O recente cessar-fogo entre o Hamas e Israel, embora provisório, é uma grande vitória da resistência palestina e um sintoma da crise das forças sionistas. Durante palestra-debate realizado no Centro Cultural Benjamin Péret (CCBP) neste sábado (18), o presidente nacional do Partido da Causa Operária (PCO), Rui Costa Pimenta, analisou em detalhes o processo. O presidente da Frente Progressista Árabe, Reda Sued, também marcou presença no evento.
A crise militar israelense é, na visão de Pimenta, uma derrota do imperialismo como um todo. Ele cita a incapacidade das forças sionistas em atingir seu objetivo central. “Não conseguiram nem de longe destruir o Hamas”, afirma. Ele destaca que o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas_ demonstrou ser “uma força imponente” e que “havia se recomposto durante o combate”. A guerra irregular, segundo ele, inclusive se voltou contra os israelenses: “ao promover toda essa destruição, eles criaram uma situação impossível, porque cada prédio é um esconderijo para os soldados da Al-Qassam”.
A troca de prisioneiros durante o cessar-fogo foi considerada por Pimenta uma “vitória extraordinária” para o Hamas, principalmente por seu profundo significado política. O Hamas “não fez nenhuma concessão para conseguir o cessar-fogo” e conseguiu “tirar várias pessoas importantes da cadeia”.
Leia na íntegra a exposição de Rui Pimenta:
“O cessar-fogo concluído recentemente trouxe à tona um conjunto de questões polêmicas envolvendo a questão Palestina e o Hamas. Houve quem dissesse que, na verdade, o cessar-fogo é uma derrota dos palestinos. Apareceu todo tipo de opinião que a gente possa imaginar a respeito, né? E, curiosamente, reapareceram, seria melhor dizendo, um determinado tipo de avaliação do Hamas, que havia aparecido no começo do conflito, e já fazia tempo que a gente não ouvia isso da parte da esquerda, né? Logicamente, não estou falando da propaganda sionista que é feita pela extrema-direita, porque isso daí é algo abaixo da crítica. Eu quero polemizar com ideias e noções que apareceram no campo geral da esquerda, a respeito do conflito. A primeira questão que nós devemos encarar aqui é o problema do resultado, do significado do cessar-fogo. Não há dúvida nenhuma. Ninguém tem ilusão quanto a isso de que o atual cessar-fogo é uma situação provisória, o que é normal. As lutas não… eu diria até a maioria das lutas não se definem em um único episódio. Você tem vários episódios, né? O que nós vimos aqui, assim como o cessar-fogo anterior, foi a conclusão de um episódio deste conflito que vai continuar, não há dúvida nenhuma. Então, logicamente, que tudo que nós viermos a concluir do que está acontecendo tem um caráter parcial, não é nada definitivo.
Nesse sentido, e de acordo com esse caráter parcial, nós dizemos que o Hamas saiu vitorioso. Não é difícil de demonstrar isso. Primeiro, pelo seguinte: se você é uma força militar superior e está se enfrentando com uma força militar muito inferior, que é o caso aqui, você não faz acordo de trégua. A trégua, logicamente, nessas condições, favorece o inimigo, não favorece aquele que tem a superioridade militar. A trégua é um momento que você utiliza para reorganizar as suas forças. Se você é muito superior militarmente, por que você precisa reorganizar as suas forças? Por que você precisa desse momento para respirar, como em uma luta de box? O cidadão vai lá, trava um round de golpes, depois senta no banquinho ali, e dependendo da situação dele, o treinador vai dar água, vai passar um pano nele e tal, porque ele apanhou muito. É aquele momento que ele aproveita para respirar um pouco, para voltar para a luta. Se você é muito superior, isso não existe.
