Liberdade de expressão

Moraes admite papel contrarrevolucionário da censura à Internet

Ministro do STF foi entrevistado e bajulado por publicação norte-americana

No dia 7 de abril, The New Yorker, uma das principais revistas da imprensa imperialista mundial, publicou uma longa reportagem sobre Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O texto, intitulado O juiz brasileiro que está enfrentando a extrema direita digital, é assinado por Jon Lee Anderson e contém várias declarações de Moraes, obtidas após uma sequência de conversas no Brasil.

Desde o primeiro parágrafo, a reportagem mostra que seu objetivo é promover a defesa das instituições do Estado brasileiro:

“O Supremo Tribunal Federal do Brasil, um edifício de vidro com colunatas curvas, está situado próximo ao Congresso Nacional e ao Palácio Presidencial, em uma vasta área pavimentada conhecida como Praça dos Três Poderes. Em 13 de novembro, um homem de meia-idade vestido como o Coringa estacionou próximo ao tribunal, caminhou alguns passos e detonou um dispositivo explosivo improvisado dentro de seu carro, criando uma bola de fogo que se elevou acima do pavimento. Ele então se dirigiu à frente do tribunal, onde uma escultura de Justiça vendada segura uma espada no colo. O homem retirou um pano de uma mochila e o lançou na estátua, aparentemente tentando incendiá-la. Quando os seguranças se aproximaram, ele lançou mais duas bombas contra o edifício e abriu o casaco para mostrar que estava usando um colete suicida. Enquanto os guardas observavam, ele deitou-se em frente à estátua e acionou outra explosão, que ecoou pela praça, matando-o, mas deixando a escultura ilesa.​”

O caso mencionado por Jon Lee Anderson é único e ocorreu em 2024. Isto é, muito depois da manifestação de 8 de janeiro de 2023, que é o grande tema da reportagem. Sua citação, no entanto, busca estabelecer um clima inexistente no Brasil – o de que as instituições brasileiras estariam constantemente ameaçadas por ataques violentos.

Além da defesa das instituições do Estado, a reportagem tem o objetivo de vincular estes ataques ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). E não é para menos. Alexandre de Moraes se tornou uma espécia de símbolo mundial da perseguição judicial ao líder da extrema direita brasileira, uma vez que era presidente do TSE durante as eleições de 2022 e que é o relator do processo contra os manifestantes do ato de janeiro de 2023 no STF.

A intenção de vincular Bolsonaro a ataques violentos ao STF fica clara no seguinte trecho:

“Na atmosfera política febril do Brasil, o suicídio público de Wanderley inevitavelmente teve implicações partidárias. Os investigadores descobriram que ele já havia se candidatado, sem sucesso, a vereador, como membro do partido dominado pelo ex-presidente de direita Jair Bolsonaro. Por vários anos, Bolsonaro se envolveu em uma disputa feroz com o Supremo Tribunal Federal — e particularmente com Alexandre de Moraes, um juiz combativo que às vezes é descrito como o segundo homem mais poderoso do Brasil.”

Ser do mesmo partido de Bolsonaro não quer dizer absolutamente nada – nem em termos jurídicos, nem em termos políticos. Em 2018, um homem chamado Adélio Bispo foi preso sob a acusação de ter esfaqueado o ex-presidente, que, naquela época, concorria pela primeira vez ao mais alto cargo do Poder Executivo do Brasil. Bispo havia sido filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), mas nem mesmo os apoiadores de Bolsonaro acusaram o partido de esquerda de ter encomendado o seu assassinato.

Associar Bolsonaro com pessoas que possam ter cometido algum crime é parte do método seguido pelo próprio Alexandre Moraes e pelo conjunto do Judiciário. Afinal, o ex-presidente se tornou réu em um processo no qual não é apresentada uma única prova contra ele. Em vez disso, são apresentados fatos desconexos e relações com terceiros que, segundo a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), teriam cometido crimes.

