O artigo Mitos sobre erros e acertos do STF, de Maurício Rands, publicado nesta segunda-feira (28) pelo Brasil 247, traz em si graves problemas: mascara o que seriam os tais “erros” do Supremo Tribunal Federal (STF), deixando de lado a questão de que sejam, de fato, erros. E, finalmente, ignora as implicações desses supostos “desvios”.
No início de seu longo primeiro parágrafo, Rands alega que “uma parcela da opinião pública erigiu o STF em ‘inimigo público ficcional’, na expressão do jurista Georges Abboud”. Segundo o jurista, setores da política nacional — sobretudo da extrema direita brasileira — passaram a eleger o Judiciário, e em especial o STF, como um inimigo fictício, culpando-o por todos os supostos males e frustrações coletivas.
A realidade contesta essa tese. Em 2019, por exemplo, Alexandre de Moraes prejudicou a categoria dos enfermeiros ao suspender trechos de uma lei estadual do Rio de Janeiro (Lei 8.315/2019) que instituía jornada reduzida de 30 horas semanais para auxiliares, técnicos e enfermeiros, associada ao piso salarial da categoria. Moraes promoveu o afastamento legal da jornada de 30 horas, o que manteve o patamar padrão de até 44 horas semanais e negou benefícios trabalhistas prometidos à categoria.
A Lei nº 14.434/2022, sancionada em agosto de 2022, criou o piso salarial nacional da enfermagem: R$ 4.750,00 para enfermeiros; R$ 3.325,00 para técnicos de enfermagem; e R$ 2.375,00 para auxiliares e parteiras.
Em 4 de setembro de 2022, Alexandre de Moraes suspendeu os efeitos da lei por meio de uma decisão liminar em ação movida pela Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde).
Como resultado, houve perda salarial imediata: enfermeiros que já aguardavam o novo piso deixaram de receber os valores previstos por vários meses. Diversos hospitais e governos estaduais/municipais suspenderam ou postergaram pagamentos, baseando-se na liminar de Moraes.
Em maio de 2023, o STF autorizou a retomada do piso, mas com flexibilizações, permitindo que acordos coletivos reduzissem os valores ou adaptassem os pagamentos por meio de negociações, o que prejudicou o ganho integral dos profissionais em vários estados.
Para a categoria dos enfermeiros — e este não é o único caso —, o STF não é um inimigo “ficcional”, mas real, palpável. Todo enfermeiro, assim como a população em geral, olha para esses magistrados, que recebem salários estratosféricos, e vê que não pensam duas vezes antes de prejudicar setores inteiros da classe trabalhadora, ignorando o fato de que foram necessárias décadas de lutas para se conseguir estabelecer um piso.
A questão Bolsonaro
Rands, ainda no primeiro parágrafo, diz que o governo Lula não está em conluio com o STF, mencionando a “decisão de Alexandre de Moraes em 18/07/25, ratificada pela 1ª Turma, que determinou medidas cautelares contra o ex-presidente Bolsonaro”.
A alegação de Maurício Rands é a de que “a aprovação de Lula vinha se recuperando” em função de um suposto “debate sobre justiça tributária que se seguiu à rejeição do Congresso Nacional a medidas propostas pelo governo para combater supersalários, tributar super-ricos e reduzir o desequilíbrio fiscal com receitas tipo IOF”. O que se vê, no entanto, é que a política tributária do governo é amplamente rejeitada.
Quanto ao aumento da aprovação de Lula após as ameaças de Trump em sobretaxar os produtos brasileiros por conta da perseguição judicial a Bolsonaro, mesmo que isso seja uma realidade, a resposta do governo ainda não obteve sucesso e precisa ser contundente para ter efeito duradouro.
Também é verdade que “a reação pífia e subserviente de oposicionistas como os governadores Tarcísio de Freitas e Romeu Zema, ou de senadores como Flávio Bolsonaro, foi mal digerida pela sociedade”. No entanto, a burguesia ainda não decidiu se apostará em um desses nomes para a próxima corrida eleitoral.
Apesar das arbitrariedades contra Bolsonaro — como a proibição de postar em redes sociais —, Rands acha “difícil imaginar conluio com o STF, que tomou medidas que não eram do interesse estratégico do governo”.
O governo pode não estar em conluio com o Supremo; porém, ao insistir em não se apoiar nas bases populares, acaba tendo que se aliar a essa corte, o que é um erro grave. Ao recorrer ao STF para arbitrar questões com o Congresso, o governo Lula está fortalecendo essa instituição, que se transformou em um verdadeiro Poder Moderador, atropelando atribuições tanto do Legislativo quanto do Executivo.