Então, mostra que a superioridade das forças sionistas, que nesse caso é apenas uma fachada do conjunto do imperialismo, do imperialismo europeu, japonês, norte-americano, todos os países associados, eles não conseguem se manter no campo de combate. Nós temos dois anos [provavelmente meses] em que, com o nível de destruição, de agressividade, de utilização de armamentos — algumas pessoas falam que já foram utilizados em Gaza o equivalente a várias bombas atômicas de Hiroshima —, e não conseguiram nem de longe destruir o Hamas. Nós vimos as imagens do Hamas durante o cessar-fogo. É uma força imponente. Especialistas militares, antes desse cessar-fogo, já tinham dito que o Hamas havia recuperado toda a sua capacidade de combate, já havia reposto todas as pessoas que havia perdido. Lógico, há pessoas que não podem ser substituídas, né? Um Sinwar, por exemplo. Mas, de um modo geral, o Hamas havia se recomposto durante o combate. Então, o que nós estamos vendo é um exército que não consegue progredir, que são as Forças Armadas sionistas. O cessar-fogo, para os sionistas, significa o quê? Nada. Porque os problemas que os militares sionistas enfrentam não vão ser superados pelo cessar-fogo.
Existe uma desmoralização muito grande das forças sionistas. Eles sofreram muitas baixas. O próprio porta-voz das forças sionistas declarou que eles haviam tido 20 mil baixas, o que em linguagem técnica significa mortos e feridos. Não são todos mortos, mas 20 mil baixas é muita coisa. Só para a gente ter uma ideia, os norte-americanos perderam no Vietnã 80 mil soldados. E aquilo foi uma guerra de vários anos e de muito maior amplitude. Isso aqui é quase uma guerra municipal. Quer dizer, a resistência palestina, encabeçada pelo Hamas, tem mostrado uma alta eficiência militar. Tem aproveitado bem as vantagens da guerra irregular. Por exemplo, os sionistas destruíram boa parte da infraestrutura urbana de Gaza, com a ideia de que com isso eles iriam bombardear os militantes, os soldados do Hamas. Na verdade, ao promover toda essa destruição, eles criaram uma situação impossível, porque cada prédio é um esconderijo para os soldados da Al-Qassam. Quer dizer, a situação ficou mais complicada por causa dos bombardeios. A desmoralização das forças sionistas é grande. Eu vi declaração de pessoas que estiveram no campo de combate, no Parlamento sionista, questionando. Porque o pessoal falava o seguinte: “Tem que ir lá, tem que continuar a guerra?” Aí o soldado, ex-soldado que tinha voltado do campo de combate, falou: “Para você é fácil falar, porque você está aqui, vai lá ver. Lá não é fácil, lá é complicado.” Os problemas psicológicos são gigantescos. A desmoralização política da tropa é enorme. E isso é parte da guerra, né?
Eu já até antevejo a objeção que algumas pessoas vão levantar, que fala o seguinte: “Ah, mas é que o exército se desmoralizou. Não é que o outro ganhou no terreno militar, não; o exército se desmoralizou devido à ação militar dos outros.” É como o exército norte-americano no Vietnã: não aguentou o repuxo [pressão], e a sociedade norte-americana também não aguentou o repuxo. Então, eles perderam a guerra. Eu já ouvi muito esse argumento de que, na realidade, os norte-americanos não perderam a guerra. Não perderam a guerra no sentido mais clássico da palavra. Eles não conseguiram continuar a guerra, foram derrotados, tiveram que se retirar. É o que está acontecendo em Gaza. E a dimensão desse fato é muito grande, porque é quase um milagre o que está acontecendo em Gaza. Vocês imaginem que todos os mais sofisticados meios tecnológicos de espionagem foram colocados em ação para detectar onde estão os combatentes em Gaza, e eles não conseguem. Não é Israel, não é nada. Se fosse um combate entre Hamas e Israel, em Israel, teríamos uma revolução neste momento. Quem está lá sustentando todo o negócio são os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Comunidade Europeia. Quer dizer, é uma luta desigual num nível que é difícil até de imaginar.