Seguindo o mesmo método, The New Yorker apresenta uma série de acusações contra Bolsonaro, como se estas provassem uma conduta criminosa do ex-presidente:

“Enquanto os apoiadores de Bolsonaro formavam ‘milícias digitais’ que inundavam a internet com desinformação — alegando que oponentes políticos eram pedófilos, espalhando mentiras descaradas sobre suas políticas e inventando conspirações —, Moraes lutava para tirá-los do ar. Com poderes especiais concedidos pelo Judiciário, ele suspendeu contas de parlamentares, magnatas e comentaristas políticos por postagens que descreveu como prejudiciais à democracia brasileira. Seus detratores o chamaram de tirano e autoritário, alegando que ele estava violando seus direitos. No outono de 2022, Bolsonaro concorreu à reeleição contra Luiz Inácio Lula da Silva, um veterano político que foi o pilar da esquerda brasileira por décadas. Bolsonaro insistiu durante toda a campanha, sem provas, que falhas de segurança nas urnas eletrônicas possibilitaram a fraude eleitoral. Em determinado momento, ele alertou: ‘Se for preciso, iremos à guerra’. Após a posse de Lula, uma multidão de cerca de 4 mil apoiadores de Bolsonaro se reuniu na mesma praça onde Wanderley se explodiu. Num acesso de raiva, eles destruíram o Supremo Tribunal Federal, o legislativo e o palácio presidencial — uma reprise assustadora do ataque ao Capitólio dos EUA dois anos antes.”

Após uma longa introdução que serve, na verdade, para reforçar a denúncia da PGR contra Bolsonaro, o redator da revista norte-americana ainda procura apresentar Moraes como uma pessoa humilde, em uma clara demonstração de bajulação: “Moraes raramente fala com jornalistas, mas concordou em se encontrar comigo para falar sobre o que ele chama de ‘o novo populismo digital extremista'”.

Como todos sabem, é uma mentira. Moraes constantemente usa a imprensa para complementar as suas ações no tribunal. Afinal, é preciso algum apoio na opinião pública para atropelar a Constituição Federal, como ele faz constantemente. Moraes não apenas dá entrevistas, como vaza partes de investigações que ele mesmo declara sigilosas e vive em palestras e eventos públicos.

A bajulação aparece em outros trechos, como a seguir:

“Os brasileiros costumam se referir a de Moraes como Xandão, ou Big Alex, mas ele não é especialmente alto. No entanto, ele é notavelmente em forma; corre, levanta pesos e treina com um parceiro de Muay Thai várias vezes por semana. Aos 56 anos, ele tem a cabeça raspada e um rosto que parece feito para interrogatório, com uma testa grossa, maçãs do rosto salientes e um queixo proeminente. Ele encara sem parecer se importar se está sendo rude.”

Após uma longa introdução de Jon Lee Anderson, somos enfim apresentados às declarações de Moraes a The New Yorker.

“Em sua opinião, a briga pela internet começou há uma década e meia. ‘A extrema direita percebeu, durante a Primavera Árabe, que as mídias sociais podiam mobilizar pessoas sem intermediários’, disse ele. ‘No início, os algoritmos foram aprimorados para fins econômicos, para cativar os consumidores. Depois, as pessoas perceberam como era fácil redirecionar isso para o poder político’.”

É uma forma muito interessante de iniciar o debate sobre o uso das redes sociais. Segundo o próprio Moraes reconhece, o primeiro grande evento político mundial no qual a Internet teve uma grande influência foi uma revolução! E uma grande revolução, que se espalhou por todo o Oriente Médio. A Primavera Árabe provou que a Internet, enquanto recurso tecnológico, é capaz de impulsionar grandes lutas, como a que derrubou a ditadura egípcia, um dos mais importantes e industrializados países da região.

A grande lição a ser extraída da Primavera Árabe acerca da Internet é que, quanto mais livres forem as redes sociais, mais elas permitirão que as pessoas se organizem contra o poder vigente. Afinal, em uma situação revolucionária, tudo aquilo que facilitar a comunicação entre as massas acelera o processo insurgente.

O que seria, nos dias de hoje, a Primavera Árabe? Ora, seria a utilização das redes sociais para promover grandes mobilizações contra o genocídio na Faixa de Gaza. Em grande medida, um dos obstáculos a essas mobilizações é a política de censura nas redes sociais, que impede que elas sejam utilizadas devidamente para a denúncia e para a reunião dos defensores da Palestina.

