No dia 17 de fevereiro, o youtuber Jones Manoel, integrante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), publicou o vídeo Maria Rita Kehl e o debate sobre o “identitarismo”, polemizando com as declarações da psicanalista feitas durante uma entrevista à TV Brasil. Na época, a entrevista de Kehl teve enorme repercussão por causa de suas críticas ao identitarismo.
Antes de iniciar sua polêmica com a psicanalista, Manoel procurou se distanciar dos identitários que “cancelaram” Maria Rita Kehl por causa da ideologia de seu avô. Diz ele:
“Ao invés de discordarem essencialmente da fala, de apresentarem argumentos e contra-argumentos, citam o avô dela. Assim não dá, gente. (…) Veja, aqui no canal tem vários vídeos de crítica a outras pessoas. Tem vídeo criticando Ciro Gomes, tem vídeo criticando Jessé Souza, tem vídeo criticando Reinaldo Azevedo, tem vídeo criticando vários homens. Se vocês repararem, eu nunca, na hora de fazer uma crítica ao Jessé, ao Ciro, ao Haddad, ao Reinaldo Azevedo, ao Lula, ao Rui Costa, citei esposa, irmã, mãe, filho e tal.”
Manoel fala uma regra óbvia para qualquer debate democrático: deve-se discutir as ideias, e não atacar a pessoa que as defendem. Isto é, que, em um debate democrático, não se deve lançar mão dos chamados argumentos ad hominem. Embora esteja certo em assinalar isso, o que o youtuber diz não está de acordo com a sua trajetória. Em vários momentos, ele se mostrou um defensor desse método:
“Hoje, eu vou debater o desempenho da esquerda radical. E aqui a gente já vai fazer uma separação. O que eu estou chamando de esquerda radical? Basicamente, estou falando do PCB, da UP, do PSTU. Jones, e o PCO? Desculpa, mas não dá. O PCO, para mim, é uma organização, uma seita de extrema direita, que tem alguns apelos de ponto de esquerda. Ponto. É isso. Desculpa, me recuso. Não dá. [grifo nosso]” (O desempenho da esquerda radical na eleição de 2024. YouTube. 8/10/2024)
Qual a opinião de Jones Manoel sobre as posições do PCO, que contrastam, em essência, com as dos demais partidos? O youtuber se nega a debater, pois isso o obrigaria a expor a sua posição sobre temas que considera delicados. Por isso, argumentos ad hominem: PCO é “uma seita de extrema direita”.
Vejamos outro exemplo:
“A seita da família pimenta – vulgo PCO – começou a ‘convocar atos em defesa da Rússia’. Se prepare para nos próximos dias um monte de perfis grandes na internet começar a condenar em abstrato a ‘esquerda brasileira’ fazendo ‘atos pró-Putin’ [grifo nosso].” (@jonesmanoel_PE. X. 27/2/2022).
Uma repetição do mesmo subterfúgio. Jones Manoel não quer debater sua posição acerca da guerra da Ucrânia – até porque, passados três anos do conflito, emitiu uma declaração que nada mais é que uma defesa enrustida da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Trazemos um último exemplo ainda mais grotesco. Em uma análise sobre as eleições municipais no Recife em 2024, Manoel declarou que:
“Eu não vou contar a candidatura do PCO. E aí, me desculpe, assim, a Justiça Eleitoral impugnou já a candidatura do rapaz do PCO. Sem condição. Me recuso a entrar nessa conversa [grifo nosso].” (O voto do PCBR na eleição para prefeitura de Recife. YouTube. 1/10/2024)
Aqueles que tentaram cancelar Maria Rita Kehl com base em sua árvore genealógica, portanto, apenas apresentaram uma variante do método que o próprio Manoel defende na luta política. Essa identidade entre os censores da psicanalista e Jones Manoel não é à toa. Conforme veremos, Manoel é parte do setor criticado por Kehl: a esquerda pequeno-burguesa identitária.
Após o que Manoel chama erradamente de “preâmbulos” – o mais correto seria dizer “comentários” -, o youtuber inicia, então, a sua polêmica com a psicanalista. Evitando se chocar diretamente com Kehl, para não ser identificado como um defensor do identitarismo, mas também evitando concordar com ela, para não desagradar os seus amigos identitários, Manoel se vale de outro expediente comum seu: a fuga do debate.
Segundo ele, o maior problema da entrevista seria que a pergunta feita a Kehl estaria “teoricamente errada” (!), o que teria necessariamente levado a uma resposta errada da psicanalista. É a sua forma de dizer que Maria Rita Kehl está errada, o entrevistador está errado, os censores estão errados, os defensores de Kehl estão errados e o único certo no planeta é o iluminado Jones Manoel. Vejamos.