E os soldados do Hamas resistiram, estão resistindo há dois anos [provavelmente meses] e continuam firmes. O espetáculo que foi objeto de propaganda sionista do Hamas eliminando os colaboracionistas é uma demonstração de que o Hamas, na verdade, se encontra numa situação, inclusive, favorável. Eles olharam e falaram assim: “Vamos limpar o terreno desse pessoal.” Aí foram lá e limparam o terreno. Houve perdas, muitas. Houve gente até importante que morreu. Enfim, mas no conjunto da coisa, o Hamas está lá sustentando a situação e, segundo eu entendo, já ouvi de pessoas próximas ao Hamas que as Brigadas Al-Qassam dizem para a liderança política do Hamas o seguinte: “Não se preocupem conosco. Nós podemos lutar aqui até durante 10 anos.” Isso… ouvi isso no primeiro mês de combate. E é uma realidade. Você fica até… apesar de que nós conhecemos muitos casos de conflitos militares, de guerrilha e tudo mais, você fica pensando: como, de onde que vem a comida, como é que eles conseguem repor o armamento? É um milagre, um milagre que acontece no mundo real.
Então, vocês viram também que a liderança do Hamas não fez nenhuma concessão para conseguir o cessar-fogo, porque é um sinal de que não há desespero nenhum. Digamos, o que seria uma concessão seria entregar o restante dos reféns. Mas isso já… Por que eles pegaram esses reféns? Não era para se esconderem atrás do pessoal, porque isso aí não faz sentido. Eles pegaram esses reféns para conseguir a troca de prisioneiros israelenses por prisioneiros palestinos. E eles conseguiram trocar por um número muito grande de pessoas. Tiraram várias pessoas importantes da cadeia. E isso, tirar esse pessoal da cadeia, é uma vitória extraordinária. As pessoas que falam que não é uma vitória é porque elas não têm nenhuma conexão com o mundo da luta política. Eles não têm a menor ideia do que é uma pessoa passar 30 anos na cadeia. Eles não têm a ideia da importância política e moral da solidariedade do cidadão que está na cadeia, sabendo que os outros estão lutando para tirar ele da cadeia. Então, tudo isso daí é como se não existisse, é como se nós estivéssemos discutindo um conto de fadas. Alguém me disse que Sinwar, quando esteve preso, falou: “Nós vamos sair daqui” — quando ele estava para sair — “e nós vamos trabalhar até que cada um de vocês esteja fora da cadeia.” Isso ele falou para os presos de todas as facções palestinas. E o Hamas está cumprindo a promessa, o que é muito importante. Do ponto de vista político, esse é um fato extraordinário. Quer dizer, a pessoa olha e fala assim: “Não, a nossa luta, ela evolui, ela progride. Nós não fomos esquecidos por Deus aqui nessas prisões. Nós somos parte de um grande movimento de luta.” E vejam bem: são 10 mil pessoas ainda nas prisões. Então, esses 10 mil estão vendo isso e estão falando: “Nós estamos lutando. Nós não somos pessoas desvalidas, desamparadas. Os nossos companheiros estão lutando lá e vão tirar a gente daqui.” Isso é muito importante, porque muita gente que está lutando vai acabar presa. Então, é um fator que solda a unidade política da resistência. O fato de que muita gente não tenha nem mencionado esse fato, não tenha achado nada demais na libertação de milhares de presos, mostra que eles não sabem o que estão falando. É uma coisa fora do comum.
Bom, obviamente que há outras coisas em jogo no que diz respeito ao problema do resultado. O argumento dos países imperialistas — o que é mentira, logicamente, a gente sabe que é mentira — é o seguinte: “Não negociamos com terroristas.” Então, eles falam que o Hamas é terrorista e toda hora estão negociando com o Hamas. É uma humilhação. Eles negociam o tempo todo com terrorista, também não é que eles fazem isso escondido. Agora, eles tiveram que fazer publicamente, não teve jeito. Uma coisa que já aconteceu, não aconteceu nessa trégua, mas já aconteceu e é irreversível, é que toda a propaganda israelense, todo esse discurso de que nós somos as vítimas do Holocausto, “todo mundo é antissemita,” e por aí vai, toda essa conversa mole, foi tudo por água abaixo. Vocês têm que ter ideia de que eles construíram essa imagem, esse filme hollywoodiano na cabeça das pessoas, com investimento de bilhões de dólares. Isso aí acabou. Ninguém vai reerguer isso no futuro. Alguém vai falar assim: “Não, porque os judeus…” O pessoal é criminoso, bandido. Eles perderam, perderam completamente. E esse elemento da propaganda é um elemento fundamental. É um elemento fundamental, porque como justificar tudo isso? A hora em que isso se evaporar completamente, é uma nova África do Sul, e ponto final. Já estamos neste momento. São uns criminosos, uns monstros que estão oprimindo o povo lá. Então, isso daí é outra grande vitória. E essa vitória é… a gente pode dizer o seguinte: é a vitória da mobilização que houve na Europa, em vários países, sim, mas é, antes de qualquer coisa, uma vitória da resistência. Se não houvesse resistência, o povo palestino seria esquecido. Quem luta vai ser lembrado; quem não luta vai ser esquecido. E eles estão lutando, e eles vão continuar lutando. Isso aqui é muito importante.