E o amplo direito de defesa?
No segundo parágrafo, Rands diz que “uma segunda linha de acusação imagina que o STF invariavelmente decide sem respeitar a legislação processual e as garantias fundamentais” — o que é evidente, basta citar a intimação feita ao ex-presidente na UTI, o que viola o Código de Processo Penal, além de desrespeitar orientação médica.
A defesa de Bolsonaro ressalta o cerceamento de acesso às provas, a quebra da imparcialidade do relator e do “juiz de garantias”, além de questionar a competência e o foro de julgamento, a “pesca probatória” e as nulidades processuais.
Os advogados não tiveram acesso integral aos elementos coletados durante a investigação — como mídias e dados de celulares — e receberam apenas fragmentos selecionados. Argumentaram que o ministro Alexandre de Moraes deveria ser impedido de continuar relator do caso, por supostamente estar em posição híbrida de vítima e julgador, o que comprometeria sua imparcialidade, e reivindicaram a adoção do juízo de garantias, previsto no ordenamento jurídico — ou seja, que outro magistrado conduza a investigação, preservando a neutralidade do julgamento.
A defesa também sustenta que o caso não deveria tramitar exclusivamente na 1ª Turma do STF, mas ser apreciado pelo Pleno (os 11 ministros), dada a gravidade dos fatos e o envolvimento de um ex-presidente. Esse formato ampliaria o colegiado, garantindo maior controle institucional.
Considerando o descrito acima, não se pode aceitar que seja “difícil enxergar atropelo processual”, visto que o processo tem vício de origem.
Freio em Moraes
Segundo Maurício Rands, “Alexandre de Moraes, em decisão de 21/07/2025, incorreu no erro de advertir o réu e pedir esclarecimentos, sob pena de prisão preventiva, diante de uma entrevista e sua viralização. (…) Mereceu a crítica de que estaria cerceando o direito de expressão do réu Jair Bolsonaro, como fizeram os juízes de Curitiba contra o presidente Lula em 2018, em decisão depois revertida pelo STF. Erraram os juízes em 2018 e errou o ministro Alexandre de Moraes em sua decisão de 21/07/2025, porque os réus não perdem o direito fundamental de livre expressão”.
A pergunta que fica é: por que Bolsonaro está proibido de utilizar redes sociais, se não perdeu seu direito fundamental de livre expressão?
É preciso lembrar que não foram apenas os juízes de Curitiba que impediram Lula de dar entrevistas. Em 28 de setembro de 2018, o ministro Ricardo Lewandowski havia autorizado que Lula concedesse entrevistas, mesmo estando preso. Na noite do mesmo dia, Luiz Fux suspendeu essa liminar, alegando risco de que a divulgação da entrevista, tão próxima da eleição, pudesse causar “desinformação ao eleitorado”, e mandou suspender também qualquer conteúdo já gravado com Lula, proibindo sua publicação sob pena de crime de desobediência.
Essa decisão foi mantida pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, apesar de novos pedidos de Lewandowski. Apenas em abril de 2019, com Bolsonaro devidamente eleito, Toffoli revogou a decisão de Fux, permitindo que Lula concedesse entrevistas na prisão.
Erros apenas?
No final de seu texto, Maurício Rands diz que o STF, em algumas questões, tem acertado mais do que errado e, em outras, errado mais do que acertado. É como se a vida fosse assim mesmo: às vezes se acerta, outras vezes, não.
Em 2018, o STF estava apenas “errando” ao proibir Lula de conceder entrevistas? Não. Aquilo era a continuação do golpe de Estado dado em 2016, “com Supremo, com tudo”.
Os “erros” dessa corte têm impactado na qualidade de vida de quase um milhão de trabalhadores da enfermagem, em favor de seus patrões. O golpe continuado de 2016/2018 jogou milhões de trabalhadores no desemprego, na fome e na miséria.
As arbitrariedades dessa corte violam a Constituição, como no caso do direito à liberdade de expressão. No Brasil, instituiu-se uma ditadura judiciária que, dentre muitos desmandos, impôs a censura prévia.
Não se pode, de maneira nenhuma, tratar as ações do STF como se fossem algo do dia a dia. Mesmo porque um golpe de Estado é muito mais do que um “erro”: é caso pensado.