A pergunta feita pelo entrevistador foi:
“Essa discussão sobre os rumos da política da esquerda tem caído muito em uma crítica que vem, curiosamente, tanto da direita quanto da esquerda, por motivos diferentes. Trata-se de uma crítica às chamadas políticas identitárias. A direita critica as políticas identitárias — chamadas de woke nos Estados Unidos e que estão ganhando força no Brasil — porque, segundo eles, essas políticas destroem a família, são anti-religião, enfim, vêm com esse ataque moralista. Mas, pela esquerda, também há um ataque forte e pesado contra as políticas identitárias, porque há uma compreensão, por parte da esquerda no Brasil e no mundo, de que isso desvia a luta do trabalhador e das causas maiores. Primeiro, como você está vendo essa disputa em torno do identitarismo? Ele é válido? Não é? Ele funciona? Ou parece um pouco um bode expiatório da esquerda também?”
A pergunta é bastante clara, e não há nada nela que impeça uma resposta “correta”. O entrevistador apenas partiu de dois fatos conhecidos – que o identitarismo é criticado pela direita e que o identitarismo é criticado pela esquerda – e pediu a opinião de Maria Rita Kehl.
O argumento de Manoel para criticar a pergunta é absolutamente bizarro. Segundo ele, para perguntar a opinião de Maria Rita Kehl sobre o identitarismo, seria obrigatório definir o que é o identitarismo!
“Ele faz uma pergunta sobre as políticas identitárias sem definir o que é identitarismo. Esse é o grande problema”.
Imagine, leitor, se toda pergunta necessitasse de uma definição de cada termo nela contida? A comunicação seria impossível…
Se o que Manoel diz é verdade, ninguém nunca poderia perguntar: “você é trotskista ou stalinista”?, pois caberia ao entrevistador explicar o que é uma coisa e o que é outra. Tampouco poderia perguntar: “você é liberal ou é conservador”?, pois caberia ao entrevistador definir cada termo.
O que pode parecer rigor acadêmico de Jones Manoel é, na verdade, um truque que remete à mesma metodologia repressiva dos argumentos ad hominem. Manoel quer definir o que é identitarismo para impedir que o debate se desenvolva de uma maneira sob a qual ele não tem controle. Isso ficará claro ao analisarmos a sua fala.
“Identitarismo é uma leitura das opressões. Uma leitura que, tendencialmente, está conectada a correntes teóricas liberais, pós-modernas ou conservadoras, que busca compreender as opressões afastadas da economia política e centradas na afirmação e na positivação da identidade como começo, meio e fim da ação política.”
Não, o identitarismo não é uma “leitura”, mas uma política. Não é à toa que a tradução mais comum do termo identitarismo para a língua inglesa é “identity policies” – isto é, políticas de identidade. Não é uma questão que se desenvolve primordialmente na academia, mas sim na luta política.
O identitarismo corresponde hoje à política oficial do imperialismo. Uma política que tem como fim garantir a dominação dos grandes monopólios. Uma política financiada, estimulada e preparada pelos serviços de inteligência responsáveis pela ordem mundial.
O identitarismo é a principal cobertura para a política criminosa do imperialismo. Basta levar em consideração que o maior apelo da candidata oficial dos grandes monopólios à presidência da República, Kamala Harris, era o identitarismo: a mulher negra e filha de imigrantes.
Esse debate é fundamental porque Maria Rita Kehl, quando debate o identitarismo, não está interessada em debater as “leituras identitárias”. Ela, ainda que não o expresse claramente, está interessada em criticar aquilo que ela vê se desenvolvendo na luta política, está interessada em discutir o conteúdo dos movimentos identitários, e não o seu besteirol teórico.
De um ponto de vista abstrato, pode-se acusar a doutrina de Malcom X de ter elementos identitários, por exemplo. Considerar que a luta dos negros deveria se desenvolver de maneira independente da população branca, e não em torno de uma frente única contra o grande capital, é uma incompreensão do mundo em que vive e que levaria o líder negro a uma política sectária. Mas a questão do identitarismo nos dias de hoje não é essa. Não é um debate teórico sobre os rumos de um ou outro movimento. Ela se tornou a forma pela qual o imperialismo se infiltra, sequestra e acaba com movimentos combativos, ou mesmo cria movimentos artificiais contrarrevolucionários.