Um outro dado que não aparece em geral no que diz respeito ao significado do que está acontecendo é o seguinte: eu acho que, com esse cessar-fogo, nós encerramos uma etapa da luta. Nós tivemos uma ação conjunta de vários agrupamentos políticos contra o sionismo. Nós tivemos Ansarullah no Iêmen, Hezbollah no Líbano, tivemos a Síria, que apesar de todas as dificuldades do governo sírio, era um ponto de apoio importante. Temos a guerrilha no Iraque. De um modo geral, com exceção da Síria, tudo isso está aí, não foi destruído, não foi eliminado. O problema não foi eliminado. Por isso que nós estamos ouvindo insistentemente rumores de que vai haver um ataque do sionismo e do imperialismo contra o Irã, porque o Irã é a fonte fundamental de toda essa resistência. Não, assim, lógico, os palestinos resistem porque eles querem lutar pelo seu país, não é por causa do Irã. Mas é o Irã que criou as condições para toda essa resistência. Isso daí não vai embora. Não foi destruído, não vai ser destruído. O imperialismo não tem condições de destruir. Em algum momento, meu prognóstico seria o seguinte: em algum momento, eles vão entrar numa aventura política, vão dar com a cara na parede, e a crise vai explodir. E eu acho que eles já estão pisando num gelo muito fino. Não acho que eles estão numa situação confortável, não. Eu acho que a situação é bastante complicada para eles.
Então, nesse sentido, nós temos que dizer que até o momento é uma vitória, e que o cessar-fogo é uma vitória. A população palestina voltou para as suas casas. Ninguém foi embora, né? Os israelenses várias vezes falaram: “Tem que abrir a fronteira para eles irem embora.” Ninguém foi embora. A colaboração dos países árabes continua sendo uma coisa complexa com Israel. Entrou, finalmente, comida e outras coisas, o que permite reorganizar minimamente a situação da população. E o mais importante de tudo é o seguinte: a população apoia a resistência. Tudo bem, tem gente que sofre muito, mas é… muita gente, a maioria, eu acho que gostaria que a coisa terminasse. Mas que eles apoiam a resistência é líquido e certo.
E a situação é muito problemática. O Hamas exigiu a libertação do Marwan Barghouti, da Fatah. Marwan Barghouti é um líder da Fatah que se opõe ao Mahmoud Abbas. E Israel não quer libertá-lo pelo simples motivo… Isso aqui ilustra bem como a situação é complexa para o imperialismo, pelo simples motivo de que se o Marwan Barghouti for libertado e se alçar como liderança, a Autoridade Palestina vai desabar. É muito delicada a situação. Também não quiseram liberar os restos mortais de Sinwar, o que é uma demonstração de medo. Israel está reconhecendo que “não podemos entregar os restos mortais de um homem que é quase santo” entre a população palestina. Eles estão canonizando Sinwar com esse gesto.
