No artigo Bolívia – o progressismo na teia do caudilho, Emilio Cafassi, professor de sociologia na Universidade de Buenos Aires, procurar apresentar a sua própria versão da tese que toda a esquerda pequeno-burguesa latino-americana vem defendendo a respeito das eleições bolivianas: a de que a vitória avassaladora da direita teria sido o resultado de uma briga de egos entre Evo Morales e Luis Arce.
O texto já inicia com uma falsificação histórica grotesca:
“Até apenas duas décadas atrás, a Bolívia parecia condenada à instabilidade eterna, à expropriação de suas maiorias indígenas e ao banquete das elites crioulas que governavam em seu próprio nome. O surgimento do Movimento ao Socialismo (MAS), primeiro nas urnas e depois na arquitetura institucional, foi uma tempestade que abalou a velha ordem.”
Não foi o surgimento do MAS que “abalou a velha ordem”. Foi um grande levante, uma insurreição do povo boliviano que pôs abaixo um dos regimes mais selvagens de toda a história do neoliberalismo. Evo Morales é produto direto dessa insurreição. Como líder popular, ele foi forjado na luta contra o neoliberalismo e o imperialismo e, no processo, fundou o MAS. Essa falsificação, de apresentar o MAS, e não as massas bolivianas, como o indutor da mudança social, levará o autor a cometer um conjunto de erros ao longo do texto.
Ao abordar o golpe de 2019, Cafassi afirma que:
“A força desse processo não foi linear nem isenta de ameaças. Em 2019, a conspiração das elites políticas, econômicas e midiáticas, em conluio com a OEA e com a aprovação de potências estrangeiras, interrompeu brutalmente o ciclo democrático. O que havia nascido como uma revolução de urna colidiu com a velha maquinaria golpista, reciclada em retórica modernizada, mas com os mesmos fundamentos oligárquicos e racistas de sempre.”
Da forma como o autor apresenta, é como se tivesse havido uma conspiração contra a “democracia”. Como se, da noite para o dia, a direita boliviana decidisse que não valia mais à pena ser democrática.
Logicamente, não é nada disso. O golpe de 2019 foi o resultado das necessidades do imperialismo na América Latina. Desde 2009, o imperialismo vinha derrubando governos que se opusessem à sua dominação, para assim disciplinar a região inteira em torno de seus interesses econômicos e militares. O governo boliviano era o único na América do Sul, à exceção do governo venezuelano, cujo regime é muito menos infiltrado pelo imperialismo, que permanecia de pé.
Ignorando os motivos mais profundos do golpe, o autor ainda alega que:
“Evo Morales buscava um quarto mandato, embora um referendo de 2016 – patrocinado por ele mesmo – tivesse rejeitado a reeleição por tempo indeterminado. Foi o Tribunal Constitucional, sob sua influência, que lhe concedeu o direito de concorrer, argumentando que impedi-lo violava seus direitos políticos. Esse excesso de poder personalizou o processo, corroeu a legitimidade e aprofundou o cansaço de um governo que já se aproximava de 14 anos.”
Aqui está justamente o problema de creditar a uma tal “democracia” os avanços sociais na Bolívia. A situação melhorou no país andino não exatamente por causa da forma do regime político, mas sim porque, por meio de Evo Morales, os setores populares passaram a exercer uma pressão maior sobre as decisões do governo. A prova de que não havia nenhuma grande “democracia” é que o próprio golpe ocorreu por dentro das instituições “democráticas”.
O fundamental para a luta de classes na Bolívia não era a “legitimidade” ou não do processo, mas sim a que classe correspondia cada alternativa. A reeleição de Morales representava a continuidade de um nacionalismo burguês — ainda que bastante moderado. A deposição de Morales, seja pelas urnas ou não, representava a submissão do país ao imperialismo.
Neste sentido, a candidatura de Morales naquele período estava muito acima de qualquer desejo individual dele. Ela era vista pelas massas bolivianas como a melhor arma para enfrentar o imperialismo.
Ao analisar as eleições presidenciais bolivianas de 2021, o autor erra novamente:
“Apenas um ano depois, a votação se repetiu, devolvendo o MAS à liderança do país e expondo a farsa do golpe. A vitória de Luis Arce em 2020 não foi apenas mais uma eleição: foi a restauração da vontade democrática e a prova de que, apesar da violência e da desinformação, a maioria manteve a memória e uma visão.”
Novamente, a mobilização das massas é ignorada. Foi a sangrenta luta contra o golpe na Bolívia que forçou o regime a chamar eleições. O governo golpista era, afinal, muito instável. No entanto, a prova de que os golpistas ainda permaneciam na ofensiva está no fato de que as massas continuaram sem o seu candidato. Luis Arce, que viria a se tornar presidente, era um ilustre desconhecido, uma figura que acabou surgindo como uma solução de compromisso: o MAS voltaria ao governo, para acalmar as massas, mas Evo Morales, que é a ala esquerda do partido, ficaria de fora.
Ao chegar às eleições deste ano, Cafassi comenta:
“As eleições de domingo confirmaram a erosão desse ciclo. O que aconteceu não foi simplesmente uma votação: foi um espelho distorcido que refletiu tanto as feridas do progressismo quanto as fissuras da democracia boliviana. (…) Essa deterioração diária atinge onde mais dói: o bolso daqueles que antes viam no MAS um garantidor de dignidade e estabilidade. Mas à crise material somou-se uma crise política: a guerra interna entre um presidente sem épico, determinado a tirar Evo da cena, e um líder histórico que não pode mais ganhar eleições, mas pode dinamitar o cenário político se marginalizado. Foi, nas palavras de García Linera, io resultado final deste fratricídio miseráveli: a demolição do projeto coletivo mais ambicioso que a Bolívia viu em décadas.”
Novamente, o autor incorre no erro de se aventurar em fazer análise política ignorando as classes sociais. É realmente crível que o maior líder popular da Bolívia teria perdido as eleições por causa de um traço de personalidade? É claro que não.
Arce e Morales, independentemente de suas aspirações pessoais, encarnaram, nos últimos anos, a luta entre o golpismo e os interesses das massas bolivianas. O fato de Arce ser filiado ao MAS é, neste caso, irrelevante: o presidente boliviano representa uma burocracia, um setor social que está intimamente ligado ao grande capital e que, justamente por isso, agiu para proscrever Evo Morales.
A crise no interior do MAS ocorreu porque os interesses da burocracia que tomou de assalto o partido e o povo boliviano são inconciliáveis. Morales, longe de ser o líder intransigente que o autor aponta, é vítima de um processo golpista.