Pelo próprio exemplo fornecido por Moraes, fica patente que a ideia de regulamentar a Internet serve à contrarrevolução. É uma ideia criminosa, que tem como objetivo dificultar a mobilização contra a ordem imperialista.

Para disfarçar o caráter contrarrevolucionário de sua declaração, Moraes saca da cartola o velho espantalho do nazismo.

“Ele apresentou as mídias sociais como uma força definidora do nosso tempo. ‘Se [Joseph] Goebbels [ministro da Propaganda da Alemanha Nazista] estivesse vivo e tivesse acesso a X, estaríamos condenados’, disse ele. ‘Os nazistas teriam conquistado o mundo’.”

É um argumento canalha. As redes sociais já existem há mais de duas décadas. Elas são utilizadas por todos os setores da sociedade, incluindo a extrema direita. No entanto, nada realizado pela extrema direita na Internet, mesmo sendo ela muito mais rica que o movimento operário, chegou perto da grandeza da Primavera Árabe.

Também é preciso refutar Moraes explicando que os nazistas conquistaram, sim, o mundo. Não os nazistas alemães, mas os nazistas dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França. Os chamados “aliados” assimilaram as práticas criminosas desenvolvidas pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano e aplicaram-nas em todo o mundo, a exemplo da própria ditadura militar brasileira.

A questão é que, se as redes sociais permitirem um fluxo livre de informações, os oprimidos poderão expor as conspirações realizadas pelos poderosos. Poderão fazer circular os vídeos de crianças mutiladas na Faixa de Gaza – isto é, os vídeos que retratam o nazismo. O bloqueio à Internet cria as condições ideias para que o fascismo se imponha.

O que será que contribuiria mais para a luta mundial contra o nazismo e o fascismo: que a classe operária internacional acompanhasse em tempo real o que acontecia na Alemanha e na Itália; ou que ela dependesse apenas das informações exportadas pela burocracia contrarrevolucionária stalinista? O que teria sido mais efetivo: que Leon Trótski, o homem que mais alertou a classe operária internacional para o problema do fascismo, pudesse fazer suas ideias se espalhar com um “clique”; ou se dependesse de redes clandestinas para que suas ideias chegassem em publicações impressas?

Continuando o festival de declarações grotescas, Moraes diz que a extrema direita quer tomar o poder — não dizendo que se opõe à democracia, porque isso não obteria apoio público, mas alegando que as instituições democráticas são fraudadas”. Segundo ele, isso seria um populismo altamente estruturado e altamente inteligente”. Certamente, a estratégia da extrema direita é mais inteligente do que dizer que o nazismo foi derrotado porque Adolf Hitler não investiu no Facebook. Contudo, o que chama a atenção é a ideia de que a “extrema direita quer tomar o poder” mas sem dizer “que se opõe à democracia”.

Ora, ninguém que quer tomar o poder diz que se opõe à democracia, no sentido em que Moraes quer dizer. Os militares que comandaram uma ditadura de 21 anos no Brasil deram um golpe em nome da “democracia”. Neste sentido, não há novidade alguma.

O que é mais curioso é que a afirmação de Moraes, além de estúpida, é uma intriga. O juiz acusa a extrema direita de “se opor à democracia”, sendo que, de uma maneira geral, as lideranças de extrema direita estão chegando ao poder por vias democráticas e não estão realizando nada de especial no que diz respeito ao fechamento do regime. Donald Trump, por exemplo, se tornou presidente porque ganhou uma eleição. E, até agora, não propôs fechar o parlamento, nem nada parecido. O mesmo pode ser dito do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A intriga de Moraes serve para ocultar o que há de verdadeiramente democrático no mundo. Nos países controlados pelo imperialismo, os regimes estão se tornando cada vez mais autoritários. Estão destruindo os direitos democráticos da população, estão estabelecendo a censura. E, para isso, usam como pretexto o combate à extrema direita – em geral, tendo o Judiciário como grande artífice dessa política.

É o que faz Moraes no Brasil. E suas declarações nem disfarçam isso. A defesa das instituições é a defesa do Estado. Isto é, a defesa de uma ditadura na qual o Estado não pode ser contestado pela população.