Então, quer dizer, nós temos uma situação que, apesar de parecer difícil, é uma situação promissora; não é uma situação desesperadora ou negativa. É difícil, né? Nós, mais do que todo mundo, nós falamos: o imperialismo sofreu várias derrotas. O pessoal fala que vai ter um mundo multipolar. Nós falamos: “Vai ter mundo multipolar, nada, vai ter muita violência.” É isso que vai acontecer, que é o que está acontecendo efetivamente. O imperialismo, vocês podem até achar estranha essa minha afirmação, é uma força revolucionária. É ele que revoluciona o mundo, porque as coisas que ele é obrigado a fazer para manter a sua dominação levantam a revolta de todo mundo. E eles estão numa situação muito difícil. Por exemplo, guerra contra o Irã não vai ser como foi a guerra Irã e Iraque. A guerra contra o Irã vai ser uma calamidade naquela região. Guerra contra a Rússia vai ser uma calamidade mundial. Contra a China, então, nem se fala. E eu acho difícil até que, se houver uma guerra de grandes proporções, que o imperialismo saia intacto disso. Uma guerra deste volume, e eles estão caminhando para a guerra, vai ser o túmulo do imperialismo. É muito difícil. A gente já viu a Primeira Guerra Mundial, viu a Segunda Guerra Mundial, quase foi o túmulo do imperialismo. Era para ser, né? Quase foi. Agora, o imperialismo está muito mais fraco, não vai aguentar. Então, é uma situação difícil, complexa, penosa, mas não é uma situação sem esperança.
Bom, eu queria falar algumas palavrinhas sobre algumas polêmicas que eu vi em relação ao Hamas. Primeiro, foi colocado em circulação novamente a ideia — isso entre a esquerda — de que o Hamas foi criado pelo Estado de Israel. Essa história não tem absolutamente nenhum fundamento. Quando num determinado momento, não era o Hamas, era a Irmandade Muçulmana, os israelenses deixaram a Irmandade Muçulmana atuar com uma certa liberdade, porque eles achavam que uma organização religiosa, etc., etc., faria sombra à Fatah. Mas quando se criou o Hamas e a Al-Qassam, esse tipo de condescendência desapareceu. Um analista, um importante oficial das Forças Armadas sionistas, falou que ter deixado o pessoal atuar por um período foi o pior erro que nós cometemos até hoje. O Hamas é uma força combatente impressionante. Não foi criado por Israel. Eu às vezes eu penso: o que fazem com as pessoas para que a pessoa acredite que homens que passaram 30 anos na cadeia, centenas de pessoas que dão a vida todos os dias na Faixa de Gaza, que perderam os seus parentes… Porque o Hamas não é um grupo que veio da Tunísia. O Hamas é composto de palestinos, de palestinos de Gaza. Os irmãos, filhos, pais, mães dos militantes do Hamas estão morando em Gaza. Muitos dos líderes do Hamas perderam toda a família. O chefe do Hamas, Ismail Haniyeh, perdeu 30 familiares. Como é que uma pessoa pode acreditar que essas pessoas que colocaram Israel na maior crise de toda a sua breve história possam estar a serviço do Hamas? Estar a serviço do [Benjamin] Netanyahu? É preciso ser muito, mas muito inconsciente para pensar uma coisa dessa. Tão inconsciente que eu julgo que isso é propaganda sionista, que os sionistas estão fazendo aí, estão infiltrados entre esses setores que fazem esse tipo de propaganda, porque não faz sentido.
Uma segunda coisa importante: o Hamas ele não é… ele não é como era o grupo guerrilheiro do Fidel Castro. O grupo guerrilheiro do Fidel Castro era o seguinte: era um grupo de aventureiros — no bom sentido da palavra, não no sentido negativo. Quer dizer, pessoas com espírito para operações ousadas. Era um grupo pequeno de aventureiros que decidiu enfrentar o regime político. O Hamas não é assim. O Hamas é Gaza. Gaza é o Hamas. O Hamas é um partido muito grande; ele se confunde com a população de Gaza. A ideia de que o Hamas seria um grupo, como esse grupo de Fidel Castro, que poderia cometer o erro de fazer uma operação militar e sacrificar as outras pessoas, porque eles na realidade não têm nada a ver com os outros, é absurda. Eles, na verdade, entraram na luta conscientemente. Uma das pessoas que nós entrevistamos em Doha, o Dr. Bassim Naim, o filho dele foi morto agora em Gaza. Todos eles perderam muita gente, perderam filhos, perderam irmãos, perderam parentes. E é uma coisa também muito chamativa que os palestinos todos têm famílias muito grandes, né? A estrutura familiar palestina é uma estrutura antiga, não é como no Brasil que você tem a família ali. São vários núcleos familiares que formam uma espécie de um clã e tal. Perderam, perderam muito, sacrificaram muito. Então, acusar o Hamas de ter feito uma coisa impensada e tudo mais, ou pior, que é a propaganda sionista, que o pessoal do Hamas está nos túneis e os outros estão lá. Não tem nada a ver. O soldado do Hamas está no túnel, o pai dele está fora do túnel, o irmão dele está fora do túnel. Isso é uma imagem falsificada que é apresentada do Hamas para efeito de calúnia.