Vejamos o que Kehl disse. Aqui está o texto com a devida pontuação:
“O ruim é quando o movimento identitário vira (…) uma espécie de nicho em que só os que estão nele podem falar entre si. Porque, daí, você se fecha para a crítica, se fecha para o outro, que vem dizer: ‘olha, vocês pensam assim, mas, quem sabe, se pensarem assado? Às vezes, é uma colaboração, não precisa ser uma crítica. Quem sabe, se vocês considerarem isso, dá mais certo?’. (…) O que eles produzem é uma estagnação do diálogo. Eu posso — eu, mulher, de classe média, descendente de alemães, branca — criticar um negro se ele estiver espancando o filho dele. (…) Agora, se ele diz ‘você não pode falar porque você é branca’, aí eu acho que isso não vai dar certo.”
O que Maria Rita Kehl chama eufemisticamente de “estagnação do diálogo” é a velha “censura”. É do que ela própria foi vítima: como a psicanalista não é negra e descendente de escravos, ela não teria “lugar de fala” para criticar os oprimidos. É uma política que tem no Estado de “Israel” o seu maior interessado, que coloca os sionistas como seres intocáveis para perseguir toda voz dissidente.
Ainda que Kehl não seja uma especialista no assunto, ela expressa uma preocupação legítima com um movimento horrendo. Pessoas estão sendo colocadas na cadeia e sendo obrigadas a pagar multas astronômicas por causa dos identitários. Povos inteiros estão sendo bombardeados sob a cobertura do identitarismo. É a oposição à política repressiva do imperialismo que faz com que a psicanalista se oponha à “cultura woke”.
Jones Manoel se dedica a um debate sobre a “leitura identitária” e não sobre a “política identitária” por uma razão muito simples: o youtuber é incapaz de reconhecer o identitarismo como a política oficial do imperialismo. É incapaz de entender que há uma relação direta com a propagação do identitarismo e a ação contrarrevolucionária do imperialismo. Por isso que tentou desqualificar os argumentos de Kehl com a acusação de que ela não sabia o que seria identitarismo, pois o que ele está tentando evitar é o debate de como o identitarismo se desenvolve na luta política.
Seguindo adiante em seu vídeo, Manoel tenta usar exemplos para comprovar que a luta dos oprimidos não seria sempre identitária – coisa que só poderia passar pela cabeça do próprio youtuber, pois nem Kehl, nem nenhum crítico sério do identitarismo disse isso. Os exemplos, no entanto, revelam ainda mais da posição de Manoel. Vejamos um deles.
“O movimento feminista no Chile é identitário? Não, por exemplo. A gente viu que, de maneira geral, o movimento feminista no Chile teve um papel fundamental no chamado ‘estallido social’, na rebelião social que surgiu no país. Esse movimento conseguiu dobrar o governo Sebastián Piñera e abriu a possibilidade histórica de enterrar as estruturas institucionais do neoliberalismo pinochetista.”
De fato, a mobilização de 8 de março de 2020 no Chile foi muito grande e contribuiu para o desenvolvimento de um processo insurrecional contra o governo Piñera. O governo seguia uma política neoliberal muito impopular, transformando o país em um barril de pólvora. O motivo material que levou dezenas de milhares de mulheres às ruas naquela data foi a insatisfação contra essa política, e não questões femininas específicas. O país estava prestes a explodir, e o ato de 8 de março apenas serviu para canalizar essa insatisfação.
Isso não significa, no entanto, que a direção do movimento feminino tivesse clareza do que estava fazendo. Não significa que as palavras de ordem foram o que arrastou as pessoas para as ruas. O movimento se desenvolveu por causa das condições objetivas, e não das condições subjetivas, como já aconteceu em várias vezes na história.
A política das organizações que encabeçaram o movimento era, sim, identitária. E, neste sentido, um obstáculo à luta pelo “Fora Piñera”. Entre as reivindicações em primeiro plano estavam a luta contra a “misoginia” e o “feminicídio”, reivindicações essas que não se dirigem ao Estado, mas sim que buscam dividir a população trabalhadora entre “mulheres” e “homens”. E é neste sentido que o identitarismo atua. As palavras de ordem dessa natureza servem para desmoralizar o movimento, para confundir as pessoas que nele estão.
O caso típico é o do movimento negro norte-americano após o assassinato de George Floyd. O identitarismo se infiltrou no movimento para fazer com que ele perdesse o seu caráter combativo. Aos poucos, o movimento foi deixando de ser uma mobilização que incendiava delegacias, protestando contra os opressores do presente, e foi se tornando um movimento de derrubada de estátuas, protestando contra pessoas que já não têm relação alguma com a situação de opressão que os negros vivem.