Um trecho da reportagem ajuda a esclarecer que a doutrina seguida por Moraes nada tem de progressista. É uma doutrina truculenta, típica da direita. Diz The New Yorker:

“Ele cresceu em São Paulo, em uma família de classe média; seu pai era empresário e sua mãe professora. Quando jovem, cursou Direito na Universidade de São Paulo — um campo de treinamento para a classe política brasileira que, ao longo dos séculos, formou um terço dos presidentes do país. Moraes era ambicioso e ascendeu rapidamente. Aos 30 e tantos anos, tornou-se promotor público e escreveu um livro best-seller sobre direito constitucional. Na casa dos trinta e quarenta anos, ocupou uma série de cargos governamentais em São Paulo, como Secretário de Transportes e Secretário de Justiça do Estado e, por fim, Secretário de Segurança Pública — essencialmente, Comissário de Polícia. Na época, ninguém o acusaria de simpatias esquerdistas. Ele era um defensor da lei e da ordem que professava tolerância zero ao crime. ‘Os países mais desenvolvidos são aqueles onde as pessoas respeitam a lei — onde as pessoas sabem que, se infringirem a lei, haverá consequências’, disse-me ele. Ele comandou uma vasta força de mais de cem mil oficiais e, por vezes, enviou homens uniformizados e veículos blindados para dispersar protestos.”

A ideia de que o cidadão deve “temer a Lei” pode ser traduzida da seguinte forma: é preciso temer o Estado. O povo brasileiro, explorado e humilhado pelos banqueiros, não tem direito à revolta. É preciso ser um povo ordeiro, ou conhecerá a mais dura repressão. É esse pensamento que guia Moraes hoje, que defende que pessoas que participaram de uma manifestação pacífica passem o resto da vida na cadeia.

Após apresentar essas breves declarações de Moraes, a maior parte do artigo segue narrando alguns acontecimentos do período em que Bolsonaro era presidente da República. Curiosamente, os acontecimentos nada têm a ver com Alexandre Moraes, nem mesmo com qualquer coisa que possa ser acusada como parte de uma conspiração golpista. O único objetivo possível ao trazer esses acontecimentos à tona seria o de fazer uma campanha moral contra o líder da extrema direita, que justificasse os ataques a seus direitos democráticos. Entre os acontecimentos, está a conduta de Bolsonaro durante a pandemia de coronavírus e o tratamento rude dado a uma jornalista da imprensa burguesa

O texto termina com as impressões do jornalista estrangeiro sobre a situação política no Brasil:

“As ações mais duras de Alexandre de Moraes inflamaram ainda mais os seguidores de Bolsonaro. Nas ruas, tornou-se comum ouvir reclamações de que a liberdade de expressão morreu e de que o Supremo Tribunal Federal tem poder ditatorial. Oliver Stuenkel, um cientista político de destaque em São Paulo, apoia em grande parte as ações da Corte, mas afirma que o ativismo do tribunal traz riscos. ‘O Brasil acabou virando o exemplo de como se protege a democracia nos últimos anos’, disse. ‘O desafio agora é garantir que o tribunal volte ao normal, porque não é saudável para nenhuma democracia ter o Supremo como ator político central o tempo todo’.”

É verdade. As ações antidemocráticas do ministro têm radicalizado ainda mais a base bolsonarista. Isto, embora seja visto com um pouco de preocupação pela burguesia brasileira, não faz com que Moraes reconsidere minimamente a sua política. Pelo contrário: recentemente, o ministro pediu a condenação de uma cabeleireira a 15 anos de prisão. O motivo? Ter pichado uma estátua usando um batom. Esta é a verdadeira “defesa da democracia” que o redator de The New Yorker não mostra.

Também é verdade que, infelizmente o Estado brasileiro tem se esforçado para se apresentar como um “modelo” de “como se protege a democracia” – isto é, de ditadura. Isso, contudo, só mostra como as instituições estão completamente infiltradas pelo imperialismo.

A matéria elogiosa da revista The New Yorker é um prêmio para Moraes e as autoridades brasileiras por seu capachismo.

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