Outra coisa que também reapareceu aqui, que eu acho que é importante falar, é o seguinte: estão tentando empurrar aí a história de que, como o Hamas é religioso, o sionismo prefere o Hamas do que a Autoridade Palestina, que é laica. E aí, não só ela seria laica, como participa da OLP, a Frente Popular — não sei se seria marxista. Isso é totalmente falso. É absurdo. Inclusive, a Autoridade Palestina é um departamento do Mossad, todo mundo sabe disso. Mahmoud Abbas é um traidor da causa palestina, vendido para Israel. Ele foi comprado. A história verdadeira é a seguinte: a OLP chegou num momento que eles não tinham mais como se sustentar, perderam apoio de vários países árabes. O último apoiador da OLP foi Saddam Hussein, do Iraque. Quando Saddam Hussein caiu, eles ficaram sem apoio. Quer dizer, se transformaram numa organização marginal. Eles estavam fora da Palestina e não tinham quem financiasse, não tinha como sobreviver como força militante. Aí veio a Intifada. E a Intifada foi uma oportunidade para a OLP fazer um acordo com Israel. Fizeram um acordo. O acordo visivelmente era uma fraude. O acordo previa que gradativamente a Palestina ia ser um estado independente. Era uma fraude. Qualquer pessoa que conhece a história sabe que isso daí é fraudulento e impossível de acontecer. Bom, os israelenses foram apertando o cerco em torno do Hamas e em torno da OLP e procurando transformar a OLP no que ela é hoje: um cão de guarda do sionismo. Yasser Arafat, que já tinha feito o acordo e já estava decadente e tudo mais, percebeu que ele ia se transformar num mero fantoche. Daí eu imagino que a pessoa olhou, falou: “Não quero fazer esse papel.” Foi assassinado por Israel. Antes dele ser assassinado, Israel já havia forçado que, porque o Arafat era o presidente da Autoridade Palestina, já havia forçado a escolha de Mahmoud Abbas como primeiro-ministro antes dele morrer. E quando ele morreu, Mahmoud Abbas tomou conta de tudo. Quem fez o acordo, quem negociou o acordo, foi Mahmoud Abbas. Ele é um homem do sionismo. E o que existe de Autoridade Palestina hoje em dia é um grande corpo policial que controla os palestinos para que não se revoltem contra Israel. Isso é a Autoridade Palestina. Ninguém tem o direito de ignorar essa realidade.
Falar que o Hamas está fazendo sombra à OLP é um escárnio, é vergonhoso, é vexaminoso como declaração. Isso não existe. A Autoridade Palestina… O Hamas só não ataca diretamente a Autoridade Palestina porque, sabiamente, eles não querem abrir um segundo front de luta. Então, eles toleram as coisas que o Mahmoud Abbas está fazendo e simplesmente denunciam, mas não abrem uma luta direta na Cisjordânia pelo poder. Eles acham que não é o momento de fazer isso. Eu pessoalmente acho que não é mesmo o momento de fazer isso. Acho que é uma coisa de cada vez. Mas a hora que o sionismo cair, Mahmoud Abbas vai junto. Da mesma maneira que se você jogar um cachorro de um prédio, o rabo do cachorro vai junto com o cachorro, né? É um escárnio apresentar como libertador dos palestinos o senhor Mahmoud Abbas e a Autoridade Palestina. É um escárnio. Isso aí não tem eleição há muitos anos. A última eleição, o Hamas ganhou. Eles acabaram desfazendo o governo. Ele governa ditatorialmente o povo palestino. Logicamente que, como eles recebem muito dinheiro do imperialismo, eles fazem algum clientelismo lá que mantém um certo amortecedor da revolta palestina. Mas isso está acabando também, porque é cada vez mais intensa a mobilização dentro da Cisjordânia.