Na parte final do vídeo, contudo, Jones Manoel entrega a rapadura. Se antes ele procurava formas veladas de defender o identitarismo, agora ele sai abertamente em sua defesa.
Esse momento começa quando ele comenta as críticas de Kehl de que os identitários “se fechariam” entre si. Isto é, têm uma política de segregação social, cujo exemplo mais bem acabado é o regime de apartheid do Estado de “Israel”. Jones Manoel tenta amenizar o caráter reacionário dessa política chamando-a de “corporativismo”.
Jones Manoel, então, diz que qualquer agrupamento social estaria vulnerável ao tal “corporativismo”. É uma forma de dizer que a segregação imposta pelos identitários seria algo comum, e não uma política conscientemente estimulada pelo imperialismo para enfraquecer os movimentos. Mas sua grande pérola está em alertar contra o “corporativismo branco”:
“Tem elementos particulares nesse corporativismo [do identitarismo], mas ele não é exclusivo. Assim como existe um corporativismo não declarado do grupo lido como hegemônico do ponto de vista de identidade, que, por ser hegemônico, acha que não tem identidade, né? Então, assim: homens brancos héteros — isso é uma identidade, gente! Ser branco, hétero e, no Brasil, sudestino, principalmente paulista ou carioca, é uma identidade! A identidade hegemônica, só que, como é a identidade hegemônica, acha-se que é uma ‘não identidade’.”
Ora, mas essa é, sem tirar nem por, exatamente a “leitura” dos identitários! Jorge Paulo Lemann oprime os trabalhadores da Ambev, por exemplo, porque ele teria uma identidade opressora: é branco, homem, hétero e sudestino. A opressão não viria, portanto, do grande capital.
A única consequência possível da formulação de Jones Manoel é que a negra, mulher, homossexual e nordestina deveria declarar guerra à identidade diferente da dela. Isto é, cair em toda a patifaria identitária: a segregação, a censura e, finalmente, a frustração de uma unidade em torno da luta dos oprimidos contra o grande capital.
Jones Manoel não esconde que essa é sua política. Ainda comentando sobre o tal “corporativismo”, ele diz:
“O problema é que parece que descobriram o corporativismo, o fechamento de perspectiva de universalidade, os códigos que os grupos criam para excluir outros grupos… agora, né? Parece que descobriram isso agora. (…) Só descobriram isso quando negros e negras, mulheres, LGBT começaram a se organizar e, a partir de uma dinâmica também corporativa, estimularam um aumento da concorrência capitalista por espaços de prestígio. (…) Veja, há 30 anos, você pegava um partido político de esquerda e não ter nenhuma mulher na direção não era um problema. Não ter nenhuma pessoa negra na direção não era um problema. Você pegava um departamento universitário de um curso com uma tendência mais progressista, como serviço social, história, etc., e não ter mulheres ou pessoas negras na equipe não era um problema. Inclusive, era comum, diga-se de passagem. Hoje em dia, não é mais, né?”
É uma defesa explícita dos métodos de segregação do identitarismo. Para Jones Manoel, estimular a divisão da juventude operária entre LGBTs e não-LGBTs, por exemplo, seria um progresso, pois assim os LGBTs conseguiriam uma vaga a mais em uma universidade, por exemplo. É a apologia da selvageria social.
A revelação de Jones Manoel como um seguidor da política identitária, por fim, já era previsível e se relaciona com o que foi dito logo no começo. Ao criticar o entrevistador de Maria Rita Kehl, ele disse que o identitarismo “é uma leitura das opressões (…) centradas na afirmação e na positivação da identidade como começo, meio e fim da ação política”. Trata-se de uma definição, portanto, positiva do identitarismo.
Fato é que, conforme demonstrado ao longo da discussão, o identitarismo não é uma política centrada na “positivação da identidade”. O identitarismo nos dias de hoje não tem como foco, por exemplo, propor o estudo da “história e cultura indígena e afro-brasileira” nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, conforme foi estabelecido pela Lei 11.645/08. Ela está centrada em uma guerra contra as identidades consideradas inimigas, em um antagonismo de identidades.
O foco do identitarismo não é a afirmação, mas a segregação. Se fosse nos dias de hoje, a Lei 11.645/08 teria a seguinte formulação: será punido todo estabelecimento de ensino que ensinar a história dos povos europeus. Se Jones Manoel é capaz de aplaudir a derrubada de estátuas, o leitor pode ter certeza que aplaudiria essa lei.