho de demonstrar como um país atrasado, que vive da exportação de produtos primários e atualmente, está cercado por bases militares da OTAN estaria no conjunto de nações que engloba apenas e tão somente EUA, UE, Canadá e Japão.
Tal como explicado por Lênin na principal obra sobre o tema, “Imperialismo, a etapa superior do capitalismo”, não é o fato de uma nação invadir outra que torna a invasora “imperialista”. O imperialismo é um fenômeno social e econômico concreto, ligado ao desenvolvimento capitalista, possível apenas, portanto, em países onde o capitalismo se desenvolveu a ponto de começar a suprimir a livre. Trata-se de um fenômeno econômico, político e militar, que implica na ditadura exercida pelos países desenvolvidos (onde o capitalismo desenvolveu ao máximo suas potencialidades) contra os países atrasados, para a manutenção do controle (“imperium”, em latim) dos setores fundamentais do mercado mundial pelos monopólios surgidos nesses países.
Isso dito, qual a participação da Rússia no controle do mercado mundial? Nenhum. Ao contrário dos países desenvolvidos, que se inserem no mercado mundial exportando bens industrializados de alta sofisticação, o gigante eslavo tem sua pauta de exportações marcada por commodities como gás, petróleo, minérios em geral e gêneros agrícolas. É tão “imperialista”, portanto, quanto a Bolívia.
Para manter esse sistema de opressão contra os países atrasados, o imperialismo faz uso de uma infinidade de manobras, incluindo a corrupção de elementos venais das nações atrasadas, para que executem a política dos monopólios nesses países. O Resistência não deve ser ingênuo a ponto de acreditar que um belo dia, alguém como o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso (PSDB) acorda inclinado a desfazer-se da Vale do Rio Doce e das incalculáveis riquezas minerais brasileiras ou ainda, que Jair Bolsonaro tire da própria cabeça a decisão de ceder a base aeroespacial de Alcântara (MA) para os EUA.
Da mesma forma que atuam para manter o Brasil sob controle, apelando para a compra de lacaios dispostos a fazer qualquer loucura, também o fazem na Síria, onde uma oposição ao regime nacionalista de Bashar al Assad foi fabricada com muito dinheiro, para fazer exatamente o que está acontecendo com o país árabe nesse momento, que desde a queda de Assad, sofre com as invasões sionistas e a ameaça de uma balcanização similar à que ocorreu na Líbia, e terminou jogando o país na Idade Média.
Da incompreensão sobre o que é esse fenômeno, o imperialismo, os esquerdistas terminam tratando Rússia e EUA como iguais devido à força militar russa e ao fato de o gigante eslavo ter atuado na Síria apoiando Assad, onde certamente, muita gente morreu, porém, a questão central é saber qual o conflito que se desenvolvia e não quem matou quantos.
A história do mundo não é um conto moral, do bem que não mata e do mal que mata. Fosse esse o parâmetro, o Resistência fatalmente chegaria a conclusão de que a Revolução Russa foi algo extremamente negativa e que um de seus principais líderes, Leon Trótski, não é digno de ser assim tratado, uma vez que ele próprio criou o Exército Vermelho e comandou o enfrentamento contra a Reação, que foi tudo, menos pacífico.
Seriam os bolcheviques fascistas? Claro que não. Ocorre que deixar a Reação vencer poderia sensibilizar algumas consciências religiosas, mas seria desastroso para o conjunto da classe trabalhadora. Basta ver o desfecho de experiências como a Itália fascista, a Alemanha nazista e o Brasil da Ditadura Militar (1964-1985), para se chegar a constatação de que a luta pela libertação dos povos oprimidos necessariamente será cruenta, porém fugir da batalha por considerações pequeno-burguesas será muito pior.
O reacionarismo da posição defendida Achcar no texto publicado pelo Resistência, no entanto, não é gratuito. Ao final do texto, o autor demonstra claramente sua suscetibilidade à influência imperialista, ao dispensar aos regimes europeus o tratamento de “governos liberais”, em oposição ao “neofascismo” de Trump. Achcar chega mesmo a enaltecer o governo Biden em passagens como a abaixo:
“A administração Trump apressou-se mesmo a reverter as medidas limitadas que a administração anterior tinha tomado para desviar as culpas, em particular o congelamento da exportação de bombas de uma tonelada que contribuíram grandemente para a destruição da Faixa de Gaza e o extermínio da sua população. (…) A nova administração ultrapassou a anterior em matéria de unilateralidade sionista com o apelo de Trump à deportação sem retorno dos residentes da Faixa de Gaza, ou seja, à implementação daquilo a que o direito internacional chama “limpeza étnica” – um crime contra a humanidade.”
Basicamente, o autor coloca em segundo plano o apoio decisivo dado pelo governo Biden, as dezenas de bilhões de dólares, a defesa na ONU, a repressão selvagem contra a população norte-americana (em especial os estudantes) em defesa do apoio político ao sionismo, o envio de porta-aviões para apoiar militarmente “Israel”, etc. Importante mesmo, para Achcar, são as bravatas sabidamente irrealizáveis ditas por Trump.
Como as loucuras ditas seriam piores do que as loucuras realizadas é algo que o autor precisaria explicar, já que foge a posição foge à lógica. Exceto se o interesse do autor for defender o imperialismo.
Aí faz todo sentido do mundo tratar “liberais”, no sentido clássico, governos como Starmer no Reino Unido, Macron na França e Scholz na Alemanha, governos que também reprimem manifestações de apoio à Palestina com uma brutalidade digna das ditaduras militares da América Latina. Faz todo sentido também a defesa a Biden, ainda que totalmente fora da realidade.
Não é sinônimo de fascismo enfrentar o imperialismo como faz Putin. As bases da esquerda não podem seguir se confundir e dar crédito a esse tipo de orientação, sob risco de acabar como o autor, ao lado dos piores inimigos dos povos oprimidos do planeta, que devem sim ser enfrentados, não importa o que digam os moralistas pequeno-burgueses.