Política internacional

Nenhum ‘Quarto Reich’ à vista

Mesmo que quissesse, Donald Trump não teria condições de criar um regime fascista à exemplo do nazismo alemão, porque sua tarefa política é muito diferente da tarefa de Hitler

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça, Francisco Calmon publicou no portal Brasil 247 um artigo com o título Dois pontos: 1. a inacreditável perda de 11 pontos do governo Lula; 2. a política porra-louca de Trump, trazendo alguns posicionamentos que merecem um debate mais detalhado, sobretudo quando o autor se põe a analisar a política do presidente norte-americano Donald Trump. Segundo Calmon, Trump seria “o arquétipo em estado bruto do quarto Reich”, o que além de um exagero enorme, reflete a dificuldade de um setor da esquerda em compreender concretamente a ascensão da extrema direita.

Com a mais organizada classe trabalhadora do planeta, a Alemanha chegou aos anos 1930 com a economia debilitada pelos criminosos Tratados de Versalhes e o proletariado exercendo uma forte pressão contra o governo dos monopólios alemães. Nas duas décadas anteriores, em duas oportunidades diferentes (1918 e 1923, os operários insurgiram-se e quase tomaram o poder em um dos mais importantes países imperialistas do mundo, influenciados pela Revolução Russa, que, em 1917, derrotara o imperialismo e instituíra na gigante nação eslava o primeiro Estado operário da história.

É contra essa organização e a agitação constante dos trabalhadores que o imperialismo alemão se vê na situação em que o remédio amargo, por pior que seja, é melhor do que a doença, recorrendo então à experiência italiana liderada por Benito Mussolini para impedir que a revolucionária década de 1930 contagiasse o proletariado alemão. Um regime político de guerra civil contra os trabalhadores era necessário e o fascismo italiano fornecia o modelo sobre como concretizar a complicada tarefa de desorganizar a poderosa classe trabalhadora de um país.

Quase cem anos depois, qual agitação significativa produzida pelos trabalhadores para que o mesmo fenômeno se desenvolva? Colocada em uma situação defensiva após os anos 1990, a classe trabalhadora ainda não é uma ameaça ao sistema imperialista. Pode vir a ser em um futuro mais ou menos próximo, mas, nesse momento, não é o que está posto.

Por outro lado, no interior da burguesia, existe a seguinte contradição: os monopólios norte-americanos e europeus transferem suas bases produtivas para países atrasados e ao fazê-lo, enfraquecem a economia local dos respectivos países. Para uma Ford, faz todo sentido do mundo transferir suas fábricas para o México e, de lá, vender seus automóveis no mercado mundial a um custo muito menor do que se produzido pelos caros operários norte-americanos. O problema com a operação é que, ao fazê-lo, a montadora fecha fábricas nos EUA e demite algumas dezenas de milhares de operários, que, ao empobrecem, terão seu poder de consumo reduzido, com impacto nos negócios locais, como a construção civil, da qual Trump faz parte.

Este é apenas um exemplo, mas, via de regra, os negócios de menores, nos quais ainda há alguma concorrência e não se estabeleceu um monopólio, são o setor da burguesia que sofrem com a política imperialista. Pagam por ela quando uma Exxon Mobil e uma Chevron se unem aos monopólios da indústria bélica como Lockheed Martin, Boeing, Northrop Grumman e Raytheon Technologies para dominar o Oriente Médio, torrando mais de US$1 trilhão, mas não recebem nada em troca, ou pelo menos, nada de positivo, uma vez que as guerras imperialistas têm como resultado o aprofundamento acentuado da pobreza do povo norte-americano.

Esse é o conflito que impulsiona a extrema direita, nos EUA e nos países mais desenvolvidos, incluindo países atrasados como o Brasil, onde uma burguesia local destruída pelo neoliberalismo, tenta resistir ao imperialismo apoiando uma extrema direita. O que realmente ameaça a integridade do imperialismo são as contradições internas da burguesia, e não os trabalhadores. Isso posto, é preciso lembrar que ditaduras fascistas só foram possíveis na Itália de Mussolini, na Alemanha com Hitler e mesmo no Brasil com a Ditadura Militar (1964-1985) porque longe da cisão atual, a burguesia da época se uniu nesses países, com o imperialismo apoiando a operação para que o regime de guerra contra os trabalhadores fosse possível.

Ainda, é fácil perceber a incongruência dessa concepção, de que o trumpismo “tem características semelhantes” ao nazismo, uma vez que toda a agitação política da extrema direita tem como alvo o que sua base social chama de “globalismo”, fenômeno que une a ditadura exercida pelos países imperialistas e o livre trânsito de capitais para os barões das finanças. Além do globalismo, outro inimigo destacado da extrema direita é política social conhecida como “woke” nos países anglófonos, ou, identitarismo no Brasil. Todas elas, ditadura imperialista, neoliberalismo e identitarismo, políticas centrais do imperialismo.

Talvez sem se dar conta do fato, o próprio Calmon destaca que “a política protecionista de Trump é um retrocesso”. Primeiro que para um país como o Brasil, o protecionismo norte-americano pode causar algumas dificuldades iniciais, mas tende a estimular a retomada da industrialização, como já visto no começo do século XX. Segundo e mais importante, o protecionismo é frontalmente contrário ao neoliberalismo preconizado pela ditadura dos monopólios. A barreira à entrada de importados vai de encontro à política da indústria imperialista, de transferir a matriz produtiva para países onde o custo do trabalho é menor, e exportá-las para o amplo mercado mundial.

Trata-se de uma contradição fundamental, que coloca os protagonistas do que seria a organização de um “quarto Reich” em uma crise interna, impossibilitando a operação. Por outro lado, dado que a iniciativa está com o trumpismo e o setor atacado é justamente o mais poderoso, e mais capaz de organizar uma ditadura fascista, quando setores da esquerda se deixam levar pelas impressões causadas por declarações bombásticas como as que caracterizam o falastrão Donald Trump, o que fazem concretamente, é apoiar o imperialismo, ajudar a ditadura mundial em sua batalha interna contra quem está criando os maiores problemas para o verdadeiro fascismo.

Consciente disso ou não, Calmon e os setores da esquerda que por ele se expressam estão apoiando uma máquina de horror, que submete países e continentes inteiros, bombardeando a humanidade e pirateando o planeta inteiro, inclusive os trabalhadores dos países desenvolvidos. Toda a batalha pelas liberdades democráticas, por outro lado, não vem de outro fenômeno, mas do interesse desse setor mais frágil da burguesia norte-americana e europeia em ter condições de combater politicamente o imperialismo que os oprime e para esconder a catástrofe que causam, se esforçam para criar uma censura em escala mundial, cinicamente apresentada como “defesa da democracia”.

A esquerda não deve ter ilusões com Trump e ninguém da burguesia, porém endossar a propaganda do seu setor mais poderoso e monstruoso é um equívoco enorme, que só irá desmoralizar a própria esquerda. É um erro se deixar levar pela propaganda imperialista de que Trump, Musk e cia são nazistas, até porque foi o imperialismo que criou o nazismo e voltará a usá-lo se preciso, como demonstra o genocídio do povo palestino. A grande tarefa da esquerda é, em primeiro lugar, compreender o fenômeno social que se opera com o trumpismo e usar suas próprias contradições (finalmente, é um político burguês que não terá condições de levar adiante a luta contra o imperialismo) para fortalecer a política própria da esquerda, de defesa dos interesses dos trabalhadores, estudantes, camponeses e de todos os povos oprimidos.

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