José Álvaro Cardoso

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Economia Rural pela Universidade Federal da Paraíba e Doutor em Ciências Humanas pela UFSC. Trabalha no DIEESE.

Coluna

Há método e objetivos na ‘loucura’ trumpista

"Seus desdobramentos devem ser acompanhados com muita atenção por todos nós"

Com grande espalhafato, Donald Trump tem utilizado a política de aumento de tarifas com o objetivo de proteger a indústria norte-americana, que vem perdendo espaço no Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos desde a década de 1980. Por meio dessa política, Trump busca forçar outros países a negociarem acordos comerciais mais favoráveis, reduzindo o déficit comercial dos EUA. Com a ameaça de aumento das alíquotas, o governo norte-americano visa compelir outras nações a aceitarem termos mais vantajosos para os Estados Unidos. Em alguns casos, inclusive, as tarifas são impostas como retaliação a práticas comerciais consideradas desleais pelos norte-americanos, como subsídios governamentais ou políticas cambiais. Em certos setores, como aço e alumínio, as tarifas são justificadas com base em argumentos de segurança nacional, já que a produção doméstica desses materiais é essencial para a defesa do país.

No ano passado, os Estados Unidos registraram um déficit comercial recorde de cerca de US$ 1,212 trilhão, em uma corrente de comércio de US$ 5,37 trilhões, a segunda maior entre os países. Os principais déficits ocorreram com os seguintes parceiros comerciais:

  • China: US$ 295,4 bilhões
  • União Europeia: US$ 235,6 bilhões
  • México: US$ 171,8 bilhões
  • Vietnã: US$ 123,5 bilhões

O quadro acima explica, em parte, por que os chineses estão no centro da ofensiva dos EUA. Foram os chineses, com seu projeto de se transformar na fábrica do mundo, com altos ganhos de produtividade e mão de obra barata, que destruíram uma boa parte da indústria norte-americana. Em muitos casos, grandes empresas norte-americanas mantêm estruturas na China, ainda mais robustas do que nos EUA, principalmente em setores como tecnologia, manufatura e varejo.

O fenômeno ocorre devido a fatores estratégicos, como escala de produção, cadeia de suprimentos, mão de obra qualificada e baixos custos. Empresas como Apple, Tesla e Nike possuem fábricas gigantescas na China. Nos EUA, a produção é menor e mais cara devido a salários mais altos e regulamentações trabalhistas mais rigorosas. O mercado consumidor em crescimento também é um diferencial fundamental. Os EUA vivem o período mais desigual de toda a sua história. Os três maiores multibilionários (Elon Musk, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos) têm mais riqueza do que a metade mais pobre da sociedade americana (160 milhões de americanos). Atualmente, 45% de toda a nova renda gerada no país vai para o 1% do topo, e os diretores executivos de grandes corporações ganham 350 vezes o que seus funcionários recebem, o que é um recorde na história do país. Em alguns setores de serviços faz quarenta anos que o salário real não aumenta, apesar da economia produzir muito mais riqueza atualmente.

Na China, como é conhecido, está sendo operado exatamente o oposto. Entre os anos de 1978 e 2018, principalmente, o país conseguiu retirar cerca de 800 milhões de habitantes da pobreza extrema. Com crescimento médio do PIB de 6% a 10% ao ano nas últimas duas décadas, elevou-se a renda per capita, com muita gente ingressando na classe média, portanto com elevada capacidade de consumo. Existem também outros fatores, como incentivos governamentais e menor burocracia operacional.

É importante considerar que a proteção da indústria norte-americana, via tarifas, é o programa de Trump desde sempre. Durante a última campanha, ele deixou clara a intenção de desenvolver ações para a retomada da indústria norte-americana, principalmente por meio do aumento de tarifas. Há outras questões em jogo, interligadas com a questão das tarifas, que não aparecem tanto, como o problema da dívida pública norte-americana, que alcançou 34,5 trilhões de dólares e representa um gasto diário de US$ 2,74 bilhões (o gasto anual estimado com juros dessa dívida está em US$ 1 trilhão, quase metade do PIB brasileiro). É uma dívida insustentável, mesmo para os EUA.

Os Estados Unidos possuem os chamados “déficits gêmeos”, caracterizados por um déficit orçamentário elevado e um déficit em conta corrente significativo (como já vimos). O déficit orçamentário dos EUA atingiu 6,4% do PIB no ano passado, totalizando aproximadamente US$ 1,833 trilhão. Esse aumento foi impulsionado por custos mais elevados com o serviço da dívida, decorrentes de taxas de juros mais altas. Historicamente, o país apresenta déficits em conta corrente devido ao alto nível de importações em relação às exportações. O déficit gêmeo, que é um problema estrutural da economia norte-americana, certamente está na base das decisões de Donald Trump.

Vale lembrar que o atual presidente dos EUA representa setores do capital norte-americano que, predominantemente, não ganham dinheiro com a globalização, o que também explica a política tarifária. O uso de tarifas é uma proposta situada no campo do desenvolvimentismo. Há alguns anos, o movimento popular e sindical na América Latina conseguiu impedir a concretização da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). A ALCA foi uma proposta de bloco econômico dos EUA, lançada em 1994 durante a Cúpula das Américas em Miami, com o objetivo de eliminar barreiras alfandegárias entre os 34 países do continente americano, com exceção de Cuba. Esse projeto foi impedido pela mobilização popular (no Brasil, houve até um plebiscito que decidiu contra). 

Obviamente, a política de tarifas do governo Donald Trump tem um caráter diferente daquele que teria nos países subdesenvolvidos, já que se trata de medidas de um país imperialista, que usa essa política para aumentar a opressão, e a pressão, sobre os países subdesenvolvidos. Mas isso não significa que, para combater Trump, devemos defender o neoliberalismo e a globalização, que sempre foram propostas propugnadas pelos países imperialistas.

