Política internacional

Há espaço para um ‘mundo multipolar’?

Articulista do Partido dos Trabalhadores (PT) acredita que o imperialismo irá aceitar passivamente uma mudança na ordem mundial

No texto O declínio da hegemonia norte-americana, o articulista Emir Sader, intelectual ligado à ala direita do Partido dos Trabalhadores (PT), retoma uma tese bastante comum entre a esquerda pequeno-burguesa brasileira: a de que o declínio militar dos Estados Unidos estaria dando lugar a um “mundo multipolar”.

Para sustentar sua tese, Sader inicia o texto contando sua interpretação da história da segunda metade do século XX:

“Os Estados Unidos saíram vitoriosos da 2ª Guerra, com a derrota da Alemanha, da Itália e do Japão. Mas, quando esperavam que retornasse uma época de hegemonia única [sic], teve que se ver às voltas com a URSS e o chamado campo socialista. Tiveram que conviver, ao longo de todo o período da Guerra Fria, com a existência de um mundial [sic].”

Não sabemos se em um ato falho ou não, mas Sader omitiu justamente o termo que serviria para caracterizar o que, em sua opinião, existia durante a Guerra Fria. No entanto, o que ele disse anteriormente já é o suficiente para determinar o que ele pensa sobre o período.

Segundo Sader, os Estados Unidos teriam vivido um breve momento de “hegemonia única”, mas isso foi quebrado com o desenvolvimento da União Soviética. Teria havido, a partir de então, duas “hegemonias”, a norte-americana e a soviética.

É uma ideia absurda em todos os aspectos – econômico, militar e político. É absurda, inclusive, no aspecto semântico! “Hegemonia” seria, segundo o Dicionário Caldas Aulete, uma “superioridade ou predomínio incontestável”. O termo provém do grego e era utilizado para designar a função de liderança que uma determinada pólis (cidade-Estado) exercia sobre outras dentro de uma aliança militar ou de uma liga política.

Toda hegemonia é, por definição, única. A ideia de duas hegemonias já é, em si, um atentado contra a lógica.

O que Sader provavelmente quis dizer é que, durante a Guerra Fria, tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética tinham uma influência importante sobre os demais países do planeta. Neste sentido, seriam dois países influentes, que dominavam blocos distintos.

A questão que se coloca, no entanto, é: a influência norte-americana e a influência soviética eram da mesma natureza? O desenvolvimento da União Soviética alterou, de algum modo, a influência que os Estados Unidos tinham sobre as demais nações?

A Segunda Guerra Mundial foi uma luta inter-imperialista – isto é, uma luta entre países que dividiam entre si a dominação do mundo. Seu objetivo era modificar a correlação de forças dos países dentro do bloco, e tão-somente isso. A guerra não tinha como propósito colocar a ordem mundial abaixo. A guerra partia do pressuposto de que Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Alemanha tinham o direito de dominar econômica, política e militarmente os demais países.

Se houve uma mudança após a Segunda Guerra Mundial é que os Estados Unidos se consolidaram como o país mais importante do condomínio imperialista. Isto é, a burguesia norte-americana emergiu como dona da maior parcela da exploração empreendida pelos países imperialistas contra os países atrasados.

A Revolução Russa, a formação da União Soviética, seu desenvolvimento econômico e o surgimento de Estados Operários no Leste Europeu não modificaram em nada a ordem mundial. A Rússia não deixou de ser um país atrasado e oprimido pelo imperialismo por causa da revolução. Assim como a Albânia, a Checoslováquia e a China.

O que aconteceu é que esses países, apoiados na mobilização revolucionária da classe operária, passaram a opor uma resistência à dominação imperialista. Isto é, torná-la mais difícil. Isso não implicou, em nenhum momento, que houvesse uma libertação do sistema imperialista, mas apenas que ele fosse desafiado, causando uma sucessão de crises.

Diante desse movimento, qual foi a política do imperialismo? Ficar de braços cruzados, esperando que os países todos se rebelassem contra a sua dominação, até que a ordem mundial se tornasse insustentável? Não, pelo contrário. O imperialismo utilizou justamente de suas vantagens de dominador da ordem mundial para disciplinar os rebeldes. Isto é, desferiu ataques militares, sabotagens, manobras econômicas, até que finalmente conseguisse impor uma derrota parcial àqueles que se rebelaram contra a sua dominação.