Mais um argumento. Um gaiato aí mostrou nas redes sociais a destruição de Gaza e questionou: “Isso é uma vitória?” Isso é um argumento muito importante, porque a luta e o sacrifício de milhares de vidas — não vou falar de prédio, porque prédio é algo que se reconstrói; vou falar do moral, né? — a disposição de sacrificar vidas na luta é o que diferencia a pessoa que luta verdadeiramente da pessoa que só faz figuração. A pessoa que chega e fala: “Ai, olha o custo dessa revolução,” não é um revolucionário, não luta, não é para valer: é um escravo. Os escravos… tem escravo que é rebelde, mas tem o escravo com mentalidade de escravo. O que tem mentalidade de escravo, ele fala: “Está tudo muito bem, eu só apanho aqui uma vez por semana, então estou feliz. Para que que eu vou arriscar a vida e tal?” Esse é um escravo. Isso é uma pessoa servil. Uma revolução implica em perda de vidas humanas. Em grande medida, implica em perda da vida, em primeiro lugar, dos revolucionários. Porque o pessoal fala: “Morreu 70 mil pessoas em Gaza.” Morreu quanta gente das brigadas Al-Qassam? Quantas pessoas não deram a vida por essa luta? Não é que eles estão sacrificando a vida dos outros, eles estão sacrificando a vida deles também. Eles entraram nessa luta, meio que dizendo o seguinte: “Eu já estou morto.” Quer dizer, eu não ligo, não quero saber mais. Alguém falou isso daí, alguém falou: “Nós somos todos mártires. Nós buscamos o martírio.” Quer dizer, não temos medo da morte. Esses são os verdadeiros revolucionários.
Você mostrar uma cidade destruída e falar que isso é uma derrota, isso daí é a pior manifestação do espírito pequeno-burguês e covarde. Se você destruir a minha casa, eu construo outra casa. Agora, a diferença entre ser escravo e ser livre é muito grande. Vale muitas casas, não vale uma casa só, vale muitas casas. Senão, os revolucionários brasileiros são como os juízes do STF. O Trump fala que vai cortar o cartão de crédito deles, eles todos pedem a conta para sair do STF. Esse tipo de pessoa nunca vai fazer nada de bom. Essa é uma questão chave. Todos os povos do mundo que lutaram pela sua liberdade, que lutaram para construir um país ou que lutaram para construir o socialismo, que lutaram, em geral, por ter uma vida melhor para si e para os seus, nunca recuaram diante da perda de vidas. Lógico, perda inútil de vidas, tudo bem. É o caso da Ucrânia. Na Ucrânia, o pessoal manda os ucranianos para o abatedouro. Eu não vi ninguém falar nada sobre isso. Na Ucrânia, o pessoal não devia ir para a guerra. Não é uma guerra para eles. Eles não vão ganhar nada com isso. Eles estão morrendo pelos outros. Mas na Palestina, não. Eles estão lutando por um país deles. Eles não têm país. Eles vivem sob condições sub-humanas. Então, é natural que a pessoa fale: “Vou lutar, nem que seja até a última gota de sangue.” Só quem tem uma situação estável, quem não é tratado, porque o palestino ele é tratado como um cachorro… Só a pessoa que não sabe o que é ser tratado como cachorro pode condenar o espírito de luta dos palestinos. É perfeitamente justificável. Isso justifica que a gente acredite que o ser humano tem futuro, porque se o ser humano é esse cachorro bem-comportado e bem-alimentado, não tem futuro.
“Ah, vou perder meu emprego.” Quantas vezes no movimento operário, nas greves, você não encontra pessoas com essa mentalidade? O pessoal entra em greve e aí aparece um palhaço lá que não quer entrar em greve. “Eu não posso perder um emprego.” Normalmente, os operários não tratam ele muito bem, pelo contrário, tratam muito mal. Tem gente que eu já vi apanhar feio por ter esse tipo de ideia. A ideia de que a destruição em Gaza não justifica a luta é a ideia desse operário que não quer entrar em greve de medo de perder o emprego. Então, esse é um dado que nós não podemos de maneira nenhuma deixar de lado.