Os sindicatos brasileiros, por exemplo, sempre defenderam o protecionismo de setores fragilizados da indústria, para preservar os empregos industriais. A retirada abrupta de tarifas na economia brasileira foi uma das bases para a destruição de boa parte da indústria brasileira, ocorrida nos governos de Fernando Collor e FHC. A globalização era defendida entusiasticamente pelos EUA e seus apaniguados aqui dentro do país. Portanto, a crítica a Trump é que ele quer utilizar as tarifas para impor a vontade dos EUA ao mundo, mas isso não significa que devemos nos alinhar com os defensores da globalização do capital, que, dentre outros efeitos, aumentou dramaticamente o desemprego e a precarização do trabalho no Brasil.

A China se levantou contra as medidas porque é o principal país-alvo. Ademais, como dispõe de condições muito fortes para competir internacionalmente, a começar por um forte projeto nacional, centrado no Estado, ganhou muito dinheiro com a globalização e tornou-se a “fábrica do mundo”. Mas a liberdade de comércio que a China defende, não é a que vigora hoje no mundo. Os EUA adotam medidas para contenção da China há muitos anos. Barack Obama, por exemplo, apesar do tratamento aparentemente amigável, que não levou a uma guerra comercial aberta, tomou uma série de medidas contra a china, chamadas eufemisticamente de “política de contenção”. Só para lembrar um caso: em 2011 os EUA deslocaram 60% da frota naval para o Pacífico, visando a “contenção” da China. 

Durante o governo de Joe Biden, os Estados Unidos implementaram rigorosas medidas comerciais, diretamente contra os chineses. Em maio de 2024, por exemplo, a administração Biden anunciou um aumento significativo nas tarifas de importação sobre uma variedade de produtos provenientes da China, com o objetivo expresso de proteger a indústria americana. O aumento nas tarifas incluía: Veículos Elétricos, baterias de lítio, semicondutores, painéis solares, aço e alumínio.  ​

Na realidade, as hostilidades mais graves começaram com o governo Obama, aumentaram no primeiro governo Trump e cristalizaram durante o governo Biden, com uma agressão, principalmente, nos campos tecnológico e militar. Essas medidas ficam mais fáceis de serem compreendidas, quando analisamos o comércio bilateral recente: no acumulado de 2020–2024, as exportações dos EUA para a China chegaram a cerca de US$ 927 bilhões e as Importações dos EUA da China alcançaram cerca de US$ 2,6 trilhões. Déficit comercial acumulado no período, de aproximadamente US$ 1,7 trilhão (80% do PIB brasileiro). Esses resultados, somados ao risco de os BRICS substituírem no médio prazo, o dólar como moeda no seu comércio interno, é quase que uma sentença de morte ao poderio dos EUA. 

A política tarifária anunciada por Donald Trump sofre grande oposição interna.  Inclusive no Partido Republicano, que se dividiu entre os que apoiam as medidas e os que defendem uma política de livre-comércio. É muito difícil prever o que a política de Trump pode provocar, até porque ele está sendo muito pressionado. O fato de Trump ter uma estratégia – e está muito claro que tem – não garante o seu êxito. O aumento recíproco das tarifas, ao elevar os custos dos bens importados, tende a diminuir o volume do comércio internacional. Empresas e consumidores devem buscar alternativas domésticas ou outros países. Um dos objetivos de Trump é um processo de substituição de importações por produção nacional, aproveitando a potência da economia americana, com as empresas e famílias buscando alternativas domésticas ou de outros países com tarifas menores.

A eleição de Trump decorre de uma contradição fundamental nos países imperialistas (não apenas nos EUA): para preservar os lucros das grandes corporações, está havendo o sacrifício da economia da maioria dos países do mundo, incluindo os imperialistas. Os dados da desindustrialização da economia americana, são uma síntese do fenômeno: em 2001, os EUA respondiam por 28,4% da produção industrial global; em 2023, essa participação tinha caído para 17,4%. Muitos trabalhadores industriais perderam seus empregos e não conseguiram mais retornar ao mercado devido à desqualificação relativa. Assistimos isso no Brasil, na década de 1990, de forma mais agressiva até: o trabalhador perdia seu emprego na indústria e, sem chance de recolocação no setor, tinha que virar vendedor de churrasquinho ou cachorro-quente, muitas vezes na porta da fábrica que o demitiu. 

Nos EUA, regiões historicamente dependentes da indústria sofreram com a redução drástica de empregos, levando a uma queda na economia local e problemas sociais. A perda de empregos na indústria, relativamente bem pagos em relação a outros setores, contribuiu para o aumento da desigualdade de renda, enquanto os setores de serviços e tecnologia, que requerem diferentes habilidades, muitas vezes oferecem salários mais baixos ou empregos precários. No processo de globalização, os capitalistas, especialmente os grandes, ganham muito dinheiro, mas a grande maioria da população perde direitos, renda e emprego. O neoliberalismo e a globalização são, antes de tudo, respostas do grande capital à crise capitalista, a partir de 1974, em detrimento da maioria da população dos países, inclusive dos países imperialistas. 

Se Trump conseguir realizar tudo o que deseja no campo econômico, o modelo econômico neoliberal vigente na economia mundial ingressará em uma crise muito aguda. Por isso também ele é tão combatido pela direita neoliberal, que caracteriza, propriamente, o sistema imperialista mundial. Mas é ilusão imaginar que a política do Trump seria uma biruta de aeroporto. Ela tem estratégia e objetivos e seus desdobramentos devem ser acompanhados com muita atenção por todos nós.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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