Ignorando completamente os acontecimentos da segunda metade do século XX, Sader afirma então que “com o fim da URSS e do campo socialista, de novo os Estados Unidos sonharam com um mundo em que eles seriam a única potência hegemônica”. Não, o imperialismo nunca “sonhou” com isso. O imperialismo, conforme demonstrado, sempre foi a única potência hegemônica – posição dividida entre os países imperialistas, com os norte-americanos à frente. Além disso, o imperialismo sempre foi consciente de que a sua dominação, exercida por meio de uma ditadura brutal, levaria a novas revoltas. Por isso, mesmo após a queda da União Soviética, o imperialismo nunca desmontou o seu aparato repressivo. Pelo contrário, uma vez que a União Soviética caiu, o imperialismo procurou cercar militarmente a Rússia por todos os lados.

Continuando sua historiografia fantasiosa, Sader afirma que:

“Mas, de novo, [os Estados Unidos] tiveram que se deparar com um mundo bipolar, com o surgimento dos BRICS. Porém, desta vez, têm que se enfrentar a um polo antagônico mais dinâmico e, em certa medida, mais forte que o seu. Os Estados Unidos seguem sendo a maior economia do mundo, secundado pela China. Mas tecnologicamente, onde os norte-americanos sempre se vangloriaram de ser a vanguarda no mundo, os chineses já os superam. O que é um golpe psicológico muito duro para os norte-americanos.”

É uma incompreensão enorme sobre a ordem mundial. De fato, o avanço industrial chinês é um fator de crise para o imperialismo. No entanto, isto não é decisivo para determinar quem manda no mundo. O imperialismo ainda é, incontestavelmente, o único bloco capaz de impor a sua política, de maneira agressiva, aos demais povos do planeta. É o único que possui bases militares em todos os países, que é capaz de impor sanções e bloqueios comerciais criminosos e que domina a esmagadora maioria dos regimes políticos. O imperialismo age como se fosse o grande xerife do mundo.

O imperialismo é uma grande ditadura. Sader, no entanto, vira as costas para isso e conclui que:

“O governo Trump, por sua vez, representa um passo a mais no declínio da hegemonia norte-americana. Fechar-se sobre si mesmo isola ainda mais os Estados Unidos no mundo e deixa mais espaço livre para a expansão da China e dos próprios BRICS. Uma nova divisão internacional do trabalho reserva um espaço menor para os Estados Unidos. A primeira metade do século XXI está marcada por esse declínio.”

O problema é que, sendo o xerife do mundo, os Estados Unidos – e seus aliados imperialistas – não irão assistir a esse processo de braços cruzados. Não há dúvida de que há um declínio político, econômico e militar, visto sobretudo na derrota no Afeganistão e na iminente derrota na Rússia. Contudo, assim como na época da Guerra Fria, haverá reação.

Ou melhor, já há reação. Até mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, citado pelo articulista, se tornou alvo de investidas do imperialismo, na medida em que colocou seus planos em xeque. O imperialismo está dando golpes de Estado em todo o mundo – o mais dramático deles no último período foi o contra o presidente sírio Bashar Al-Assad. Está colocando em marcha uma guerra potencialmente nuclear contra a Ucrânia. Está bombardeando a população civil em Gaza e no Iêmen.

Os sinais de declínio apontados por Sader já estão levando o imperialismo a uma contra-ofensiva. Pela quantidade de dinheiro que está sendo investido no aparato militar dos países europeus, esta contra-ofensiva terá ainda muitos dias sinistros pela frente.

A ideia de que uma ordem multipolar está se estabelecendo é, no fim das contas, uma espécie de reformismo aplicado à política internacional. É uma ilusão, um delírio, que desarma os povos do mundo diante de uma grande ofensiva do grande capital.

O papel de um partido como o PT, que hoje governa o País, não deve ser o de simplesmente celebrar o declínio norte-americano, como se isso em si fosse resolver o problema. É preciso ter uma política que prepare o Brasil para lutar lado a lado com a Rússia, a China, o Irã, a Venezuela, Cuba e a Coreia do Norte contra a reação imperialista.

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