Tinha mais uma coisa que eu queria falar sobre essas ideias esquisitas. Várias pessoas falam o seguinte: “Foi um erro colossal do Hamas ter feito o 7 de Outubro.” Primeiro que eles não sabem. Eles não sabem nada, o que é o normal. Quando você encontra esse debate, você tem que olhar e falar: “Esse cidadão, ele não sabe nada.” O 7 de Outubro não é que deu a louca em alguém do Hamas e fez o 7 de Outubro. O 7 de Outubro é o início de uma operação cuidadosamente planejada por vários atores políticos da região. O autor do 7 de Outubro chama-se [Qassem] Soleimani, um general iraniano, para dar um nome, né? Não é uma pessoa só. Não foi uma coisa impensada. Nós podemos ver pelo seguinte: todos os serviços de informação dos países imperialistas não conseguiram até agora detectar os túneis onde estão escondidos o pessoal do Hamas. Isso exige uma enorme preparação. Teve percalços nessa luta? Teve. Estava comentando com o companheiro Reda aqui, o negócio do Hezbollah que perdeu a principal liderança, teve o caso dos pagers. É da vida. O que vai fazer? Se você ganhasse o tempo todo, todo mundo fazia qualquer coisa. Teve percalços, mas que isso foi uma operação muito bem montada, muito bem planejada, não pode haver a menor dúvida. E ela vai continuar e ela não foi desmontada, ela vai continuar e eu acredito que ela vai ser bem-sucedida. Vai ser duro. Vai ser duro. Não adianta a gente querer amanhã abrir o jornal e falar: “Ah, caiu o Estado de Israel, acabou a bagunça.” Não, não vai ser assim. O imperialismo é formado por pessoas muito brutais, muito criminosas, muito mais brutais e criminosas do que vocês podem inclusive imaginar. E veja que eu estou falando aqui para um público do PCO, imagina os outros o que eles pensam. Eles são… para a gente ter uma ideia assim popular e gráfica do que é o imperialismo, tem que assistir o filme do, acho que o último filme do Exterminador do Futuro. Aquelas máquinas que matam tudo que passa pela frente e tudo mais. É uma representação do imperialismo. Eles são capazes das piores atrocidades. Se eles não fazem determinadas coisas, é porque eles têm medo de fazer, senão eles fariam. Por exemplo, eu vi várias pessoas falarem: “Por que não joga uma bomba atômica em Gaza?” Porque eles têm medo. Senão eles fariam. Eles não têm problema de matar 2 milhões de pessoas, 3 milhões, 4 milhões. Para eles é tudo a mesma coisa. O que refreia a violência, a selvageria e a maldade extrema da política deles é o medo da humanidade.
A gente viu, eles começaram com extrema violência em Gaza. Os governos europeus caíram todos. Isso daí, vamos ter claro, é café pequeno perto do que pode acontecer. Porque se a revolta crescer, não é que vai cair o governo, eles vão matar o cara, eles vão fazer a revolução, eles vão botar gente no paredão de fuzilamento. Então, eles têm medo disso. E é a única coisa que eles têm medo. Se alguém acha que eles têm medo de algum tipo de manobra diplomática, não tem medo nenhum de nada. Eles têm medo de uma única coisa, e é a única linguagem que eles entendem. E a única linguagem através da qual você pode se comunicar com eles é a força bruta. E é muito importante que os palestinos compreenderam isso. Quando eu estive na Al Jazeera, dando uma entrevista em Doha, apareceu, conversei com várias pessoas, tal, o pessoal todo muito simpático, muitos palestinos também na Al Jazeera. Aí apareceu um cidadão, falou assim: “Eu sou o seu tradutor.” Porque tinha um… eu falava em inglês, ele traduzia para o árabe. Ele falou: “Eu concordo com você em gênero, número e grau, só pela…” — porque eu falei isso na entrevista — “…só pela força bruta. A experiência está feita, a gente já viu de tudo, agora é só pela força bruta.” E esse cidadão, ele não é da Al-Qassam, ele é jornalista da Al Jazeera. Então, nós temos que entender isso. Pode… ninguém está trocando tiro hoje no Brasil, mas à medida que a situação evoluir, vai ter tiro. Pode esperar, né? O mundo é assim.”





